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quinta-feira, 9 de setembro de 2004

 
Grandezas não-comparáveis
Equívocos contemporâneos (na política, na economia, nos movimentos sociais, na religião e na arte)

«O movimento não existe: Aquiles não poderá alcançar a preguiçosa tartaruga»

Escrevo desta maneira a sua exposição: Aquiles, símbolo da rapidez, tem de alcançar a tartaruga, símbolo da lentidão. Aquiles corre dez vezes mais depressa que a tartaruga e dá-lhe dez metros de vantagem. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse decímetro, a tartaruga corre um centímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga corre um milímetro; Aquiles o milímetro, a tartaruga um décimo de milímetro, e assim infinitamente, de modo que Aquiles pode correr para sempre sem a alcançar. É este o paradoxo imortal.
Passo às chamadas refutações. As de mais anos – a de Aristóteles e a de Hobbes – estão implícitas na formulada por Stuart Mill. O problema, para ele, não é senão um dos tantos exemplos da falácia da confusão. Com esta distinção, julga anulá-lo:
Na conclusão do sofisma, para sempre quer dizer qualquer imaginável lapso de tempo; nas premissas, qualquer número de subdivisões de tempo. Significa que podemos dividir dez unidades por dez, e o quociente outra vez por dez, quantas vezes quisermos, e que não chegam ao fim as subdivisões do percurso, nem por conseguinte as do tempo em que se realiza. Mas pode efectuar-se um ilimitado número de subdivisões com o que é limitado.
(...)
Prova, em suma que atravessar esse espaço finito requer um tempo infinitamente divisível, mas não infinito (Mill, Sistema de Lógica, livro quinto, capítulo sete).
Não antevejo o parecer do leitor, mas pressinto que a projectada refutação de Stuart Mill não passa de uma exposição do paradoxo.
(...)
Outra vontade de refutação foi comunicada em 1910 por Henri Bergson, no conhecido Ensaio sobre Dados Imediatos da Consciência: nome que começa por ser uma declaração de princípios. Aqui está a sua página:
Por um lado, atribuímos ao movimento a própria divisibilidade do espaço que percorre, esquecendo que se pode dividir um objecto, mas não um acto; por outro, habituámo-nos a projectar este mesmo acto no espaço, a aplicá-lo à linha que percorre o móvel, numa palavra, a solidificá-lo. É desta confusão entre o movimento e o espaço percorrido que nasceram, na nossa opinião, os sofismas da escola de Eleia; porque o intervalo que separa dois pontos é infinitamente divisível, e se o movimento se compusesse de partes como as do intervalo, nunca o intervalo seria franqueado. Mas a verdade é que cada um dos passos de Aquiles é um indivisível acto simples, e que após um dado número destes actos, Aquiles ter-se-ía adiantado à tartaruga. A ilusão dos Eleatas provinha da identificação desta série de actos individuais sui generis com o espaço homogéneo que os apoia. (...) Por Aquiles perseguindo uma tartaruga substituíram, na realidade, duas tartarugas reguladas uma pela outra, duas tartarugas de acordo em dar a mesma série de passos ou de actos simultâneos, para nunca se alcançarem.
(...)
O argumento é concessivo. Bergson admite que é infinitamente divisível o espaço, mas nega que o seja o tempo.
(...)
Chego, por eliminação, à única refutação que conheço, a única de inspiração condigna do original, virtude que a estética da inteligência está a reclamar. É a formulada por Russell. Encontrei-a na obra nobilíssima de William James, Some Problems of Philosophy e pode estudar-se a concepção total que postula nos livros ulteriores do seu inventor – Introduction to Mathematical Philosophy, 1919; Our Knowledge of the External World, 1926 -, livros de uma lucidez inumana, insatisfatórios e intensos. Para Russell, a operação de contar é (intrínsecamente) a de equiparar duas séries. Por exemplo, se os primogénitos de todas as casas egípcias foram mortos pelo Anjo, salvo os que habitavam em casa que tinha já na porta um sinal vermelho, é evidente que se salvaram tantos como os sinais vermelhos que havia, sem que isto implique enumerar quantos foram. Aqui é indefinida a quantidade; outras operações há em que também é infinita. A série natural dos números é infinita, mas podemos demontrar que são tantos os ímpares como os pares.
(...)
O problema de Aquiles cabe dentro desta resposta heróica. Cada sítio ocupado pela tartaruga mantém a proporção com outro de Aquiles, e a minuciosa correspondência, ponto por ponto, de ambas as séries simétricas, basta para as reclamar iguais. Não fica nenhum resto periódico da vantagem inicial dada à tartaruga: o ponto final no seu trajecto, o último no trajecto de Aquiles e o último no tempo da corrida, são termos que matematicamente coincidem.
(...)
O paradoxo de Zenão de Eleia, conforme indicou James, é atentatório não só da realidade do espaço, como também da mais subtil e invulnerável do tempo. Acrescento que a existência num corpo físico, a permanência imóvel, o fluir de uma tarde na vida correm os riscos do acaso devido a ela. Esta decomposição dá-se unicamente por meio da palavra infinito, palavra (e depois conceito) angustiante que engendrámos com temeridade e que, uma vez consentida num pensamento, explode e o mata.
(...)
Aceitemos o idealismo, aceitemos o crescimento concreto do percebido e evitaremos o popular dos abismos do paradoxo.

J.L. Borges in Discussão, 1932



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