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quinta-feira, 28 de abril de 2005

 
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Receita de mulher




As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul como na
[Republica Popular Chinesa)
Não há meio-termo possível. É preciso
Que isso tudo seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas
[pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro
[minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso
Que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola
[ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre
[um templo e
Seja leve como um rosto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo, olhos então
Nem se fala, que olhem com uma certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas
[pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher
[sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que os seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barrôca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima
[de cinco velas
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal.
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um
[certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de
[suavíssima plumagem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso
[e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma
[temperatura nunca inferior
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1º grau. Os olhos que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou caso baixa que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que
[se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha;
[parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer
[subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder a sua graça de ave;
[e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efémero e eu sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a
[criação inumerável.

Vinicius de Moraes



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