sábado, 30 de abril de 2005
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Memórias curtas
O DN publica hoje um artigo de Salman Rushdie (num exclusivo DN/New York Times Syndicate) sob o título Rei Tony por quanto tempo o trono?
No cerrado ataque que desenvolve a Blair — de que, aliás, não sou fã, ou de qualquer outro dirigente que se enquadre neste populismo relativista — S. Rushdie vai, no entanto, esquecendo alguns pormenores:
1. Talvez ninguém melhor que ele possa falar da estrutura mental britânica. A sua educação passou por lá integralmente. Com 14 anos ingressou no Rugby School e lá continuou os seus estudos no King's College em Cambridge. Rushdie é moldado pela formação britânica e pela estrutura mental inglesa. Mais, o carácter publicista dos seus romances tem, obviamente, a ver com o facto de, durante 10 anos (de 1971 a 1981) ter trabalhado como copywriter em várias agências de publicidade, nomeadamente na Ogilvy.
2. A certa altura deste artigo, e interrogando-se sobre o facto de Blair ter apoiado Bush, como apoiou, relativamente à invasão do Iraque, Rushdie diz que um antigo adjunto de Clinton lhe explicou a coisa da seguinte forma: "Ele vendeu a alma ao Diabo sem se incomodar sequer em receber algo em troca." Interessante o entendimento desta frase vindo de alguém que foi alvo da mesma, proferida por Ayatollah Khomeini a propósito da publicação, em 1988, dos Versículos Satânicos. Não deixa também de ser interessante aqui referir, em abono da verdade, que foram, justamente os serviços secretos britânicos que protegeram e esconderam Rushdie durante anos, nomeadamente durante o período da fatwa em que, ainda a propósito deste romance, violentos protestos na Índia, Paquistão e Egipto, provocaram várias mortes. Não deixa também de ser curioso o lançamento, em 1990, do ensaio In Good Faith no qual Rushdie faz um explícito pedido de desculpas, reafirmando o seu total respeito pelo Islão e pela fé islâmica. Este pedido de desculpas não foi considerado genuino nem credível pelas autoridades religiosas do Irão e do Iraque que não “levantaram” a pena de morte decretada.
3. Por último, Rushdie refere que Blair poderá ser um maníaco do controle comprometido com inquisidores religiosos pelo facto de ter sido proposta como ofensa o incitamento ao ódio religioso e que nunca poderá aceitar esta pretensa limitação da liberdade de expressão que se destinaria a aplacar a livre manifestação da comunidade islâmica. Esquece-se aqui Rushdie que, na livre expressão da revolta islâmica, bem antes da invasão do Iraque, estaria a morte dele. Não deixa também de ser curiosa esta leitura dos dirigentes ocidentais como comprometidos com inquisidores religiosos, principalmente se lermos a sua crónica de 17 de Abril passado no The New York Times, em que, a certa altura, escreve:
In many parts of the world — in, for example, China, Iran and much of Africa — the free imagination is still considered dangerous. At the heart of PEN's work is our effort to defend writers under attack by powerful interests who fear and threaten them. Those voices — Arab or Afghan or Latin American or Russian — need to be magnified, so that they can be heard loud and clear just as the Soviet dissidents once were. Yet, in America, unlike in Europe, a lamentably small percentage of all the fiction and poetry published each year is translated from other languages. It has perhaps never been more important for the world's voices to be heard in America, never more important for the world's ideas and dreams to be known and thought about and discussed, never more important for a global dialogue to be fostered. Yet one has the sense of things shutting down, of barriers being erected, of that dialogue being stifled precisely when we should be doing our best to amplify it. The cold war is over, but a stranger war has begun. Alienation has perhaps never been so widespread; all the more reason for getting together and seeing what bridges can be built. That's exactly why dozens of writers from around the world are gathering in New York this week for PEN World Voices: The New York Festival of International Literature.
Afinal, quem são para Rushdie os inquisidores religiosos, maníacos de controle? São aqueles que lhe decretaram pena de morte, aqueles que continuam a decretar penas de morte aos escritores no Irão, na China, no Afeganistão, na Rússia, em África? Parece que não. Memórias curtas.
O DN publica hoje um artigo de Salman Rushdie (num exclusivo DN/New York Times Syndicate) sob o título Rei Tony por quanto tempo o trono?
No cerrado ataque que desenvolve a Blair — de que, aliás, não sou fã, ou de qualquer outro dirigente que se enquadre neste populismo relativista — S. Rushdie vai, no entanto, esquecendo alguns pormenores:
1. Talvez ninguém melhor que ele possa falar da estrutura mental britânica. A sua educação passou por lá integralmente. Com 14 anos ingressou no Rugby School e lá continuou os seus estudos no King's College em Cambridge. Rushdie é moldado pela formação britânica e pela estrutura mental inglesa. Mais, o carácter publicista dos seus romances tem, obviamente, a ver com o facto de, durante 10 anos (de 1971 a 1981) ter trabalhado como copywriter em várias agências de publicidade, nomeadamente na Ogilvy.
2. A certa altura deste artigo, e interrogando-se sobre o facto de Blair ter apoiado Bush, como apoiou, relativamente à invasão do Iraque, Rushdie diz que um antigo adjunto de Clinton lhe explicou a coisa da seguinte forma: "Ele vendeu a alma ao Diabo sem se incomodar sequer em receber algo em troca." Interessante o entendimento desta frase vindo de alguém que foi alvo da mesma, proferida por Ayatollah Khomeini a propósito da publicação, em 1988, dos Versículos Satânicos. Não deixa também de ser interessante aqui referir, em abono da verdade, que foram, justamente os serviços secretos britânicos que protegeram e esconderam Rushdie durante anos, nomeadamente durante o período da fatwa em que, ainda a propósito deste romance, violentos protestos na Índia, Paquistão e Egipto, provocaram várias mortes. Não deixa também de ser curioso o lançamento, em 1990, do ensaio In Good Faith no qual Rushdie faz um explícito pedido de desculpas, reafirmando o seu total respeito pelo Islão e pela fé islâmica. Este pedido de desculpas não foi considerado genuino nem credível pelas autoridades religiosas do Irão e do Iraque que não “levantaram” a pena de morte decretada.
3. Por último, Rushdie refere que Blair poderá ser um maníaco do controle comprometido com inquisidores religiosos pelo facto de ter sido proposta como ofensa o incitamento ao ódio religioso e que nunca poderá aceitar esta pretensa limitação da liberdade de expressão que se destinaria a aplacar a livre manifestação da comunidade islâmica. Esquece-se aqui Rushdie que, na livre expressão da revolta islâmica, bem antes da invasão do Iraque, estaria a morte dele. Não deixa também de ser curiosa esta leitura dos dirigentes ocidentais como comprometidos com inquisidores religiosos, principalmente se lermos a sua crónica de 17 de Abril passado no The New York Times, em que, a certa altura, escreve:
In many parts of the world — in, for example, China, Iran and much of Africa — the free imagination is still considered dangerous. At the heart of PEN's work is our effort to defend writers under attack by powerful interests who fear and threaten them. Those voices — Arab or Afghan or Latin American or Russian — need to be magnified, so that they can be heard loud and clear just as the Soviet dissidents once were. Yet, in America, unlike in Europe, a lamentably small percentage of all the fiction and poetry published each year is translated from other languages. It has perhaps never been more important for the world's voices to be heard in America, never more important for the world's ideas and dreams to be known and thought about and discussed, never more important for a global dialogue to be fostered. Yet one has the sense of things shutting down, of barriers being erected, of that dialogue being stifled precisely when we should be doing our best to amplify it. The cold war is over, but a stranger war has begun. Alienation has perhaps never been so widespread; all the more reason for getting together and seeing what bridges can be built. That's exactly why dozens of writers from around the world are gathering in New York this week for PEN World Voices: The New York Festival of International Literature.
Afinal, quem são para Rushdie os inquisidores religiosos, maníacos de controle? São aqueles que lhe decretaram pena de morte, aqueles que continuam a decretar penas de morte aos escritores no Irão, na China, no Afeganistão, na Rússia, em África? Parece que não. Memórias curtas.