Prémio Nobel da Literatura 2010
Fiel ao encontro marcado, Lucrecia entrou com as sombras, falando de gatos. Ela própria parecia uma formosa gata de angora sob o rumoroso arminho que lhe dava pelos pés e dissimulava os seus movimentos. Estaria nua dentro da sua envoltura prateada?
— Gatos, disseste?
— Gatinhos, melhor — miou ela, dando uns passos resolutos em redor de Dom Rigoberto, o qual pensou num touro acabado de sair do touril a medir o toureiro.
— Bichanos, tarecos, miaus. Uma dúzia, talvez mais.
Retouçavam sobre a colcha de veludo vermelho. Encolhiam e esticavam as patinhas sob o cone de luz crua que, pó de estrelas, descia sobre a cama a partir do tecto invisível. Um cheiro a almíscar banhava a atmosfera, e a música barroca, de bruscos diapasões, vinha do mesmo canto do qual saiu a dominante, seca voz:
— Despe-te.
— Isso é que não — protestou Dona Lucrecia. — Eu aí, com esses bichanos? Nem morta, detesto-os.
— Queria que fizesses amor com ele no meio dos gatinhos? — Dom Rigoberto não perdia uma única das evoluções de Dona Lucrecia pela fofa alcatifa. O seu coração começava a acordar, e a noite barranquina a desumedecer-se e viver.
— Imagina — murmurou ela, detendo-se um segundo e retomando o seu passeio circular . — Queria ver-me nua no meio daqueles gatos. Com o horror que lhes tenho! Até me arrepio toda de me lembrar.
Dom Rigoberto começou a distinguir as suas silhuetas, as suas orelhas a ouvir os débeis miados da miúda gataria. Segregados pelas sombras, iam assomando, corporizando-se, e na incendiada coberta, sob a chuva de luz, os brilhos, os reflexos, as pardas contorções entonteceram-no. Pressentiu que, no limite daquelas extremidades movediças, se insinuavam, aquosas, curvas, recém-saídas, as unhitas.
— Anda, anda cá — ordenou o homem do canto, suavemente. Ao mesmo tempo, devia ter aumentado o volume porque clavicórdios e violinos cresceram, ferindo-lhe os ouvidos. Pergolesi!, reconheceu Dom Rigoberto. Percebeu a escolha da sonata; o século dezoito não era só o do disfarce e da confusão de sexos; era também, por excelência, o dos gatos. E porventura não tinha sido Veneza, desde sempre, uma república gatesca?
— Já estavas nua? — Ouvindo-se, compreendeu que a ansiedade se apoderava muito depressa do seu corpo.
— Ainda não. Foi ele que me despiu, como sempre. Para que perguntas? Sabes que é aquilo de que mais gosta.
— E a ti também? — interrompeu-a, meloso. Dona Lucrecia riu-se, com um risinho forçado.
— É sempre cómodo ter um camareiro — sussurrou, inventando um risonho recato. — Embora dessa vez fosse diferente.
— Por causa dos gatinhos?
— Por quem é que havia de ser? Punham-me nervosíssima. Estava numa pilha de nervos, Rigoberto.
Não obstante, tinha obedecido à ordem do amante oculto no canto. De pé ao seu lado, dócil, curiosa e anelante, esperava, sem esquecer um segundo o punhado de felinos que, enovelados, desavergonhados, revolvendo-se e lambendo-se, se exibiam no obsceno círculo amarelo que os aprisionava no centro da colcha flamejante. Quando sentiu as suas mãos nos seus tornezelos, descendo-lhe até aos pés e descalçando-os, os seios retesaram-se-lhe como dois arcos. Os mamilos enrijaram-se-lhe. Meticuloso, o homem tirava-lhe agora as meias, beijando sem pressa, com minúcia, cada pedacinho de pele descoberta. Murmurava qualquer coisa que a Dona Lucrecia, ao princípio tinham parecido palavras ternas ou vulgares ditadas pela excitação.
— Mas não, era uma declaração de amor, não eram as indecências que às vezes lhe vêm à cabeça — riu-se de novo, com o mesmo risinho incrédulo, detendo-se ao alcance das mãos de Dom Rigoberto. Este não tentou tocá-la.
— O quê, então? — balbuciou, lutando contra a resistência da sua língua.
— Explicações, toda uma conferência felinesca — voltou a rir-se ela, entre gritinhos abafados. — Sabes que aquilo de que os bichanos mais gostam no mundo é o mel? Que têm no traseiro uma bolsa da qual se extrai um perfume?
Dom Rigoberto farejou a noite, com as narinas dilatas.
— É a isso que cheiras? Não é almíscar, então?
— É algália. Perfume de gato. Estou impregnada. Incomoda-te?
A história escapava-se-lhe, extraviava-o, julgava estar dentro e encontrava-se fora. Dom Rigoberto não sabia o que pensar.
— E para que tinha ele levado os boiões de mel? — perguntou, receando uma brincadeira, uma partida que tirassem formalidade àquela cerimónia.
— Para untar-te — disse o homem, deixando de beijá-la. Continuou a despi-la; tinha terminado com as meias, o casaco, a blusa. Agora desabotoava-lhe a saia. — Trouxe-o da Grécia, de abelhas do monte Himeto. O mel de que Aristóteles fala. Guardei-o para ti, a pensar nesta noite.
«Ama-a», pensou Dom Rigoberto, ciumento e enternecido.
— Isso é que não — protestou Dona Lucrecia. — Não e não. Comigo, badalhoquices, não.
Dizia-o sem autoridade, as suas defesas desbaratadas pela contagiosa vontade do amante, com o tom de quem se sabe vencida. O corpo tinha começado a distraí-la dos rangidos da cama, a vibrar, a concentrá-la, à medida que o homem a libertava das últimas peças de roupa e, prostrado aos seus pés, continuava a acariciá-la. Ela deixava-o fazê-lo, tentando abandonar-se no prazer que provocava. Os seus lábios e mãos deixavam chamas por onde passavam. Os gatinhos continuavam ali, pardos e esverdeados, letárgicos ou animados, enrugando a coberta. Miavam, brincando. Pergolesi tinha amainado, era uma distante brisa, um desmaio sonoro.
— Untar-te o corpo com mel das abelhas do monte Himeto? — repetiu Dom Rigoberto, soletrando cada palavra.
Mário Vargas Llosa in Os cadernos de Dom Rigoberto, 1997.