quinta-feira, 20 de janeiro de 2005
Os dons
Foto de Philippe Pache
Foi-lhe oferecida a música invisível
que é o dom do tempo e que no tempo cessa;
foi-lhe oferecida a trágica beleza,
foi-lhe dado o amor, coisa terrível.
Foi-lhe dado saber que entre as mais belas
mulheres da terra existe apenas uma;
pôde uma tarde descobrir a lua
e com a lua a álgebra de estrelas.
Foi-lhe dada a infâmia. Docilmente
foi estudando os delitos que há na espada,
a ruína de Cartago, a tão esforçada
batalha do Oriente e do Poente.
Foi-lhe dada a ilusão que é a linguagem
e foi-lhe dada a carne, que é só barro;
também o pesadelo mais bizarro
e o que num espelho vê a nossa imagem.
Dos volumes que o tempo acumulou
foram-lhe concedidas umas folhas;
de Eleia, uns paradoxos à escolha
que o desgaste do tempo não gastou.
O erguido sangue do amor humano
(a imagem é de um grego) foi-lhe dado
por Aquele cujo nome é uma espada
e que à mão dita as letras, soberano.
Outras coisas lhe deram e os seus nomes:
o cubo e a pirâmide e a esfera,
a areia inumerável, a madeira
e um corpo para andar por entre os homens.
Foi digno do sabor de cada dia;
eis a tua história, que é também a minha.
J. L. Borges in Atlas, 1984.
Foto de Kalina Wlodarczyk
Foto de Philippe Pache
Foi-lhe oferecida a música invisível
que é o dom do tempo e que no tempo cessa;
foi-lhe oferecida a trágica beleza,
foi-lhe dado o amor, coisa terrível.
Foi-lhe dado saber que entre as mais belas
mulheres da terra existe apenas uma;
pôde uma tarde descobrir a lua
e com a lua a álgebra de estrelas.
Foi-lhe dada a infâmia. Docilmente
foi estudando os delitos que há na espada,
a ruína de Cartago, a tão esforçada
batalha do Oriente e do Poente.
Foi-lhe dada a ilusão que é a linguagem
e foi-lhe dada a carne, que é só barro;
também o pesadelo mais bizarro
e o que num espelho vê a nossa imagem.
Dos volumes que o tempo acumulou
foram-lhe concedidas umas folhas;
de Eleia, uns paradoxos à escolha
que o desgaste do tempo não gastou.
O erguido sangue do amor humano
(a imagem é de um grego) foi-lhe dado
por Aquele cujo nome é uma espada
e que à mão dita as letras, soberano.
Outras coisas lhe deram e os seus nomes:
o cubo e a pirâmide e a esfera,
a areia inumerável, a madeira
e um corpo para andar por entre os homens.
Foi digno do sabor de cada dia;
eis a tua história, que é também a minha.
J. L. Borges in Atlas, 1984.
Foto de Kalina Wlodarczyk