sexta-feira, 17 de dezembro de 2004
Sei a Verdade, mas não posso discorrer sobre a Verdade. O precioso dom de comunicá-la não me foi outorgado. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo jogo. Mais vale ser executado que matar-se. Limitar-me-ei pois à exposição da abominável heresia.
O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens, que o sacrificaram à Cruz e seriam redimidos por Ele. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito não só para pregar o amor mas para sofrer o martírio.
Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. Não bastava a morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta para ferir a imaginação dos homens até ao fim da existência. O Senhor dispôs os factos de maneira patética. Tal é a explicação da última ceia, das palavras de Jesus que pressagiam a entrega, do repetido sinal a um dos seus discípulos, da bênção do pão e do vinho, das juras de Pedro, da solitária vigília em Getsémani, do sono dos doze, da súplica humana do Filho, do suor como sangue, das espadas, do beijo que atraiçoa, de Pilatos que lava as mãos, da flagelação, do escárnio, dos espinhos, da púrpura e do ceptro de cana, do vinagre com fel, da Cruz no alto de uma colina, da promessa ao bom ladrão, da terra que treme e das trevas.
A divina misericórdia, à qual devo tantas mercês, permitiu-me descobrir a autêntica e secreta razão do nome da Seita. Em Kerioth, onde provavelmente nasceu, perdura um conventículo que se alcunha dos Trinta Dinheiros. Esse nome foi o primitivo e dá-nos a chave. Na tragédia da Cruz - escrevo-o com a devida reverência - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Involuntários foram os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que elegeu Barrabás, involuntário foi o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que ergueram a Cruz do Seu martírio e cravaram os cravos e deitaram sortes. Voluntários só houve dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas que eram o preço da salvação das almas e logo se enforcou. Contava então trinta e três anos, como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.
J.L. Borges in O Livro de Areia, 1975.
O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens, que o sacrificaram à Cruz e seriam redimidos por Ele. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito não só para pregar o amor mas para sofrer o martírio.
Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. Não bastava a morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta para ferir a imaginação dos homens até ao fim da existência. O Senhor dispôs os factos de maneira patética. Tal é a explicação da última ceia, das palavras de Jesus que pressagiam a entrega, do repetido sinal a um dos seus discípulos, da bênção do pão e do vinho, das juras de Pedro, da solitária vigília em Getsémani, do sono dos doze, da súplica humana do Filho, do suor como sangue, das espadas, do beijo que atraiçoa, de Pilatos que lava as mãos, da flagelação, do escárnio, dos espinhos, da púrpura e do ceptro de cana, do vinagre com fel, da Cruz no alto de uma colina, da promessa ao bom ladrão, da terra que treme e das trevas.
A divina misericórdia, à qual devo tantas mercês, permitiu-me descobrir a autêntica e secreta razão do nome da Seita. Em Kerioth, onde provavelmente nasceu, perdura um conventículo que se alcunha dos Trinta Dinheiros. Esse nome foi o primitivo e dá-nos a chave. Na tragédia da Cruz - escrevo-o com a devida reverência - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Involuntários foram os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que elegeu Barrabás, involuntário foi o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que ergueram a Cruz do Seu martírio e cravaram os cravos e deitaram sortes. Voluntários só houve dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas que eram o preço da salvação das almas e logo se enforcou. Contava então trinta e três anos, como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.
J.L. Borges in O Livro de Areia, 1975.