quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005
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Quinze moedas
UM POETA ORIENTAL
Durante cem Outonos pude olhar
o teu ténue disco.
Durante cem Outonos pude olhar
O teu arco sobre as ilhas.
Durante cem Outonos os meus lábios
Não foram menos silenciosos.
O DESERTO
O espaço sem tempo.
A lua é da cor da areia.
Agora, precisamente agora,
Morrem os homens de Metauro e de Trafalgar.
CHOVE
Em que outrora, em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
ASTÉRION
O ano cobrou-me o seu tributo de homens
E na cisterna há tanta água.
Em mim se juntam os caminhos de pedra.
De que posso queixar-me?
Nos fins de tarde
Pesa-me um pouco a cabeça de touro.
UM POETA MENOR
A meta é o esquecimento.
Eu cheguei antes.
GÉNESIS IV:8
Foi no primeiro deserto.
Dois braços lançaram uma grande pedra.
Não houve um grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se fui Abel ou Caim.
NORTÚMBRIA, 900 A. D.
Que antes da alba o despojem os lobos;
A espada é o caminho mais curto.
MIGUEL CERVANTES
Cruéis estrelas e propícias estrelas
Presidiram à noite do meu génesis;
Devo às últimas o cárcere
Em que sonhei o Quixote.
O OESTE
O beco final com o seu poente.
Inauguração da campa.
Inauguração da morte.
FAZENDA EL RETIRO
O tempo joga um xadrez sem peças
No pátio. O estalar de um ramo
Rasga a noite. Lá fora, a planície
Vai espalhando léguas de sono e de pó,
Ambos sombras, copiamos o que ditam
Outras sombras: Heraclito e Gautama.
O PRISIONEIRO
Uma lima.
A primeira das pesadas portas de ferro.
Um dia serei livre.
MACBETH
Os nossos actos seguem o seu caminho
Que não conhece fim.
Matei o meu rei para que Shakespeare
Urdisse a sua tragédia.
ETERNIDADES
A serpente que cinge o mar e é o mar,
O repetido remo de Jasão, a jovem espada de Sigurd.
Só perduram no tempo as coisas
Que não foram do tempo.
E.A.P.
Os sonhos que sonhei. O poço e o pêndulo.
O homem das multidões. Ligeia...
Mas também este.
O ESPIÃO
Na pública luz das batalhas
Outros darão a sua vida à pátria
E recorda-os o mármore.
Eu vagueei, obscuro, por cidades que odeio.
Dei-lhe outras coisas
Abjurei da minha honra,
Traí quem me julgou amigo,
Comprei consciências,
Abominei o nome da pátria,
Resignei-me à infâmia.
J. L. Borges in A Rosa Profunda, 1975.
Quinze moedas
UM POETA ORIENTAL
Durante cem Outonos pude olhar
o teu ténue disco.
Durante cem Outonos pude olhar
O teu arco sobre as ilhas.
Durante cem Outonos os meus lábios
Não foram menos silenciosos.
O DESERTO
O espaço sem tempo.
A lua é da cor da areia.
Agora, precisamente agora,
Morrem os homens de Metauro e de Trafalgar.
CHOVE
Em que outrora, em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
ASTÉRION
O ano cobrou-me o seu tributo de homens
E na cisterna há tanta água.
Em mim se juntam os caminhos de pedra.
De que posso queixar-me?
Nos fins de tarde
Pesa-me um pouco a cabeça de touro.
UM POETA MENOR
A meta é o esquecimento.
Eu cheguei antes.
GÉNESIS IV:8
Foi no primeiro deserto.
Dois braços lançaram uma grande pedra.
Não houve um grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se fui Abel ou Caim.
NORTÚMBRIA, 900 A. D.
Que antes da alba o despojem os lobos;
A espada é o caminho mais curto.
MIGUEL CERVANTES
Cruéis estrelas e propícias estrelas
Presidiram à noite do meu génesis;
Devo às últimas o cárcere
Em que sonhei o Quixote.
O OESTE
O beco final com o seu poente.
Inauguração da campa.
Inauguração da morte.
FAZENDA EL RETIRO
O tempo joga um xadrez sem peças
No pátio. O estalar de um ramo
Rasga a noite. Lá fora, a planície
Vai espalhando léguas de sono e de pó,
Ambos sombras, copiamos o que ditam
Outras sombras: Heraclito e Gautama.
O PRISIONEIRO
Uma lima.
A primeira das pesadas portas de ferro.
Um dia serei livre.
MACBETH
Os nossos actos seguem o seu caminho
Que não conhece fim.
Matei o meu rei para que Shakespeare
Urdisse a sua tragédia.
ETERNIDADES
A serpente que cinge o mar e é o mar,
O repetido remo de Jasão, a jovem espada de Sigurd.
Só perduram no tempo as coisas
Que não foram do tempo.
E.A.P.
Os sonhos que sonhei. O poço e o pêndulo.
O homem das multidões. Ligeia...
Mas também este.
O ESPIÃO
Na pública luz das batalhas
Outros darão a sua vida à pátria
E recorda-os o mármore.
Eu vagueei, obscuro, por cidades que odeio.
Dei-lhe outras coisas
Abjurei da minha honra,
Traí quem me julgou amigo,
Comprei consciências,
Abominei o nome da pátria,
Resignei-me à infâmia.
J. L. Borges in A Rosa Profunda, 1975.