segunda-feira, 25 de abril de 2005
A propósito da tristeza (ou da consciência da tristeza)
Se se fosse judeu na época em que os comboios iam para Auschwitz, as possibilidades de encontrar esconderijo junto de vizinhos simpáticos seriam maiores se se vivesse na Dinamarca ou em Itália do que se se vivesse na Bélgica. Uma maneira comum de caracterizar esta diferença é dizer que muitos dinamarqueses e italianos mostravam um sentido de solidariedade humana que faltava a muitos belgas. A visão de Orwell era a de um mundo em que tal solidariedade humana tinha sido tornada impossível, de forma deliberada e através de um planeamento cuidado.
A maneira filosófica tradicional de explicar aquilo que entendemos por "solidariedade humana" é dizer que há algo dentro de cada um de nós — a nossa humanidade essencial — que ressoa com a presença dessa mesma coisa em outros seres humanos. Esta maneira de explicar a noção de solidariedade está de acordo com o nosso hábito de dizer que o público do Coliseu, Humbert, Kinbote, O'Brien, os guardas de Auschwitz e os belgas que observavam a Gestapo a arrastar os seus vizinhos judeus eram "desumanos".
A ideia é a de que a todas essas pessoas faltava um componente essencial dos seres integralmente humanos.
Os filósofos que, tal como eu fiz (...), negam que haja tal componente, que haja algo como um "eu central", são incapazes de recorrer a essa ideia. A nossa insistência na contingência e a nossa consequente oposição a ideias tais como as de "essência", "natureza" e "fundamento" tornam impossível retermos a noção de que algumas acções e atitudes são naturalmente "desumanas". É que esta insistência implica que aquilo que conta como sendo um ser humano decente seja relativo às circunstâncias históricas, seja questão de um consenso passageiro quanto a saber que atitudes são normais e que práticas são justas ou injustas. No entanto, em alturas como a de Auschwitz, e que a história está em convulsão e as instituições e padrões de comportamento tradicionais estão em ruptura, queremos algo que se encontre para lá da história e das instituições. E que poderá haver, a não ser a solidariedade humana, o nosso reconhecimento da humanidade de outrem que nos é comum?
Defendi no presente livro que tentemos não querer algo que esteja para lá da história e das instituições. A premissa fundamental do livro é a de que uma crença pode continuar a reger a acção, pode-se continuar a considerar que vale a pena morrer por ela, mesmo entre pessoas que estão plenamente conscientes de que essa crença não é causada por nada de mais profundo do que as circunstâncias históricas contingentes. A imagem de utopia liberal que tracei (...) era um esboço de uma sociedade em que a acusação de "relativismo" teria perdido a sua força e em que a noção de "algo que está para lá da história" se teria tornado inintelegível, mas em que se mantinha intacto um sentido da solidariedade humana.
(...)
Considerem-se, em primeiro lugar, os dinamarqueses e italianos de que falei. Será que disseram aos seus vizinhos judeus que mereciam ser salvos porque eram seres humanos como eles? Talvez alguns o tenham dito, mas em geral, decerto, não utilizariam, se interrogados, mais do que termos locais para explicar por que razão estavam a correr riscos para proteger um determinado judeu — dizendo, por exemplo, que esse judeu em particular também era milanês, ou que também era da Jutlândia, ou que era membro da mesma união ou profissão, ou que também jogava bocce ou que também tinha filhos pequenos. Considerem-se seguidamente os referidos belgas. Decerto havia algumas pessoas relativamente às quais teriam corrido riscos para as proteger em circunstâncias semelhantes, pessoas com quem se identificavam, segundo uma ou outra descrição. Mas raramente os judeus eram abrangidos por essas descrições. Há, provavelmente, explicações histórico-sociológicas pormenorizadas para a frequência relativamente pequena entre os belgas de descrições inspiradoras de comunidade (fellowship) pelas quais os judeus pudessem ser abrangidos — explicações da razão por que "ela é judia" tantas vezes se sobrepunha a "tal como eu, ela é mãe de filhos pequenos". Mas "desumanidade", "não ter coração" ou "falta de sentido da solidariedade humana" não constituem essa explicação.
(...)
Do ponto de vista cristão, esta tendência para nos sentirmos mais próximos daqueles com quem a identificação imaginativa é mais fácil é lamentável, é uma tentação a evitar. Faz parte da ideia cristã de perfeição moral tratar toda a gente, mesmo os guardas de Auschwitz ou do Gulag, como pecadores nossos semelhantes. Para os cristãos, a santidade não se atinge enquanto se sente maior obrigação para com um filho de Deus do que para com outro. Os contrastes injustos devem ser evitados por princípio. O universalismo ético secular colheu esta atitude do cristianismo. Para Kant, não é por alguém também ser milanês ou também ser americano que devemos sentir uma obrigação para com ele ou ela, mas sim por ser um ser racional. No seu tom mais rigoroso, Kant diz-nos que uma boa acção para com outra pessoa não conta como sendo uma acção moral, como sendo uma acção praticada por amor ao dever, por oposição a uma acção praticada meramente de acordo com o dever, a menos que se pense na pessoa simplesmente como sendo um ser racional, e não um familiar, um vizinho ou um concidadão. Mas, mesmo que não usemos uma linguagem cristã nem uma linguagem kantiana, podemos achar que há algo de moralmente duvidoso em ter-se maior preocupação por um outro cidadão também de Nova York do que por alguém que enfrenta uma vida igualmente sem esperança e triste nos bairros miseráveis de Manila ou de Dacar.
(...)
Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe, e esse progresso vai efectivamente na direcção de uma maior solidariedade humana. Mas tal solidariedade não é pensada como sendo o reconhecimento de um eu central, da essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, de religião, raça, costumes, etc.) como não importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação — a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós como estando incluídas na esfera do "nós". Foi por isso que afirmei (...) que os principais contributos do intelecto moderno para o progresso moral eram descrições pormenorizadas de variedades particulares de dor e humilhação (em romances ou obras de etnografia, por exemplo) e não tratados filosóficos ou religiosos.
(...)
Resumindo, pretendo distinguir a solidariedade humana enquanto identificação com a "humanidade enquanto tal" e enquanto dúvida própria que, gradualmente, ao longo dos últimos séculos, foi sendo inculcada nos habitantes dos Estados democráticos — dúvidas quanto à sua própria sensibilidade à dor e à humilhação dos outros, dúvida de que os entendimentos institucionais actuais sejam adequados para lidar com essa dor e humilhação, curiosidade sobre alternativas possíveis. A identificação parece-me impossível — parece-me uma invenção de filósofos, uma estranha tentativa de secularizar a ideia de nos unirmos a Deus. A dúvida própria parece-me ser a marca característica da primeira época da história humana em que grande número de pessoas se tornou capaz de separar a questão "Acredita e deseja aquilo em que acreditamos e que desejamos?" da questão "Está a sofrer?". No meu jargão, esta capacidade é a capacidade de distinguir entre a questão de saber se você e eu partilhamos o mesmo vocabulário final e a questão de saber se você está a sofrer. Distinguir estas questões torna possível distinguir questões públicas de questões privadas, questões sobre a dor de questões sobre o sentido da vida humana, o domínio do liberal do domínio do ironista. Torna, assim, possível uma mesma pessoa ser ambos.
Richard Rorty in Contingência, Ironia e Solidariedade, 1989.
Se se fosse judeu na época em que os comboios iam para Auschwitz, as possibilidades de encontrar esconderijo junto de vizinhos simpáticos seriam maiores se se vivesse na Dinamarca ou em Itália do que se se vivesse na Bélgica. Uma maneira comum de caracterizar esta diferença é dizer que muitos dinamarqueses e italianos mostravam um sentido de solidariedade humana que faltava a muitos belgas. A visão de Orwell era a de um mundo em que tal solidariedade humana tinha sido tornada impossível, de forma deliberada e através de um planeamento cuidado.
A maneira filosófica tradicional de explicar aquilo que entendemos por "solidariedade humana" é dizer que há algo dentro de cada um de nós — a nossa humanidade essencial — que ressoa com a presença dessa mesma coisa em outros seres humanos. Esta maneira de explicar a noção de solidariedade está de acordo com o nosso hábito de dizer que o público do Coliseu, Humbert, Kinbote, O'Brien, os guardas de Auschwitz e os belgas que observavam a Gestapo a arrastar os seus vizinhos judeus eram "desumanos".
A ideia é a de que a todas essas pessoas faltava um componente essencial dos seres integralmente humanos.
Os filósofos que, tal como eu fiz (...), negam que haja tal componente, que haja algo como um "eu central", são incapazes de recorrer a essa ideia. A nossa insistência na contingência e a nossa consequente oposição a ideias tais como as de "essência", "natureza" e "fundamento" tornam impossível retermos a noção de que algumas acções e atitudes são naturalmente "desumanas". É que esta insistência implica que aquilo que conta como sendo um ser humano decente seja relativo às circunstâncias históricas, seja questão de um consenso passageiro quanto a saber que atitudes são normais e que práticas são justas ou injustas. No entanto, em alturas como a de Auschwitz, e que a história está em convulsão e as instituições e padrões de comportamento tradicionais estão em ruptura, queremos algo que se encontre para lá da história e das instituições. E que poderá haver, a não ser a solidariedade humana, o nosso reconhecimento da humanidade de outrem que nos é comum?
Defendi no presente livro que tentemos não querer algo que esteja para lá da história e das instituições. A premissa fundamental do livro é a de que uma crença pode continuar a reger a acção, pode-se continuar a considerar que vale a pena morrer por ela, mesmo entre pessoas que estão plenamente conscientes de que essa crença não é causada por nada de mais profundo do que as circunstâncias históricas contingentes. A imagem de utopia liberal que tracei (...) era um esboço de uma sociedade em que a acusação de "relativismo" teria perdido a sua força e em que a noção de "algo que está para lá da história" se teria tornado inintelegível, mas em que se mantinha intacto um sentido da solidariedade humana.
(...)
Considerem-se, em primeiro lugar, os dinamarqueses e italianos de que falei. Será que disseram aos seus vizinhos judeus que mereciam ser salvos porque eram seres humanos como eles? Talvez alguns o tenham dito, mas em geral, decerto, não utilizariam, se interrogados, mais do que termos locais para explicar por que razão estavam a correr riscos para proteger um determinado judeu — dizendo, por exemplo, que esse judeu em particular também era milanês, ou que também era da Jutlândia, ou que era membro da mesma união ou profissão, ou que também jogava bocce ou que também tinha filhos pequenos. Considerem-se seguidamente os referidos belgas. Decerto havia algumas pessoas relativamente às quais teriam corrido riscos para as proteger em circunstâncias semelhantes, pessoas com quem se identificavam, segundo uma ou outra descrição. Mas raramente os judeus eram abrangidos por essas descrições. Há, provavelmente, explicações histórico-sociológicas pormenorizadas para a frequência relativamente pequena entre os belgas de descrições inspiradoras de comunidade (fellowship) pelas quais os judeus pudessem ser abrangidos — explicações da razão por que "ela é judia" tantas vezes se sobrepunha a "tal como eu, ela é mãe de filhos pequenos". Mas "desumanidade", "não ter coração" ou "falta de sentido da solidariedade humana" não constituem essa explicação.
(...)
Do ponto de vista cristão, esta tendência para nos sentirmos mais próximos daqueles com quem a identificação imaginativa é mais fácil é lamentável, é uma tentação a evitar. Faz parte da ideia cristã de perfeição moral tratar toda a gente, mesmo os guardas de Auschwitz ou do Gulag, como pecadores nossos semelhantes. Para os cristãos, a santidade não se atinge enquanto se sente maior obrigação para com um filho de Deus do que para com outro. Os contrastes injustos devem ser evitados por princípio. O universalismo ético secular colheu esta atitude do cristianismo. Para Kant, não é por alguém também ser milanês ou também ser americano que devemos sentir uma obrigação para com ele ou ela, mas sim por ser um ser racional. No seu tom mais rigoroso, Kant diz-nos que uma boa acção para com outra pessoa não conta como sendo uma acção moral, como sendo uma acção praticada por amor ao dever, por oposição a uma acção praticada meramente de acordo com o dever, a menos que se pense na pessoa simplesmente como sendo um ser racional, e não um familiar, um vizinho ou um concidadão. Mas, mesmo que não usemos uma linguagem cristã nem uma linguagem kantiana, podemos achar que há algo de moralmente duvidoso em ter-se maior preocupação por um outro cidadão também de Nova York do que por alguém que enfrenta uma vida igualmente sem esperança e triste nos bairros miseráveis de Manila ou de Dacar.
(...)
Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe, e esse progresso vai efectivamente na direcção de uma maior solidariedade humana. Mas tal solidariedade não é pensada como sendo o reconhecimento de um eu central, da essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, de religião, raça, costumes, etc.) como não importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação — a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós como estando incluídas na esfera do "nós". Foi por isso que afirmei (...) que os principais contributos do intelecto moderno para o progresso moral eram descrições pormenorizadas de variedades particulares de dor e humilhação (em romances ou obras de etnografia, por exemplo) e não tratados filosóficos ou religiosos.
(...)
Resumindo, pretendo distinguir a solidariedade humana enquanto identificação com a "humanidade enquanto tal" e enquanto dúvida própria que, gradualmente, ao longo dos últimos séculos, foi sendo inculcada nos habitantes dos Estados democráticos — dúvidas quanto à sua própria sensibilidade à dor e à humilhação dos outros, dúvida de que os entendimentos institucionais actuais sejam adequados para lidar com essa dor e humilhação, curiosidade sobre alternativas possíveis. A identificação parece-me impossível — parece-me uma invenção de filósofos, uma estranha tentativa de secularizar a ideia de nos unirmos a Deus. A dúvida própria parece-me ser a marca característica da primeira época da história humana em que grande número de pessoas se tornou capaz de separar a questão "Acredita e deseja aquilo em que acreditamos e que desejamos?" da questão "Está a sofrer?". No meu jargão, esta capacidade é a capacidade de distinguir entre a questão de saber se você e eu partilhamos o mesmo vocabulário final e a questão de saber se você está a sofrer. Distinguir estas questões torna possível distinguir questões públicas de questões privadas, questões sobre a dor de questões sobre o sentido da vida humana, o domínio do liberal do domínio do ironista. Torna, assim, possível uma mesma pessoa ser ambos.
Richard Rorty in Contingência, Ironia e Solidariedade, 1989.