quinta-feira, 3 de junho de 2004
Novamente a imagem fotográfica
Num estábulo que fica quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estirado entre o olor dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; do lado de fora estão as terras aradas e uma vala coberta de folhas mortas e algum rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra o som dos sinos já é um dos hábitos da tarde, mas o homem viu, de menino, o rosto de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira sobrecarregado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício de cavalos, cães e prisioneiros. Antes da alba morrerá e, com ele, morrerão, e não voltarão, as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão houver morrido.
Factos que povoam o espaço e alcançam o seu fim quando alguém morre podem maravilhar-nos, porém uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória do universo, como conjecturaram os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que tinham visto Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. O que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou desagregável perderá o mundo? (...)
J. L. Borges in O Fazedor, 1960.
Retrato de Delacroix, 1847.
A morte enquanto perda, enquanto momento com credibilidade simbólica, caíu em desuso no mundo contemporâneo, preenchido, diáriamente, com o espectáculo da morte desritualizada, levada ao extremo do non-sense com a exposição das partes e dos órgãos numa manifestação só comparável à pornografia. Por muito que nos custe, o fenómeno terrorista, que faz da morte uma diária pornografia, baseia a sua actuação em ideologias fundamentalistas, ou seja, na busca ou na afirmação de fundamentos. E, para além de tudo o resto, é justamente isto que é verdadeiramente aterrador.
Se algum interesse têm as imagens escolhidas para este post, talvez seja o de podermos, através delas, recuar a um tempo anterior à perda da inocência. A um tempo em que a morte tem qualidade ritual e simbólica. E, se sempre me interessou a relação estranha da fotografia, enquanto linguagem descritiva do real, com as representações possíveis do mundo, julgo que poderíamos encontrar um dos seus limites nos retratos post-mortem.
Retrato de jovem velando a irmã morta, 1848.
We use the sensibly perceptible sign (sound or written sign, etc.) of the proposition as a projection of the possible state of affairs. (…)
The sign through which we express the thought I call the propositional sign. And the proposition is the propositional sign in its projective relation to the world. (…)
In the proposition, therefore, its sense is not yet contained, but the possibility of expressing it. (…)
In the proposition the form of its sense is contained, but not its content.
The propositional sign consists in the fact that its elements, the words, are combined in it in a definitive way.
The propositional sign is a fact. (…)
Only facts can express a sense, a class of names cannot.
That the propositional sign is a fact is concealed by the ordinary form of expression, written or printed.
L. Wittgenstein in Tratactus Logico-Philosophicus {3.11, 3.12, 3.13, 3.14, 3.142, 3.143}, 1922.
Retrato post-mortem, 1850.
Num estábulo que fica quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estirado entre o olor dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; do lado de fora estão as terras aradas e uma vala coberta de folhas mortas e algum rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra o som dos sinos já é um dos hábitos da tarde, mas o homem viu, de menino, o rosto de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira sobrecarregado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício de cavalos, cães e prisioneiros. Antes da alba morrerá e, com ele, morrerão, e não voltarão, as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão houver morrido.
Factos que povoam o espaço e alcançam o seu fim quando alguém morre podem maravilhar-nos, porém uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória do universo, como conjecturaram os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que tinham visto Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. O que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou desagregável perderá o mundo? (...)
J. L. Borges in O Fazedor, 1960.
Retrato de Delacroix, 1847.
A morte enquanto perda, enquanto momento com credibilidade simbólica, caíu em desuso no mundo contemporâneo, preenchido, diáriamente, com o espectáculo da morte desritualizada, levada ao extremo do non-sense com a exposição das partes e dos órgãos numa manifestação só comparável à pornografia. Por muito que nos custe, o fenómeno terrorista, que faz da morte uma diária pornografia, baseia a sua actuação em ideologias fundamentalistas, ou seja, na busca ou na afirmação de fundamentos. E, para além de tudo o resto, é justamente isto que é verdadeiramente aterrador.
Se algum interesse têm as imagens escolhidas para este post, talvez seja o de podermos, através delas, recuar a um tempo anterior à perda da inocência. A um tempo em que a morte tem qualidade ritual e simbólica. E, se sempre me interessou a relação estranha da fotografia, enquanto linguagem descritiva do real, com as representações possíveis do mundo, julgo que poderíamos encontrar um dos seus limites nos retratos post-mortem.
Retrato de jovem velando a irmã morta, 1848.
We use the sensibly perceptible sign (sound or written sign, etc.) of the proposition as a projection of the possible state of affairs. (…)
The sign through which we express the thought I call the propositional sign. And the proposition is the propositional sign in its projective relation to the world. (…)
In the proposition, therefore, its sense is not yet contained, but the possibility of expressing it. (…)
In the proposition the form of its sense is contained, but not its content.
The propositional sign consists in the fact that its elements, the words, are combined in it in a definitive way.
The propositional sign is a fact. (…)
Only facts can express a sense, a class of names cannot.
That the propositional sign is a fact is concealed by the ordinary form of expression, written or printed.
L. Wittgenstein in Tratactus Logico-Philosophicus {3.11, 3.12, 3.13, 3.14, 3.142, 3.143}, 1922.
Retrato post-mortem, 1850.