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sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

 
Como medimos o tempo que permanece no espírito?



Joseph Beuys, The End of the Twentieth Century, 1983-85.



XXVII, 34
. Insiste, minha alma, e presta a devida atenção: Deus é a nossa ajuda; foi ele que nos criou, e não nós que nos criámos. Fixa o teu olhar onde começa a despontar a verdade. Imagina que a voz de um corpo começa a soar, e soa, e soa ainda, e eis que deixa de soar, e faz-se silêncio, e a voz passou e já não há voz. Havia de ser, antes de soar, e não podia ser medida, porque ainda não existia, e agora não pode, porque já não existe. Por isso, podia ser medida no momento em que soava, porque nesse momento existia o que podia ser medido. Mas, mesmo então, não estava fixa; pois ia e passava. Acaso podia ser medida noutro momento? Com efeito, passando, estendia-se por uma extensão de tempo em que podia ser medida, já que o presente não tem qualquer extensão. Se, então, nesse momento, podia ser medida, imagina que outra voz começa a soar e ainda soa, numa vibração contínua sem interrupção: meçamo-la, enquanto soa; pois, logo que tiver cessado de soar, já terá passado e nada haverá que possa ser medido. Meçamo-la com precisão e digamos qual a sua medida. Mas ainda soa e não pode ser medida, senão desde o início em que começa a soar, até ao fim, em que deixa de soar. Com efeito, medimos o próprio intervalo desde um início até a um fim. Por isso, a voz que ainda não cessou não pode ser medida, de modo a que se possa dizer em que medida é longa ou breve, nem se pode dizer que seja igual a outra, ou que tenha com ela uma relação simples, ou dupla, ou qualquer outra coisa. Logo que ela tiver cessado, já não existirá. De que modo, pois, pode ser medida? E apesar disso, medimos os tempos, não aqueles que ainda não existem, nem aqueles que já não existem, nem aqueles que não se estendem por nenhuma duração, nem aqueles que não têm limites. Por conseguinte, não medimos os tempos futuros, nem os passados, nem os presentes, nem os que estão a passar, e no entanto medimos os tempos.


Santo Agostinho in Confissões, Livro XI

quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

 
Com o espírito medimos os tempos


Cindy Sherman, Untitled Film Still #17, 1978.


XXVIII, 37. Mas como diminui ou se extingue o futuro que ainda não existe, ou como cresce o passado que já não existe, senão porque no espírito, que faz isso, há três operações: a expectativa, a atenção e a memória? Desta forma, aquilo que é objecto da expectativa passa, através daquilo que é objecto da atenção, para aquilo que é objecto da memória. Por conseguinte, quem nega que as coisas futuras ainda não existem? E, todavia, já existe no espírito a expectativa das coisas futuras. E quem nega que as coisas passadas já não existem? E, todavia, ainda existe no espírito a memória das coisas passadas. E quem nega que o tempo presente não tem extensão, porque passa num instante? E, todavia, perdura a atenção através da qual tende a estar ausente aquilo que estará presente. Portanto, não é longo o tempo futuro, porque não existe, mas um futuro longo é uma longa espera do futuro, nem é longo o tempo passado, porque não existe, mas um passado longo é uma longa memória do passado.

38. Tenho a intenção de recitar um cântico que sei: antes de começar, a minha expectativa estende-se a todo ele, mas, logo que começar, a minha memória amplia-se tanto quanto aquilo que eu desviar da expectativa para o passado, e a vida desta minha acção estende-se para a memória, por causa daquilo que recitei, e para a expectativa, por causa daquilo que estou para recitar: no entanto, está presente a minha atenção, através da qual passa o que era futuro, de molde a tornar-se passado. E quanto mais e mais isto avança, tanto mais se prolonga a memória com a diminuição da expectativa, até que esta fica de todo extinta, quando toda aquela acção, uma vez acabada, passar para a memória. E o que sucede no cântico, na sua totalidade, sucede em cada uma das suas partes e em cada uma das suas sílabas; sucede igualmente numa acção mais longa, da qual, talvez, aquele cântico seja uma pequena parte; sucede ainda na vida do homem, na sua totalidade, da qual são partes todas as suas acções; isto mesmo sucede em todas as gerações da humanidade, de que são parte todas as vidas dos homens.

Santo Agostinho in Confissões, Livro XI

quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

 
Em Bilbao

Ao ir para a neve, de volta da neve, com neve ou sem ela, quem andar por estes dias a passear pelo norte de Espanha não pode deixar de dar um salto ao Guggenheim de Bilbao. Pelo menos duas coisas a não perder: Miguel-Angelo e o seu tempo, exposição de desenhos renascentistas que esteve no ano passado no Louvre e que estará em Bilbao, para quem não a viu em Paris, até Fevereiro.




A ver também a instalação Champ Quantique-X3, no exterior do museu, do artista japonês Hiro Yamagata, que consiste de duas enormes estruturas holográficas sobre as quais são projectados laser. O acesso ao interior dessas estruturas, dois enormes cubos, é, seguramente, uma experiência visual única.




terça-feira, 28 de dezembro de 2004

 
O tempo é aquilo com que medimos o movimento


Bill Viola, Nantes Triptych, 1992.

XXIV, 31. Mandas-me estar de acordo se alguém disser que o tempo é o movimento de um corpo? Não mandas. É que eu oiço dizer que nenhum corpo se move senão no tempo: és tu que o dizes. Mas não oiço dizer que o próprio movimento de um corpo é o tempo: não és tu que o dizes. Quando, porém, um corpo se move, é com o tempo que eu meço a duração do seu movimento, desde que começa a mover-se, até que acaba. E se eu não vi desde que começou e continua a mover-se, de modo a não ver quando termina, não posso medir senão talvez a partir do momento em que começo a ver, até deixar de ver. Mas se o vejo durante muito tempo, afirmo apenas que foi muito tempo, mas não quanto tempo é, porque também quando dizemos "quanto", dizemo-lo por comparação, como por exemplo: "Isto durou tanto tempo como aquilo", ou: "Isto durou o dobro daquilo", e alguma coisa deste género. Se, porém, pudermos notar as extensões dos lugares donde vem e para onde vai um corpo que se move, ou as partes dele, se se mover como que em torno de si mesmo, podemos dizer quanto é o tempo a partir do momento em que se efectuou o movimento do corpo, ou de parte dele, desde um lugar até ao outro. Dado que uma coisa é o movimento do corpo, outra aquilo com que medimos a sua duração, quem é que não percebe a qual destas coisas de preferência se deve chamar tempo? Na verdade, se o corpo umas vezes se move a um ritmo desigual, outras vezes está parado, medimos com o tempo, não só o seu movimento, mas também o seu repouso, e dizemos: "Esteve tanto tempo parado como em movimento"; ou: "Esteve parado o dobro ou o triplo do tempo em que esteve em movimento"; ou qualquer outra coisa que a nossa medição tenha compreendido ou avaliado, mais ou menos, como costuma dizer-se. Por conseguinte, o tempo não é o movimento do corpo.

(Nova interpelação a Deus)

XXV, 32. E confesso-te, Senhor, que ainda ignoro o que seja o tempo, e de novo te confesso, Senhor, que sei que digo estas coisas no tempo, e que há muito tempo estou a falar do tempo, e que este "há muito tempo" não é outra coisa senão a duração do tempo. Portanto, como é que eu sei isso, quando não sei o que é o tempo? Será que não sei como exprimir o que sei? Ai de mim, que nem ao menos sei aquilo que não sei! Aqui me tens, diante de ti, ó meu Deus, porque eu não minto: digo-te o que me vai no coração. Tu iluminarás a minha lucerna, Senhor, meu Deus, iluminarás as minhas trevas.

Santo Agostinho in Confissões, Livro XI

segunda-feira, 27 de dezembro de 2004

 
Correio da Cassini... (agora, já só Cassini)



A Cassini-Huygens agora já é só Cassini. Perdeu o seu segundo nome. Ou melhor, separou-se dele. A sonda Huygens que, embora "adormecida", tinha feito companhia à Cassini, foi finalmente libertada e neste momento está na trajectória de Titan, uma das mais enigmáticas luas de Saturno. Melancólicamente a Cassini fotografa-a já a consideravel distancia. A sonda Huygens continua, no entanto, adormecida e assim continuará até entrar na atmosfera de Titan, no próximo dia 14 de Janeiro. Aí será acordada e durante 2 horas e meia "provará" todos os elementos dessa atmosfera até pousar na superfície de Titan. Todos os dados recolhidos serão enviados para a Cassini e desta receberemos "correio". Titan é a única lua do sistema solar com uma atmosfera densa. Embora lua de Saturno, Titan é maior que o planeta Mercúrio. Alguns dos elementos químicos já reconhecidos na atmosfera de Titan, fazem com que possamos imaginar Titan nas mesmas condições do nosso planeta antes do aparecimento de Vida.

domingo, 26 de dezembro de 2004

 
O que é o tempo?


Robert Smithson, 1970


XXIII, 29. Ouvi dizer a um certo homem douto que o tempo não é senão movimentos do sol, da lua e das estrelas, e eu não concordei. Porque não serão antes os tempos os movimentos de todos os corpos? Será que, se as luzes do céu parassem e continuasse a mover-se a roda do oleiro, deixaria de haver tempo com que medíssemos as suas voltas e disséssemos, ou que se move durante instantes iguais, ou que umas voltas são mais longas e outras menos, se a roda se movesse umas vezes mais vagarosamente e outras mais velozmente? Ou, dizendo isso, não falaríamos também nós no tempo, ou não haveria nas nossas palavras umas sílabas longas, outras breves, a não ser porque aquelas ressoam durante um tempo mais longo e estas durante um tempo mais breve? Ó Deus, concede aos homens a possibilidade de observarem nas coisas pequenas as noções comuns às pequenas e às grandes coisas. Existem os astros e os luminares do céu que servem de sinais para distinguir os tempos, e os dias, e os anos. De facto, existem; mas eu não diria que uma volta daquela roda de madeira é um dia, nem esse homem, por seu lado, diria que o tempo não existe.

30. O meu desejo é conhecer a força e a natureza do tempo, com que medimos os movimentos dos corpos e dizemos, por exemplo, que aquele movimento é mais demorado do que este no dobro do tempo. Na verdade, pergunto eu, visto que se chama dia não só à demora do sol sobre a terra, graças à qual uma coisa é o dia, outra é a noite, mas também a uma volta completa do sol de Oriente a Oriente, o que nos permite afirmar: Passaram tantos dias - diz-se "tantos dias", incluindo as respectivas noites, não se considerando à parte a extensão das noites -, visto que o dia se completa com o movimento do sol e uma volta de Oriente a Oriente, pergunto eu se é o próprio movimento que constitui o dia ou se é a demora em que esse movimento se completa, ou ambas as coisas. Se, com efeito, o dia fosse a primeira coisa, então haveria dia, mesmo que o sol completasse o seu curso em tanto espaço de tempo quanto o de uma hora. Se o dia fosse a segunda coisa, então não haveria dia, se, do nascer do sol a outro nascer do sol, a demora fosse tão breve como a de uma hora, mas o sol daria a volta vinte e quatro vezes, para completar o dia. Se o dia fosse ambas as coisas, nem se chamaria dia ao movimento, se o sol desse uma volta completa no espaço de uma hora, nem à demora do sol se, caso este parasse, passasse tanto tempo quanto ele costuma gastar a fazer uma volta completa de uma manhã a outra manhã. Por conseguinte, neste momento não procuro indagar que coisa seja aquela a que se chama dia, mas antes o que seja o tempo, com que, medindo o percurso do sol, diríamos que ele o completou em menos de metade do tempo do que é costume, se o tivesse completado em tanto espaço de tempo quanto demoram a passar doze horas, e comparando um e outro tempo, diríamos que aquele é uma unidade, este, o dobro, ainda que o sol demorasse, no seu percurso de Oriente a Oriente, umas vezes a unidade de doze horas, outras vezes o dobro. Portanto, ninguém me diga que os tempos são os movimentos dos corpos celestes, porque, tendo o sol parado a pedido de um homem, para que pudesse levar a seu termo uma batalha vitoriosa, o sol estava parado (*), mas o tempo ia avançando. Com efeito, o combate travou-se e terminou durante o espaço de tempo que lhe era suficiente. Vejo, pois, que o tempo é uma certa extensão. Mas vejo? Ou parece-me que vejo? Tu mo mostrarás, ó luz, ó Verdade.

Santo Agostinho in Confissões, Livro XI.

(*)
No dia em que o Senhor entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, Josué falou ao Senhor e disse, na presença dos israelitas: "Detém-te, ó Sol, sobre Guibeon; e tu, ó Lua, sobre o vale de Aialon".
E o Sol deteve-se, e a Lua parou até o povo se ter vingado dos seus inimigos.
Isto está escrito no Livro do Justo. O Sol parou no meio do céu e não se apressou a pôr-se durante quase um dia inteiro.
Nem antes nem depois houve um dia tão longo como aquele em que o Senhor obedeceu à voz do homem, pois o Senhor combatia ao lado de Israel. Depois disto, Josué voltou para o acampamento de Guilgal, com todo o Israel.
Josué, 10:12-15

sábado, 25 de dezembro de 2004

 
Correio da Cassini (postal de Boas Festas)



O Natal da Cassini está repleto de reflexões. Tudo concorre para que assim seja: a imensa solidão; um frio "de rachar", ou seja, o Frio, propriamente dito; espaço, espaço e mais espaço; tempo que não falta - como poderia faltar quando se gira à volta de Cronos, o próprio. As reflexões da Cassini sobre a natureza das coisas, a natureza do tempo, a natureza dos pesos, das gravidades, das massas, das escalas, só é interrompida, por vezes, quando a Cassini se (nos) interroga sobre a natureza do Belo. Nesses momentos, a Cassini fotografa em cor natural aquilo que "vê", espantada: os rosas suaves com que o gigante se veste; a geometria correcta mas dinâmica que permanentemente fala; os azuis acinzentados da sombra que os seus anéis projectam na sua pele; a estaticidade de um movimento brutal. É nestes momentos que a Cassini, através do que nos diz ver, reflete sobre o Belo e o Sublime, sobre os antigos e os novos deuses e nos sugere que, afinal, tudo isto faz sentido, que é, afinal, tudo a mesma coisa, que existe, de facto, uma lógica subterrânea, que unifica e religa todas as coisas, que só há que inventar novas linguagens para que se possam fazer as perguntas que verdadeiramente interessa. As respostas estão lá, tal como estão cá. Sempre estiveram.

 
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Mitchell


Às épocas do ano continuavam a chamar-se estações e às paragens dos comboios também, numa eterna rivalidade de domínio, e tanto assim que chefes de estado e chefes de estação apenas se começaram a diferenciar pelos bonés. - Crescia-se a natureza em homens mulheres animais e árvores e encolhia-se para o fim da sua época já passada como peúgas depois de lavadas em água quente. Com os cigarros apareceram os fósforos e com os binóculos as corridas de cavalos - com os automóveis apareceram os concursos de elegância e com as águas minerais as doenças de fígado - ao mesmo tempo com os instrumentos nasceu a música e com as noites frias o penico. E tanto na cidade como nos campos Eles e Elas iam nascendo. - Umas vezes com mais facilidade saltavam cá para fora, outras tinham de receber o ajudar final que passou a ser uma questão de melhor ou pior flexibilidade no desarticular de saca-rolhas.
De avenidas e parques de ruas e vielas de becos e travessas como de irmãos e irmãs de primos e primas de amigos e amigas de conhecidos e desconhecidos se foi alargando o conhecimento das relações, uns melhores outros piores uns mais altos outros mais baixos uns mais ricos outros mais pobres uns mais sentidos outros mais pensados uns mais artísticos outros mais hipocondríacos até que um dia numa avenida de tal de tal cidade em tal continente neste mundo havia grande burburinho em determinada casa, andava tudo para baixo e para cima em recados e em ordens em chamadas telefónicas e em alvoroço tinha-se chamado a ancestralidade para vir assistir a qualquer coisa, no entanto em todos os outros que passavam na rua a indiferença era imensa, nem se apercebendo da extraordinariedade daquele anseio. (...)
E, perante a indiferença de todas as avenidas de todas as ruas travessas e vielas, Ele ía nascer.

Ruben A. in Caranguejo, 1954.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

 
Notas sobre o ensino

O ensino transformou-se num reino das trevas. No seu interior evaporaram-se as ideias sobre o que devemos, afinal, aprender. Uma reflexão séria, apoiada numa base científica sólida, sobre os objectivos do ensino, é algo que não se vislumbra acontecer em parte alguma. Em vez disso pontificam as duas irmãs - a grande insegurança e a grande confusão.
Experimentam-se continuamente modelos novos. A escola regressou ao princípio da economia de troca directa. O desconhecimento da língua e literatura nacionais pode ser compensado por educação física, e as lacunas em matemática por religião e moral. Os pontos obtidos nas disciplinas nucleares escolhidas pelo aluno têm o dobro do peso dos pontos conseguidos nas disciplinas regulares. Tudo isto faz da escola um mercado, onde se negoceiam notas e onde os alunos regateiam com os professores pontos decimais. O facto de tudo poder ser combinado com tudo, de tudo ser permutável e passível de ser compensado, conduziu à consagração da terceira irmã górgone: a grande aliatoriedade.
O seu domínio fez com que se esfumasse a ideia do valor cultural impermutável de cada disciplina, dependente do respectivo conteúdo. O princípio fundamental de qualquer ordenamento hierárquico dos diversos conteúdos do saber foi posto de parte: a distinção entre o essencial e o acessório, entre o central e o periférico, entre o dever e a escolha, entre as disciplinas nucleares e as facultativas.
O mito e a cosmologia ensinam-nos: quando o desenvolvimento bate no fundo, é tempo de arrepiarmos caminho. A noite mais longa é, ao mesmo tempo, o solstício; após a descida ao inferno segue-se a ressurreição. Por isso são horas de acabarmos com o domínio das três irmãs que são a grande insegurança, a grande confusão e a grande aliatoriedade. Uma das górgones mitológicas é a Medusa, cujo olhar é mortífero; se a confrontarmos com um espelho, ela mata-se a si própria. Comecemos, pois, por aí.

D. Schwanitz in Cultura, 1999.

 
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De Gloria Origgi e Dan Sperber, o estudo "Evolution, communication and the proper function of language". Obrigatório ler. Aqui.

 
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Surpresa

Ontem a Opportunity fotografa, no vasto deserto de Marte, esta coisa estranha. Não faz parte da paisagem. É alienígena. Afinal... é apenas o que resta do escudo protector da Opportunity na sua descida até ao planeta vermelho. Lá, os ETs somos nós...


quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

 
Dezassete haiku

1
O que disseram
a tarde e a montanha
Já o perdi.

2
A vasta noite
agora não é mais
que uma fragrância.

3
É ou não é
o sonho que esqueci
antes da alba?

4
Calam-se as cordas.
A música sabia
tudo o que eu sinto.

5
Já não me alegram
estas amendoeiras.
Tua lembrança.

6
Obscuramente
livros, estampas, chaves
seguem-me a sina.

7
Desde aquele dia
que não movi as peças
no tabuleiro.

8
É no deserto
que acontece a aurora.
Alguém o sabe.

9
A espada ociosa
sonha com as batalhas.
Meu sonho é outro.

10
O homem morreu.
Mas a barba não sabe.
Crescem as unhas.

11
Esta é a mão
que por vezes tocava
o teu cabelo.

12
Sob o alpendre
o espelho não imita
mais do que a lua.

13
Sob essa lua
a sombra que se alarga
é uma só.

14
É um império
essa luz que se apaga
ou um pirilampo?

15
A lua nova.
Ela também a vê
da outra porta.

16
Longe, um trinado.
O rouxinol não sabe
que te consola.

17
A velha mão
insiste em traçar versos
prò esquecimento.

J. L. Borges in A Cifra, 1981.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

 
Janela da noite

a porta do bar é a janela da noite
a luz é intensa mas não cobre a escuridão
as paredes são o nevoeiro dormitando nas ruas
e as gargalhadas transformam-se em silêncio
e as sombras em eco da música ambiente
à espera que tudo continue na mesma
logo que a manhã nasça e as mulheres suadas
retornem ao quotidiano dos lençóis lavados

por enquanto acalentamos no céu da boca
o amargo da cerveja fresca o aperto do tabaco
a conversa anónima pintada com a cor da loucura
esquecemos os copos vazios as mesas iguais e húmidas
as garrafas arrumadas por rótulos gastos nas prateleiras
e o cansaço parecido com uma árvore em pleno Outono
para nos contentarmos na voragem
de demónios de outros infernos
com a longa viagem de mais uma insónia
seguros do regresso mais do que provável
ao princípio de todas as coisas
a porta do bar é a janela da noite envidraçada
ode imersa no olhar subterrâneo dos luares beijando a terra
clareira onde os homens se misturam
na igualdade das suas sedes
rigorosamente abandonados à solidão
a que também se dá por vezes
o nome de madrugada

José António Gonçalves

segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

 
Que familiar...



...pensará a Opportunity. Só o céu não é azul.

 
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Sabemos que os animais sonham. Há versos latinos em que se fala do galgo que ladra atrás da lebre que persegue em sonhos. Teríamos, portanto, nos sonhos a mais antiga das actividades estéticas; muito curiosa porque é de ordem dramática. Vou acrescentar o que diz Addison (sem o saber, confirmando Góngora) sobre o sonho, autor de representações. Addison observava que no sonho nós somos o teatro, o auditório, os actores, o argumento e as palavras que ouvimos. Fazemos tudo de modo inconsciente e tudo tem uma vida que não costuma ter na realidade. Há pessoas que têm sonhos débeis, sonhos inseguros (pelo menos, assim mo dizem). Os meus sonhos são muito vivos.

J. L. Borges in Sete Noites, 1980.

 
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A educação de José




Há muitos anos, cerca de quinze, fui convidado para um jantar. Pessoas amigas reuniam um grupo restrito de amigos. Pessoas regressadas de Angola mas ainda com negócios em Angola. Amigo dos filhos desses meus amigos, foi-me apresentado José Sócrates e a sua mulher (na altura, desconheço se ainda é a mesma), uma rapariga novíssima, de nome Sofia, muito bonita e gravidíssima. Após o jantar, durante e depois do café, esse jovem Sócrates, ligeiramente "tocado" conseguiu fazer com que eu regressasse a casa mais cedo. A conversa descritiva e marialva sobre as suas aventuras sexuais e amorosas anteriores fez com que, com grande constrangimento, a jovem Sofia não tirasse os olhos do tapete e eu me sentise incomodado ao ponto de me despedir e saír, agradecendo o jantar aos meus anfitriões, tão constrangidos e incomodados com a conversa quanto eu.
É este o José Sócrates que conheci. E se, como se diz, as pessoas não mudam, só mudam de amores, então justifica-se plenamente esta série de pequenos textos educativos. Para além de tudo isto, é o nosso futuro primeiro-ministro.


domingo, 19 de dezembro de 2004

 
Hopper e as linguagens





O quarto de hotel. O desencontro. A solidão, o vazio sensorial, a convocação do espectador enquanto voyeur.


sábado, 18 de dezembro de 2004

 
O PRISIONEIRO

Uma lima.
A primeira das pesadas portas de ferro.
Um dia serei livre,


MACBETH

Os nossos actos seguem o seu caminho
Que não conhece fim.
Matei o meu rei para que Shakespeare
Urdisse a sua tragédia.


ETERNIDADES

A serpente que cinge o mar e é o mar,
O repetido remo de Jasão, a jovem espada de Sigurd.
Só perduram no tempo as coisas
Que não foram do tempo.


J. L. Borges in A Rosa Profunda, 1975

 
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Correio da Cassini

Dione e Saturno. A cor natural. As escalas. A geometria. O rigor das distancias. A palidez dela. As cores envolventes dele.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

 
Sei a Verdade, mas não posso discorrer sobre a Verdade. O precioso dom de comunicá-la não me foi outorgado. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo jogo. Mais vale ser executado que matar-se. Limitar-me-ei pois à exposição da abominável heresia.
O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens, que o sacrificaram à Cruz e seriam redimidos por Ele. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito não só para pregar o amor mas para sofrer o martírio.
Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. Não bastava a morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta para ferir a imaginação dos homens até ao fim da existência. O Senhor dispôs os factos de maneira patética. Tal é a explicação da última ceia, das palavras de Jesus que pressagiam a entrega, do repetido sinal a um dos seus discípulos, da bênção do pão e do vinho, das juras de Pedro, da solitária vigília em Getsémani, do sono dos doze, da súplica humana do Filho, do suor como sangue, das espadas, do beijo que atraiçoa, de Pilatos que lava as mãos, da flagelação, do escárnio, dos espinhos, da púrpura e do ceptro de cana, do vinagre com fel, da Cruz no alto de uma colina, da promessa ao bom ladrão, da terra que treme e das trevas.
A divina misericórdia, à qual devo tantas mercês, permitiu-me descobrir a autêntica e secreta razão do nome da Seita. Em Kerioth, onde provavelmente nasceu, perdura um conventículo que se alcunha dos Trinta Dinheiros. Esse nome foi o primitivo e dá-nos a chave. Na tragédia da Cruz - escrevo-o com a devida reverência - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Involuntários foram os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que elegeu Barrabás, involuntário foi o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que ergueram a Cruz do Seu martírio e cravaram os cravos e deitaram sortes. Voluntários só houve dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas que eram o preço da salvação das almas e logo se enforcou. Contava então trinta e três anos, como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.

J.L. Borges in O Livro de Areia, 1975.

 
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Correio da Cassini




A Cassini fotografa aqui a face iluminada do gigante Saturno. Particularidade: a posição relativamente ao Sol faz com que os anéis projectem sombras no hemisfério norte do planeta.

 
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Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

António José Forte

 
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Cavalo de Tróia





Muito concentrados nos nossos problemazinhos, na nossa economiazinha, no nosso governozinho, nas nossas eleiçõesinhas e, consequentemente muito desatentos em relação ao resto. Convém lembrar que o resto é o mundo. Em entrevista no Expresso, Kadhafi faz um aviso relativamente à Turquia na UE.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

 
Posse do outrora

Sei que perdi tantas coisas que poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o negro e penso nessas impossíveis cores como não pensam os que vêem. O meu pai morreu e está sempre ao meu lado. Quando quero escandir versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos. Ílion passou, mas Ílion continua no hexâmetro que a lamenta. Israel existiu quando era uma antiga nostalgia. Qualquer poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não submetidos à véspera, que é aflição, nem aos alvoroços e terrores da esperança. Não há outros paraísos senão os paraísos perdidos.

J. L. Borges
in Os Conjurados, 1985.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

 
Correio da Cassini



Desta vez a Cassini envia, para os arquivos da Agência Espacial Europeia, esta fotografia com as cores naturais: a geometria, a suavidade, o aparente frágil equilíbrio. O gigante Saturno, Cronos, o Tempo, a velocidade, a promessa da imensidão, talvez do infinito, promessa tão grata aos seres finitos como nós.

terça-feira, 14 de dezembro de 2004

 
Cy Twombly

(des)aprender a desenhar (13)



Cy Twombly, Untitle, grafite, crayon, óleo e pastel s/papel, 1970, 51x72 cm.

Beaucoup de compositions rappellent, a-t-on dit, les scrawls des enfants. L'enfant, c'est l'infans, celui qui ne parle pas encore; mais l'enfant qui conduit la main de Twombly, lui, écrit déjà, c'est un écolier: papier quadrillé, crayon de couleur, bâtonnets alignés, lettres répétées, petits panaches de hachures, comme la fumée qui sort de la locomotive des dessins d'enfants. Cependant, une fois de plus, le stéréotype ("de quoi ça a l'air") se retourne subtilement. La production (graphique) de l'enfant n'est jamais idéelle: elle conjoint dans intermédiaire la marque objective de l'instrument (un crayon, objet commercial) et le ça du petit sujet qui pèse, appuie, insiste sur la feuille. Entre l'outil et la fantaisie, Twombly interpose l'idée: le crayon de couleur devient la couleur-crayon: la réminiscence (de l'écolier) se fait signe total: du temps, de la culture, de la société (ceci est proustien, plus que mallarméen).
La gaucherie est rarement légère; le plus souvent, gauchir, c'est appuyer; la vraie maladresse insiste, s'obstine, elle veut se faire aimer (tout comme l'enfant veut donner à voir ce qu'il fait, l'exhibe triomphalement à sa mère). Il appartient à Twombly de souvent renverser cette gaucherie très retorse dont j'ai parlé: cela n'appuie pas, bien au contraire, cela s'efface peu à peu, s'estompe, tout en gardant la délicate salissure du coup de gomme: la main a tracé quelque chose comme une fleur et puis s'est mise à traîner sur cette trace; la fleur a été écrite, puis désécrite; mais les deux mouvements restent vaguement surimprimés; c'est un palimpseste pervers: trois textes (si l'ont y ajoute la sorte de signature, de légende ou de citation: Sesostris) sont là, l'un tendent à effacer l'autre, mais à seule fin, dirait-on, de donner à lire cet effacement: véritable philosophie du temps. Comme toujours, il faut que la vie (l'art, le geste, le travail), témoigne sans désespoir de l'inéluctable disparition: en s'engendrant (tels ces a enchaînés selon un seul et même rond de main, répété, translaté), en donnant à lire leur engendrement (ce fut autrefois le sens de l'esquisse), les formes (du moins, à coup sûr, celles de Twombly) ne chantent pas plus les merveilles de la génération que les mornes stérilités de la répétition; elles ont à charge, dirait-on, de lier dans un seul état ce qui apparaît et ce qui disparaît; séparer l'exaltation de la vie et la peur de la mort, c'est plat; l'utopie, dont l'art peut être le langage, mais à quoi résiste toute la névrose humaine, c'est de produire un seul affect: ni Éros, ni Thanatos, mais Vie-Mort, d'une seule pensée, d'un seul geste. De cette utopie n'approchent ni l'art violent ni l'art glacé, mais plutôt, à mon goût, celui de Twombly, inclassable, parce qu'il conjoint, par une trace inimitable, l'inscription et l'effacement, l'enfance et la culture, la dérive et l'invention.

Roland Barthes in Cy Twombly ou «Non multa sed multum».


Cy Twombly, Untitle, grafite, crayon, óleo e pastel s/papel, 1970, 70x100 cm.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

 
O fio da fábula

O fio que a mão de Ariadne deixou na mão de Teseu (na outra estava a espada) para que este se aventurasse no labirinto e descobrisse o centro, o homem com cabeça de touro ou, como pretende Dante, o touro com cabeça de homem, e o matasse e pudesse, já executada a proeza, decifrar as redes de pedra e voltar para ela, para o seu amor.
As coisas aconteceram assim. Teseu não podia saber que do outro lado do labirinto estava o outro labirinto, o do tempo, e que num lugar já fixado estava Medeia.
O fio perdeu-se, o labirinto perdeu-se também. Agora nem sequer sabemos se nos rodeia um labirinto, um secreto cosmos ou um caos ocasional. O nosso mais belo dever é imaginar que há um labirinto e um fio. Nunca daremos com o fio; talvez o encontremos e o percamos num acto de fé, num ritmo, no sono, nas palavras que se chamam filosofia ou na mera e simples felicidade.

Cnossos, 1984.

J. L. Borges in Os Conjurados, 1985.

domingo, 12 de dezembro de 2004

 
Esta semana, em Paris

Figuras incontornáveis, Jan Fabre e Marina Abramovic reunem-se, pela primeira vez, numa performance inédita no Palácio de Tokyo. Durante quatro horas, encarnam as figuras do guerreiro e da virgem, operando, ao longo da performance, "o culto do sacrifício e do perdão".

Marina Abramovic é uma figura histórica da performance e Jan Fabre é um dos autores europeus responsáveis pela renovação do teatro desde os anos 80.
Nesta performance são postas em causa todas as categorias estéticas. Enquanto Jan Fabre inventa um espectáculo de dansa e ópera, Marina Abramovic faz do seu corpo a matéria prima neste misterioso espectáculo.
Em Paris, na próxima terça-feira, 14 de Dezembro, das 18 às 22.



 
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Correio da Cassini


From the Dark Side...



...neste caso não é "of the force". Neste caso é de Saturno, Cronos, o Tempo, moldura delimitante de todas as coisas, feito de agoras, como diz Borges, de ápices, Tempo que sonha que Alguém o sonha como um espelho promete devolver a imagem guardada a quem por ele passar.

sábado, 11 de dezembro de 2004

 
Alguém sonha

O que terá sonhado o Tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice? Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso. Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria. Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas. Sonhou os Gregos, que descobriram o diálogo e a dúvida. Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal. Sonhou a palavra, esse lerdo e rígido símbolo. Sonhou a felicidade que tivemos ou que sonhamos agora ter tido. Sonhou a primeira manhã de Ur. Sonhou o misterioso amor da bússola. Sonhou a proa do noroeguês e a proa do português. Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, esse que morreu uma tarde numa cruz. Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates. Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho. Sonhou o livro, esse espelho que nos revela sempre outro rosto. Sonhou o espelho em que Francisco López Merino e a sua imagem se viram pela última vez. Sonhou o espaço. Sonhou a música, que pode prescindir do espaço. Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável que a da música, porque inclui a música. Sonhou uma quarta dimensão e a fauna singular que a habita. Sonhou o número da areia. Sonhou os números transfinitos, onde não se chega contando. Sonhou o primeiro que no trovão escutou o nome de Thor. Sonhou as faces opostas de Jano, que nunca se verão. Sonhou a Lua e os dois homens que caminharam sobre a Lua. Sonhou o poço e o pêndulo. Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinosa. Sonhou o jasmin, que não pode saber que o sonham. Sonhou as gerações das formigas e as gerações dos reis. Sonhou a imensa teia que tecem todas as aranhas do mundo. Sonhou o arado e o martelo, o caranguejo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrez. Sonhou a enumeração a que os eruditos chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos. Sonhou a minha avó Frances Haslam na guarnição de Junín, a pouca distância das lanças do deserto, lendo a sua Bíblia e o seu Dickens. Sonhou que nas batalhas os Tártaros cantavam. Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que se transformará numa onda. Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet. Sonhou os arquétipos. Sonhou que ao longo dos Verões, ou num céu anterior aos Verões, há uma única rosa. Sonhou os rostos dos mortos, que são agora baças fotografias. Sonhou a primeira manhã de Uxmal. Sonhou o acto da sombra. Sonhou as cem portas de Tebas. Sonhou os passos do labirinto. Sonhou o nome secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha. Sonhou a vida dos espelhos. Sonhou os signos que o escriba acocorado traçará. Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas. Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança. Sonhou o deserto. Sonhou a madrugada que espreita. Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes da água. Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido. Sonhou Alexandre da Macedónia. Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre. Sonhou o mar e a lágrima. Sonhou o cristal. Sonhou que Alguém o sonha.

J. L. Borges in Os Conjurados, 1985.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

 
Correio da Cassini

Iapetus está aqui iluminada pelo reflexo da luz de Saturno. A Cassini presencia o momento...




quarta-feira, 8 de dezembro de 2004

 
Ao espelho

Porque insistes, espelho permanente?
Porque duplicas, misterioso irmão,
O menor movimento desta mão?
Porquê o teu reflexo de repente?
És o outro eu de que falou o grego
E espreitas desde sempre. Na lisura
Da água incerta ou do cristal que dura
Procuras-me e é inútil eu estar cego.
O não te ver, mas o saber que existes
Acrescenta-te horror, poder com que ousas
Multiplicar o número das coisas
Que somos e as nossas sinas tristes.
Quando eu morrer, vais copiar um outro
E depois outro, outro, outro, outro...

J.L. Borges in A Rosa Profunda, 1975.

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

 
Correio da Cassini




Se alguma dúvida havia relativamente à magnificência dos anéis de Saturno, fica desfeita perante esta fotografia da Cassini. Curiosamente, a fotografia é tirada de baixo para cima, a Cassini passa aqui debaixo dos anéis o que provoca uma ligeira ilusão de óptica: o que está mais perto é a parte superior da imagem.

 
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Um sonho


Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.

J. L. Borges
in A Cifra, 1981.

domingo, 5 de dezembro de 2004

 
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Cy Twombly

(des)aprender a desenhar (12)


Cy Twombly, Untitle, 2001, acrílico, pastel, grafite e colagem s/ papel, 124x99 cm



La lettre, chez Twombly - le contraire même d'une lettrine -, est faite sans application. Elle n'est pourtant pas enfantine, car l'enfant s'applique, appuie, arrondit, tire la langue; il travaille dur pour rejoindre le code des adultes. Twombly s'en éloigne, il desserre, il traîne; sa main semble entrer en lévitation; on dirait que le mot a été écrit du bout des doigts, non par dégoût ou par ennui, mais par une sorte de fantaisie ouverte au souvenir d'une culture défunte, qui n'aurait laissé que la trace de quelques mots. Chateaubriand: «On déterre dans les îles de Norvège quelques urnes gravées de caractères indéchiffrables. À qui appartiennent ces cendres? Les vents n'en savent rien.» L'écriture de Twombly est encore plus vaine: c'est déchiffrable, ce n'est pas interprétable; les traits eux-mêmes peuvent bien en être précis, discontinus; ils n'en ont pas moins pour fonction de restituer ce vague qui empêcha Twombly, à l'armée, d'être un bon déchiffreur des codes militaires («I was a little too vague for that»). Or le vague, paradoxalement, exclut tout idée d'énigme; le vague ne va pas avec la mort; le vague est vivant.

Roland Barthes
in Cy Twombly ou «Non multa sed multum».



Cy Twombly, Untitle, 2001, acrílico, pastel, grafite e colagem s/ papel, 124x99 cm

 
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Correio da Cassini

Prometeu surge-nos aqui como uma rocha gigantesca com cerca de 100 quilómetros de diâmetro. Será a mesma que Prometeu, no seu castigo, carregava incessantemente até ao alto da montanha para logo a seguir rolar até ao sopé?



sábado, 4 de dezembro de 2004

 
Depois de vinte anos de trabalhos e estranhas aventuras, Ulisses, filho de Laertes, volta à sua Ítaca. Com a espada de ferro e com o arco executa a devida vingança. Atónita até ao medo, Penélope não se atreve a reconhecê-lo e alude, para o provar, a um segredo que partilham ambos e mais ninguém: a do seu tálamo comum, que nenhum dos mortais pode mover, porque a oliveira com que foi talhado o liga à terra. Esta é a história que se lê no livro vigésimo terceiro da Odisseia.
Homero não ignorava que as coisas se devem dizer de maneira indirecta. Também não o ignoravam os seus Gregos, cuja linguagem natural era o mito. A fábula do tálamo que é uma árvore é uma espécie de metáfora. A rainha soube que o desconhecido era o rei quando se viu nos seus olhos, quando sentiu no seu amor que o amor de Ulisses a encontrava.

J. L. Borges
in História da Noite, 1977.



A ele deu resposta a sensata Penélope:
"Meu filho, tenho o coração no peito cheio de espanto;
não consigo proferir palavra alguma, nem perguntar nada,
nem sequer olhar para ele, olhos nos olhos. Mas se ele é
na verdade Ulisses chegado a sua casa, sem dúvida ele e eu
nos reconheceremos de modo seguro, pois temos
sinais, que só nós sabemos, escondidos dos outros."
(...)

"Mulher incompreensível, mais do que a qualquer outra mulher
foi a ti que deram um coração inflexível os que no Olimpo habitam.
Nenhuma outra mulher se manteria afastada com tal dureza
do marido que, tendo padecido tantos sofrimentos,
regressa no vigésimo ano à terra pátria.
Agora, ó ama, faz-me uma cama, para que me deite.
Na verdade o coração dela é feito de ferro."

A ele deu resposta a sensata Penélope:
"Homem incompreensível, não sou orgulhosa nem te desdenho.
Também não me espanto, pois lembro-me bem como eras
quando partiste de Ítaca na tua nau de longos remos.
Vai lá, ó Euricleia, e faz-lhe a cama robusta,
fora do quarto bem construído, que ele próprio fez.
Depois de teres tirado para fora a robusta cabeceira,
põe cobertores, velos e mantas resplandecentes."

Assim falou, para pôr à prova o marido. Mas Ulisses
encolerizou-se e assim disse à esposa fiel:
"Mulher, na verdade disseste uma palavra dolorosa!
Quem é que mudou o lugar da minha cama? Difícil seria
até para quem tivesse grande perícia, a não ser que tenha
vindo um deus, que facilmente a colocou noutro lugar.
Mas não há homem vivo entre os mortais, ainda que jovem,
que fosse capaz de tirar de lá a cama, pois um sinal notável foi
incorporado na cama trabalhada que eu (e mais ninguém!) fiz.
Dentro do pátio crescia uma oliveira verdejante,
forte e vigorosa, cujo tronco se assemelhava a uma coluna.
Em torno dela construí o quarto nupcial, até que o completei
com pedras bem justas e por cima pus um telhado.

Homero in Odisseia, Canto XXIII, 105, 170.

 
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Diz a menina...

Convocada como atriz, mentira que "comprou" de um qualquer produtor televisivo:
«sabe... eu já não posso ir a um local público... as pessoas observam-me... se me divirto "demais" posso ter consequências na minha carreira profissional...».
Que tal ir-se divertir "demais" a Freixo de Espada à Cinta ou Vilar Formoso ou a Cáceres. Aí já ninguém sabe quem você é. Já ninguém sabe que é famosa...
Ou julga que o mundo se resume a 3 quilómetros quadrados do seu apartamentozinho de chão flutuante cerejeira e tectos rebaixados a "pladur" com focos embutidos???
«Miséria das misérias, tudo é miséria», Vincent Van Gogh.
Só mudou o século.


 
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Infelizmente...

Infelizmente hoje não consigo dormir... fazendo zapping chego, às 2 da manhã a um inusitado programa chamado "Só visto" da RTP 1. Programa para primatas (só me faz lembrar aqueles fantásticos documentários sobre a chimpazé "Angi" que passam no "Odisseia"). Mesmo assim, acho que seria uma ofensa para a dita chimpanzé. Actores que o não são (simples "badamecos" cozinhados no Bairro Alto), misturado com culinária que o não é, polvilhado com Teresa Guilhermes e Cª Lª (a prostituição mental instituída), a prova provada do "tico e do teco" (aqueles 2 neurónios que nunca tiveram o prazer de se conhecer), a miséria total, a aculturação total, o verdadeiro sucesso no Uganda - exceptuando os círculos intelectuais desse país - nem lá "chupariam" esta treta.
Pobre, pobre, pobre, pobre país o nosso!
Como é que isto passa na RTP 1. Serviço público???


 
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O impensável...

Oiço na Sic Notícias: «... a juíza, temendo um levantamento popular, decidiu não reter Pinto da Costa e convocá-lo para novo interrogatório na próxima 3ª feira...».
A justiça refém da vontade popular???
Tenho um amigo que costuma dizer que só há três diferenças entre Portugal e a Sicília: a Sicília é mais pequena e é uma ilha, as mulheres sicilianas são mais bonitas do que as portuguesas e, pelo menos, lá toda a gente sabe a quem deve beijar a mão.
Ficamos assim.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

 
O sono

Quando os relógios da meia-noite oferecerem
Um tempo generoso,
Irei mais longe que os remadores de Ulisses,
À inacessível região do sono,
À memória humana.
Dessa região imersa resgato restos
Que nunca chego a compreender:
Ervas de botânica simples,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que são na verdade máscaras,
Palavras de línguas muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode dar o dia.
Serei ninguém ou todos. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que observou
Esse outro sono, a minha vigília. Julga-a,
Resignado e sorridente.

J. L. Borges in A Rosa Profunda, 1975.

 
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Não querendo concorrer com a artística Cassini, a Spirit e a Opportunity enviam, de vez em quando, um "retrato" dos seus passeios. Aqui, a Spirit "viu" alguma coisa interessante: uma pedra com duas cores...




 
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Cy Twombly


(des)aprender a desenhar (11)




Cy Twombly, Liri, 1990, acrílico, pastel, grafite e crayon s/ papel, 78x56 cm.

La valeur déposée par Twombly dans son oeuvre peut tenir dans ce que Sade appelait le principe de délicatesse («Je respecte les goûts, les fantaisies... je les trouve respectables... parce que la plus bizarre de toutes, bien analysée, remonte toujours à un principe de délicatesse»). Comme principe, la «délicatesse» n'est ni morale ni culturelle; c'est une pulsion (pourquoi la pulsion serait-elle de droit violente, grossière?), une certaine demande du corps lui-même.

Roland Barthes
in Cy Twombly ou «Non multa sed multum».


quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

 
Resposta aos mails dos psicólogos e psicanalistas «transpessoais»:
Divertir-me-ía imenso ler as teses de doutoramento e mestrado destes «doutores»:



Um obrigado a CAA do Blasfémias

 
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Nem sequer sou poeira

Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
serei paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou sonho
Que entretece no sono e na vigília
Meu pai e irmão, o capitão Cervantes,
Que militou nos mares de Lepanto
E sabia uns latins e algum árabe...
Para que eu pudesse sonhar outro
Cuja verde memória será parte
Dos vãos dias dos homens, eu suplico-te:
Meu Deus, meu sonhador, sonha-me ainda.

J. L. Borges in História da Noite, 1977.

 
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Situação

Diagnóstico feito ao fim da gripe santanista.
Mas... atenção à memória!
Ao saír da cama desta gripe já toda a gente se esqueceu da pneumonia guterrista? Mesmo com as refeições servidas na cama à luz da mais equivocante leitura do termo "solidariedade"?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

 
A educação de Pedro (última lição)



Todos os Homens honestos mataram César. A alguns faltou arte, a outros coragem e a outros oportunidade mas a nenhum faltou a vontade.

Marcus Tullius Ciceroin, Philippicae




Rothko

 
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Correio da Cassini

A valente Cassini continua solitária e vigilante na imensa noite de Saturno. Passa aqui sobrevoando os anéis a cerca de seiscentos mil quilómetros do planeta. Mais uma vez fotografa, regista: a imensidão ou apenas a sua solidão? A sua coragem ou apenas o nosso espanto?



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