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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

 

NOTAS PARA UMA ABORDAGEM DO CORPO

Quando se aborda o corpo, de uma perspectiva histórica, não nos interessa tanto a história das suas representações mas, antes, a narração dos seus modos de construção. E isto porque a história das representações refere-se sempre ao corpo real considerado como uma entidade sem história – seja o corpo considerado pelas ciências, o corpo enquanto fenómeno, ou o corpo instintivo e reprimido, objecto da psicanálise – enquanto que a história dos seus modos de construção reflete a história dos conceitos sobre o corpo e faz-nos adquirir, nessa reflexão, aquilo a que Foucault chamava “uma densa percepção do presente”.

Dentro desta perspectiva, poder-se-ía pensar primeiro no corpo como medida da distância ou proximidade para com a divindade – da alteração de conceitos na tradição judaico-cristã (a história do corpo feminino associado ao pecado original, da desqualificação da mulher enquanto ser eleito, passando pela interrogação sobre a Virgem, à assexuação dos anjos) – até à negação do corpo como objecto do desejo, próprio do budismo – a negação do desejo como pulsão de vida – ou como origem de todo o sofrimento.
Mas a questão relevante, nesta medida entre o corpo humano e o divino, seria qual a classe de corpo que foi considerada através da história por um guerreiro grego, um místico cristão da Idade Média ou o homem contemporâneo para que haja uma parecença física com o deus venerado ou até para que se entre sensualmente em comunicação com ele. E também, pelo contrário, o que é que na constituição do corpo impede o homem de participar da perfeição divina. Esta última questão leva-nos ao limiar da porta que separa o humano do animal mas também o organismo vivente dos artefactos mecânicos que tentam copiá-lo. E o problema interessante seria aqui conseguir avaliar, ao longo da história, quais as deformidades que atribuímos ao corpo – do homem-lobo ao robot – para conseguir essa utopia da perfeição divina.

Uma segunda aproximação ao problema do corpo poder-se-ía fazer no sentido das relações psicossomáticas: como é que o “dentro” e o “fora” se relacionam ou, colocando a questão numa perspectiva ocidental, o problema da alma. Essa alma, considerada pela cultura ocidental, invisível e imaterial (embora, curiosamente, se lhe atribua qualidades materiais), manifesta-se através do rosto ou dos gestos. E aqui surgiria uma questão interessante que se prende com a história dos mecanismos naturais ou aprendidos para a revelação dessa alma. Ainda mais interessante seria perguntar que gestos ou que disciplina imposta ou adquirida produziria a alma de um guerreiro, de um santo ou do homem contemporâneo. Também interessante seria reflectir em qual o tipo de mecanismos do corpo, naturais ou adquiridos, que pode produzir não apenas a depravação mas aquilo que a cria – ou seja, de que maneira um sentimento como o ódio deixa de ser apenas a consequência do medo universal ao outro para passar a ser uma construção cultural específica (os campos de concentração nazi).
Há também uma articulação fundamental entre o “dentro” e o “fora” na modulação das emoções e, particularmente, na área do erótico. Seria interessante verificar a relação existente entre a singularidade das emoções e o contexto das cerimónias em que se produzem. Não que o erotismo seja artificial mas a realidade é que se produz dentro de determinados ambientes dando origem a uma estilização de movimentos e atitudes, cada uma delas com as suas próprias intensidades e desvios. Esses movimentos da alma poderiam constituír a história dos costumes eróticos ou, em termos mais gerais, a estrutura das emoções sexuais.
Mas, para além do desejo e das exigências da alma, o corpo é também o lugar de um conjunto complexo de sensações e aflições que vêm de um interior obscuro e misterioso mas capaz de influenciar e contaminar o pensamento, na relação do corpo com o mundo exterior. Digamos que poderíamos estar aqui a falar de uma anatomia do psiquismo. Prazer, sofrimento e a noção de finitude, da morte, são inevitáveis passagens na intersecção entre a vida e o pensamento. Nomeadamente, a morte é, sem dúvida, um centro nevrálgico da ritualização da vida, específicamente no vínculo entre o psíquico e o somático.

Uma terceira aproximação seria a de analisar a relação entre o órgão e a função, na medida em que o uso de determinados órgãos ou substâncias corporais são utilizados na história como metáforas para o funcionamento de outras estruturas, sejam elas de carácter social, político ou de outra natureza, bem como até na organização de conceitos do universo. A utilização dos órgãos ou de modelos orgânicos para naturalizar uma instituição política, uma hierarquia social ou um princípio moral, ou até uma ideologia, foi históricamente sempre usada e poder-se-ía dizer que corresponde, de alguma maneira, a um “resto” de pensamento pré-filosófico sempre presente.
A necessidade de, no Ocidente, o poder real justificar a sua legitimidade afirmando que um estado precisa de uma “cabeça” ou de um “coração”. No mundo islâmico, a atribuição ao casamento de um papel de maturação e desenvolvimento ético da mulher num processo em que o orgasmo passa do clítoris para a vagina (de fora para dentro). Ou, ainda, a explicação da tradição do domínio do homem sobre a mulher através do conceito ancestral de se atribuír ao esperma um carácter formativo e ao leite e ao sangue da mulher qualidades meramente alimentícias.
Poder-se-ía ainda, neste contexto, falar da função pensando no destino de determinados corpos a que se conferiu uma específica função como a da perpetuação da vida ou de uma determinada ordem social. Corpos como os dos escravos do Império egípcio ou romano ou os corpos das prostitutas da época vitoriana. Corpos sacrificados com a finalidade de preservar uma energia social ou até uma energia cósmica como o dos sacrificados nos rituais astecas ou, ainda, para promover um determinado crescimento económico.



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