sábado, 11 de dezembro de 2004
Alguém sonha
O que terá sonhado o Tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice? Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso. Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria. Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas. Sonhou os Gregos, que descobriram o diálogo e a dúvida. Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal. Sonhou a palavra, esse lerdo e rígido símbolo. Sonhou a felicidade que tivemos ou que sonhamos agora ter tido. Sonhou a primeira manhã de Ur. Sonhou o misterioso amor da bússola. Sonhou a proa do noroeguês e a proa do português. Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, esse que morreu uma tarde numa cruz. Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates. Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho. Sonhou o livro, esse espelho que nos revela sempre outro rosto. Sonhou o espelho em que Francisco López Merino e a sua imagem se viram pela última vez. Sonhou o espaço. Sonhou a música, que pode prescindir do espaço. Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável que a da música, porque inclui a música. Sonhou uma quarta dimensão e a fauna singular que a habita. Sonhou o número da areia. Sonhou os números transfinitos, onde não se chega contando. Sonhou o primeiro que no trovão escutou o nome de Thor. Sonhou as faces opostas de Jano, que nunca se verão. Sonhou a Lua e os dois homens que caminharam sobre a Lua. Sonhou o poço e o pêndulo. Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinosa. Sonhou o jasmin, que não pode saber que o sonham. Sonhou as gerações das formigas e as gerações dos reis. Sonhou a imensa teia que tecem todas as aranhas do mundo. Sonhou o arado e o martelo, o caranguejo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrez. Sonhou a enumeração a que os eruditos chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos. Sonhou a minha avó Frances Haslam na guarnição de Junín, a pouca distância das lanças do deserto, lendo a sua Bíblia e o seu Dickens. Sonhou que nas batalhas os Tártaros cantavam. Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que se transformará numa onda. Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet. Sonhou os arquétipos. Sonhou que ao longo dos Verões, ou num céu anterior aos Verões, há uma única rosa. Sonhou os rostos dos mortos, que são agora baças fotografias. Sonhou a primeira manhã de Uxmal. Sonhou o acto da sombra. Sonhou as cem portas de Tebas. Sonhou os passos do labirinto. Sonhou o nome secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha. Sonhou a vida dos espelhos. Sonhou os signos que o escriba acocorado traçará. Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas. Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança. Sonhou o deserto. Sonhou a madrugada que espreita. Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes da água. Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido. Sonhou Alexandre da Macedónia. Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre. Sonhou o mar e a lágrima. Sonhou o cristal. Sonhou que Alguém o sonha.
J. L. Borges in Os Conjurados, 1985.
O que terá sonhado o Tempo até agora, que é, como todos os agoras, o ápice? Sonhou a espada, cujo melhor lugar é o verso. Sonhou e lavrou a sentença, que pode simular a sabedoria. Sonhou a fé, sonhou as atrozes Cruzadas. Sonhou os Gregos, que descobriram o diálogo e a dúvida. Sonhou o aniquilamento de Cartago pelo fogo e pelo sal. Sonhou a palavra, esse lerdo e rígido símbolo. Sonhou a felicidade que tivemos ou que sonhamos agora ter tido. Sonhou a primeira manhã de Ur. Sonhou o misterioso amor da bússola. Sonhou a proa do noroeguês e a proa do português. Sonhou a ética e as metáforas do mais estranho dos homens, esse que morreu uma tarde numa cruz. Sonhou o sabor da cicuta na língua de Sócrates. Sonhou esses dois curiosos irmãos, o eco e o espelho. Sonhou o livro, esse espelho que nos revela sempre outro rosto. Sonhou o espelho em que Francisco López Merino e a sua imagem se viram pela última vez. Sonhou o espaço. Sonhou a música, que pode prescindir do espaço. Sonhou a arte da palavra, ainda mais inexplicável que a da música, porque inclui a música. Sonhou uma quarta dimensão e a fauna singular que a habita. Sonhou o número da areia. Sonhou os números transfinitos, onde não se chega contando. Sonhou o primeiro que no trovão escutou o nome de Thor. Sonhou as faces opostas de Jano, que nunca se verão. Sonhou a Lua e os dois homens que caminharam sobre a Lua. Sonhou o poço e o pêndulo. Sonhou Walt Whitman, que decidiu ser todos os homens, como a divindade de Espinosa. Sonhou o jasmin, que não pode saber que o sonham. Sonhou as gerações das formigas e as gerações dos reis. Sonhou a imensa teia que tecem todas as aranhas do mundo. Sonhou o arado e o martelo, o caranguejo e a rosa, as badaladas da insónia e o xadrez. Sonhou a enumeração a que os eruditos chamam caótica e que, de facto, é cósmica, porque todas as coisas estão unidas por vínculos secretos. Sonhou a minha avó Frances Haslam na guarnição de Junín, a pouca distância das lanças do deserto, lendo a sua Bíblia e o seu Dickens. Sonhou que nas batalhas os Tártaros cantavam. Sonhou a mão de Hokusai, traçando uma linha que se transformará numa onda. Sonhou Yorick, que vive para sempre numas palavras do ilusório Hamlet. Sonhou os arquétipos. Sonhou que ao longo dos Verões, ou num céu anterior aos Verões, há uma única rosa. Sonhou os rostos dos mortos, que são agora baças fotografias. Sonhou a primeira manhã de Uxmal. Sonhou o acto da sombra. Sonhou as cem portas de Tebas. Sonhou os passos do labirinto. Sonhou o nome secreto de Roma, que era a sua verdadeira muralha. Sonhou a vida dos espelhos. Sonhou os signos que o escriba acocorado traçará. Sonhou uma esfera de marfim que encerra outras esferas. Sonhou o caleidoscópio, grato aos ócios do doente e da criança. Sonhou o deserto. Sonhou a madrugada que espreita. Sonhou o Ganges e o Tamisa, que são nomes da água. Sonhou mapas que Ulisses não teria compreendido. Sonhou Alexandre da Macedónia. Sonhou o muro do Paraíso, que deteve Alexandre. Sonhou o mar e a lágrima. Sonhou o cristal. Sonhou que Alguém o sonha.
J. L. Borges in Os Conjurados, 1985.