quarta-feira, 29 de setembro de 2004
Quase juízo final
O meu errante não fazer nada vive e espalha-se pela variedade da noite.
A noite é uma longa festa solitária.
No meu secreto coração louvo-me e justifico-me:
Testemunhei o mundo; confessei a estranheza do mundo.
Cantei o eterno: a clara lua que regressa e as maçãs do rosto que o amor prefere.
Comemorei com versos a cidade que me cinge
e os arrabaldes que me desterram.
Eu disse assombro onde outros dizem apenas costume.
Perante a canção dos tíbios, acendi a minha voz em poentes.
Os antepassados do meu sangue e os antepassados dos meus sonhos
exaltei e cantei.
Já fui e sou.
Travei em firmes palavras o meu sentimento, que poderia dissipar-se em ternura.
A lembrança de uma antiga maldade volta ao meu coração.
Como um cavalo morto que a maré lança à praia, volta ao meu coração.
Ainda estão ao meu lado, no entanto, as ruas e a lua.
A água continua a ser doce na minha boca e as estrofes não me negam a sua graça.
Sinto o pavor da beleza; quem se atreverá a condenar-me se esta grande
lua de solidão me perdoa?
J.L.Borges, in Lua defronte, 1925.
O meu errante não fazer nada vive e espalha-se pela variedade da noite.
A noite é uma longa festa solitária.
No meu secreto coração louvo-me e justifico-me:
Testemunhei o mundo; confessei a estranheza do mundo.
Cantei o eterno: a clara lua que regressa e as maçãs do rosto que o amor prefere.
Comemorei com versos a cidade que me cinge
e os arrabaldes que me desterram.
Eu disse assombro onde outros dizem apenas costume.
Perante a canção dos tíbios, acendi a minha voz em poentes.
Os antepassados do meu sangue e os antepassados dos meus sonhos
exaltei e cantei.
Já fui e sou.
Travei em firmes palavras o meu sentimento, que poderia dissipar-se em ternura.
A lembrança de uma antiga maldade volta ao meu coração.
Como um cavalo morto que a maré lança à praia, volta ao meu coração.
Ainda estão ao meu lado, no entanto, as ruas e a lua.
A água continua a ser doce na minha boca e as estrofes não me negam a sua graça.
Sinto o pavor da beleza; quem se atreverá a condenar-me se esta grande
lua de solidão me perdoa?
J.L.Borges, in Lua defronte, 1925.