quinta-feira, 26 de maio de 2005
Para efeitos de trabalho, reposto aqui o texto Non-places:
Notas sobre Não-lugares (1)
Notas sobre Não-lugares (1)
Marc Augé estrutura a Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade sobre três factores de análise, a saber:
A aceleração do tempo, a aceleração do espaço e a aceleração do eu.
Primeira situação analisada: a aceleração do tempo. Com efeito, esta aceleração do tempo, ou a nossa percepção do tempo e do uso que fazemos dele passa por uma primeira permissa que se relaciona com o princípio da sua inteligibilidade. A ideia de progresso nasceu no século XX depois da queda das esperânças e ilusões que acompanharam a travessia do século XIX. Esta ideia de progresso é paradoxal em relação ao próprio desenvolvimento histórico: as atrocidades das duas Grandes Guerras, os totalitarismos e genocídios, o fim das grandes narrativas, dos grandes sistemas de interpretação que aspiravam a traçar um mapa da evolução de toda a humanidade, bem como o desvio dos sistemas políticos oficialmente apoiados nesses grandes sistemas, criam, em suma, a dúvida fundamental sobre o sentido da História ou se a História deve ter um sentido. Quando os historiadores contemporâneos têm dúvidas sobre a História, não é por razões técnicas mas, fundamentalmente, porque lhes é muito difícil fazer do tempo um princípio de inteligibilidade, um princípio de identidade. O que podemos constatar, e confrontamo-nos diáriamente com este facto, é uma evidente aceleração da História. Mal temos tempo de atingir a maturidade em relação ao nosso passado e ele é já História, pertencendo as nossas histórias individuais a uma História mais lata. Pessoas de idade que viveram a guerra de 1914-18 parecem dizer-nos que viveram um período histórico mas nós perdemos a capacidade de compreender o que isso realmente significa. Para nós, os anos sessenta, os anos setenta, os anos oitenta, já se tornaram História imediatamente a seguir a serem vividos. Como Marc Augé diz, "a História parece seguir-nos como uma sombra, como a morte."
E Augé continua: "História significa a série de acontecimentos reconhecidos como acontecimentos por um grande número de pessoas (os Beatles, Maio de 68, Vietnam, Muro de Berlim, democratização da Europa de Leste, a Guerra do Golfo, a desintegração da URSS), acontecimentos que, acreditamos, irão contar aos olhos de futuros historiadores e relativamente aos quais, cada um de nós, embora consciente da sua insignificancia, pode agregar uma circunstância ou imagem pessoal".
(...)
"A aceleração da História corresponde, de facto, a uma multiplicação de eventos poucos dos quais são previstos por economistas, historiadores ou sociólogos. O problema é a super-abundância de acontecimentos. Esta super-abundância de eventos pode ser devidamente apreciada através da super-abundância de informação, por um lado, e pela crescente teia de inter-dependências naquilo a que podemos chamar um "sistema mundial".
Se é verdade que, perante esta super-abundância de acontecimentos, desenvolvemos um excesso de investimento e interesse, também não deixa de ser verdade que, contraditóriamente, sucedem-se, em grande número, acontecimentos para os quais não conseguimos encontrar um sentido, nomeadamente a dissolução de regimes cuja queda ninguém conseguia prever ou a crise latente que afecta política, social e económicamente os países ditos liberais e, relativamente à qual, caímos no hábito inconsciente de discutir em termos de sentido.
O que é verdadeiramente novo em tudo isto não é o mundo não fazer sentido, ou fazer pouco sentido, ou fazer menos sentido do que fazia. O que é verdadeiramente novo é a nossa diária, explícita e intensa necessidade de conferir sentido ao mundo. Esta necessidade de conferir sentido ao mundo confunde-se com a necessidade de conferir sentido ao presente e é o preço que pagamos por esta super-abundância de acontecimentos que corresponde a uma situação que podemos apelidar de supermodernidade para expressar a sua característica mais essencial: excesso.
Cada um de nós tem, ou pensa que tem, o uso deste tempo sobrecarregado de acontecimentos que entrelaçam o presente e o passado. Isto apenas nos faz mais ávidos de sentido. O aumento da esperânça de vida que provocou a passagem da coexistência normal de duas ou três gerações para quatro provocou uma mudança gradual da visão relativamente ao presente e do conceito de tempo. Provocou uma expansão do colectivo e da memória histórica e geneológica multiplicando as ocasiões em que um indivíduo sente que a sua história se intersecta com a História, podendo até imaginar que, de alguma maneira, as duas estão ligadas.
Assim é com uma imagem de excesso – excesso de tempo – que podemos começar a definir uma situação de supermodernidade.
A segunda aceleração que se dá no mundo contemporâneo e a segunda figura de excesso característica da supermodernidade relaciona-se com o espaço.
Curiosa e paradoxalmente esse excesso de espaço não pode ser desrelacionado do fenómeno da progressiva redução do espaço do planeta. Num determinado sentido, os passos dados na conquista espacial têm, como primeira consequência, a redução do nosso espaço para uma escala infinitésimal, de que as fotografias dos satélites nos dão a medida exacta. Vivemos numa era caracterizada por radicais e paradoxais mudanças de escala. Estas alterações operam-se desde as novas visões proporcionadas pela exploração espacial à construção de máquinas que permitem deslocarmo-nos rápidamente e fazer com que qualquer lugar esteja apenas a algumas horas ou a alguns minutos do lugar onde estamos.
Mas também, na privacidade das nossas casas, imagens de todos os tipos, transmitidas por satélites, dão-nos instantânea e simultâneamente uma visão de acontecimentos que ocorrem do outro lado do planeta.
Já não há grande interesse na discussão sobre a manipulação das imagens mas há que entender que, independentemente dessa manipulação, as imagens exercem uma influência e possuem um poder que vai muito para além do objectivo meramente informativo de que, aparentemente, de forma inocente, são portadoras. É de sublinhar que o conjunto de imagens que diáriamente consumimos – notícias, ficção, publicidade -, cuja apresentação e propósito são diferentes, tecem, aos nossos olhos, um universo relativamente homogéneo na sua diversidade. O que é que pode ser mais realista e, em certo sentido, mais informativo sobre a vida nos Estados Unidos do que uma série de TV americana? E a falsa familiaridade que estabelecemos, através da imagem, com os actores da História, pessoas que conhecemos tão bem como os heróis das novelas ou as estrêlas desportivas? Na realidade, não os conhecemos pessoalmente mas reconhecemo-los.
Esta super-abundância de espaço provoca o aparecimento de novos universos. Estes universos são ficcionais e são essencialmente universos de reconhecimento. A propriedade destes universos simbólicos é constituírem-se como lugares de reconhecimento – não de conhecimento -, universos fechados onde tudo é signo. Colecções de códigos de que alguns possuem a chave mas cuja existência é aceite por todos. Totalidades parcialmente ficcionais mas efectivas. Universos de sentido nos quais os indivíduos se definem a si mesmos segundo o mesmo critério, os mesmos valores, os mesmos procedimentos interpretativos.
A super-abundância de espaço define-se nas mudanças de escala, na proliferação da imagem e na aceleração dos meios de transporte. A concretização disto envolve consideráveis modificações físicas: concentrações urbanas, movimentos de populações e a multiplicação daquilo que podemos chamar os não-lugares, por oposição à noção sociológica de lugar e à ideia de cultura localizada no tempo e no espaço. As instalações necessárias para a aceleração de circulação de pessoas e bens – auto-estradas, aeroportos, estações de caminho de ferro – são tanto não-lugares como os próprios meios de transporte, os grandes centros comerciais ou os imensos campos de refugiados.
A terceira figura de excesso relativamente à qual a situação da supermodernidade pode ser definida é a figura do eu. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, pelo menos, o indivíduo quer ser um mundo ele mesmo. Ele pretende interpretar a informação, que à partida considera ser-lhe específicamente destinada, por si mesmo e para si mesmo. Os sociólogos das religiões notaram, inclusivamente, esta situação relativamente à teorização e prática religiosas: cada católico pratica “à sua maneira”. Cada crente “tem a sua” ideia de Deus.
As questões das relações entre sexos opostos são resolvidas no âmbito da indiferenciação do valor do indivíduo.
Por outro lado, nunca as histórias individuais foram tão explícitamente afectadas pela história colectiva como, também não deixa de ser verdade que os pontos de referência para a identificação colectiva nunca foram tão instáveis. Assim, a produção individual de sentidos torna-se mais necessária que nunca. Naturalmente, torna-se fácil entender o conjunto de ilusões em que esta aproximação individualizada se baseia, bem como a produção de estereotipos, a maioria dos quais escapa aos indivíduos envolvidos.
Não deixa, no entanto, de ser interessante, o carácter singular desta produção de sentidos, consubstânciado num aparato publicitário – o corpo, a frescura da vida – bem como num conjunto de vocábulos políticos – as liberdades individuais.
Mas, independentemente da atenção que requer, hoje, esta individualização de referências, não deixa de ser interessante a reflexão sobre os factores da singularidade: singularidade de objectos, de grupos e de reconstrução de lugares. Estas singularidades constituem-se como paradoxais relativamente à aceleração do tempo e do espaço e à des-localização cultural tantas vezes referida de forma apologética como “homogeneização cultural” ou “cultura global”.
A aceleração do tempo, a aceleração do espaço e a aceleração do eu.
Primeira situação analisada: a aceleração do tempo. Com efeito, esta aceleração do tempo, ou a nossa percepção do tempo e do uso que fazemos dele passa por uma primeira permissa que se relaciona com o princípio da sua inteligibilidade. A ideia de progresso nasceu no século XX depois da queda das esperânças e ilusões que acompanharam a travessia do século XIX. Esta ideia de progresso é paradoxal em relação ao próprio desenvolvimento histórico: as atrocidades das duas Grandes Guerras, os totalitarismos e genocídios, o fim das grandes narrativas, dos grandes sistemas de interpretação que aspiravam a traçar um mapa da evolução de toda a humanidade, bem como o desvio dos sistemas políticos oficialmente apoiados nesses grandes sistemas, criam, em suma, a dúvida fundamental sobre o sentido da História ou se a História deve ter um sentido. Quando os historiadores contemporâneos têm dúvidas sobre a História, não é por razões técnicas mas, fundamentalmente, porque lhes é muito difícil fazer do tempo um princípio de inteligibilidade, um princípio de identidade. O que podemos constatar, e confrontamo-nos diáriamente com este facto, é uma evidente aceleração da História. Mal temos tempo de atingir a maturidade em relação ao nosso passado e ele é já História, pertencendo as nossas histórias individuais a uma História mais lata. Pessoas de idade que viveram a guerra de 1914-18 parecem dizer-nos que viveram um período histórico mas nós perdemos a capacidade de compreender o que isso realmente significa. Para nós, os anos sessenta, os anos setenta, os anos oitenta, já se tornaram História imediatamente a seguir a serem vividos. Como Marc Augé diz, "a História parece seguir-nos como uma sombra, como a morte."
E Augé continua: "História significa a série de acontecimentos reconhecidos como acontecimentos por um grande número de pessoas (os Beatles, Maio de 68, Vietnam, Muro de Berlim, democratização da Europa de Leste, a Guerra do Golfo, a desintegração da URSS), acontecimentos que, acreditamos, irão contar aos olhos de futuros historiadores e relativamente aos quais, cada um de nós, embora consciente da sua insignificancia, pode agregar uma circunstância ou imagem pessoal".
(...)
"A aceleração da História corresponde, de facto, a uma multiplicação de eventos poucos dos quais são previstos por economistas, historiadores ou sociólogos. O problema é a super-abundância de acontecimentos. Esta super-abundância de eventos pode ser devidamente apreciada através da super-abundância de informação, por um lado, e pela crescente teia de inter-dependências naquilo a que podemos chamar um "sistema mundial".
Se é verdade que, perante esta super-abundância de acontecimentos, desenvolvemos um excesso de investimento e interesse, também não deixa de ser verdade que, contraditóriamente, sucedem-se, em grande número, acontecimentos para os quais não conseguimos encontrar um sentido, nomeadamente a dissolução de regimes cuja queda ninguém conseguia prever ou a crise latente que afecta política, social e económicamente os países ditos liberais e, relativamente à qual, caímos no hábito inconsciente de discutir em termos de sentido.
O que é verdadeiramente novo em tudo isto não é o mundo não fazer sentido, ou fazer pouco sentido, ou fazer menos sentido do que fazia. O que é verdadeiramente novo é a nossa diária, explícita e intensa necessidade de conferir sentido ao mundo. Esta necessidade de conferir sentido ao mundo confunde-se com a necessidade de conferir sentido ao presente e é o preço que pagamos por esta super-abundância de acontecimentos que corresponde a uma situação que podemos apelidar de supermodernidade para expressar a sua característica mais essencial: excesso.
Cada um de nós tem, ou pensa que tem, o uso deste tempo sobrecarregado de acontecimentos que entrelaçam o presente e o passado. Isto apenas nos faz mais ávidos de sentido. O aumento da esperânça de vida que provocou a passagem da coexistência normal de duas ou três gerações para quatro provocou uma mudança gradual da visão relativamente ao presente e do conceito de tempo. Provocou uma expansão do colectivo e da memória histórica e geneológica multiplicando as ocasiões em que um indivíduo sente que a sua história se intersecta com a História, podendo até imaginar que, de alguma maneira, as duas estão ligadas.
Assim é com uma imagem de excesso – excesso de tempo – que podemos começar a definir uma situação de supermodernidade.
A segunda aceleração que se dá no mundo contemporâneo e a segunda figura de excesso característica da supermodernidade relaciona-se com o espaço.
Curiosa e paradoxalmente esse excesso de espaço não pode ser desrelacionado do fenómeno da progressiva redução do espaço do planeta. Num determinado sentido, os passos dados na conquista espacial têm, como primeira consequência, a redução do nosso espaço para uma escala infinitésimal, de que as fotografias dos satélites nos dão a medida exacta. Vivemos numa era caracterizada por radicais e paradoxais mudanças de escala. Estas alterações operam-se desde as novas visões proporcionadas pela exploração espacial à construção de máquinas que permitem deslocarmo-nos rápidamente e fazer com que qualquer lugar esteja apenas a algumas horas ou a alguns minutos do lugar onde estamos.
Mas também, na privacidade das nossas casas, imagens de todos os tipos, transmitidas por satélites, dão-nos instantânea e simultâneamente uma visão de acontecimentos que ocorrem do outro lado do planeta.
Já não há grande interesse na discussão sobre a manipulação das imagens mas há que entender que, independentemente dessa manipulação, as imagens exercem uma influência e possuem um poder que vai muito para além do objectivo meramente informativo de que, aparentemente, de forma inocente, são portadoras. É de sublinhar que o conjunto de imagens que diáriamente consumimos – notícias, ficção, publicidade -, cuja apresentação e propósito são diferentes, tecem, aos nossos olhos, um universo relativamente homogéneo na sua diversidade. O que é que pode ser mais realista e, em certo sentido, mais informativo sobre a vida nos Estados Unidos do que uma série de TV americana? E a falsa familiaridade que estabelecemos, através da imagem, com os actores da História, pessoas que conhecemos tão bem como os heróis das novelas ou as estrêlas desportivas? Na realidade, não os conhecemos pessoalmente mas reconhecemo-los.
Esta super-abundância de espaço provoca o aparecimento de novos universos. Estes universos são ficcionais e são essencialmente universos de reconhecimento. A propriedade destes universos simbólicos é constituírem-se como lugares de reconhecimento – não de conhecimento -, universos fechados onde tudo é signo. Colecções de códigos de que alguns possuem a chave mas cuja existência é aceite por todos. Totalidades parcialmente ficcionais mas efectivas. Universos de sentido nos quais os indivíduos se definem a si mesmos segundo o mesmo critério, os mesmos valores, os mesmos procedimentos interpretativos.
A super-abundância de espaço define-se nas mudanças de escala, na proliferação da imagem e na aceleração dos meios de transporte. A concretização disto envolve consideráveis modificações físicas: concentrações urbanas, movimentos de populações e a multiplicação daquilo que podemos chamar os não-lugares, por oposição à noção sociológica de lugar e à ideia de cultura localizada no tempo e no espaço. As instalações necessárias para a aceleração de circulação de pessoas e bens – auto-estradas, aeroportos, estações de caminho de ferro – são tanto não-lugares como os próprios meios de transporte, os grandes centros comerciais ou os imensos campos de refugiados.
A terceira figura de excesso relativamente à qual a situação da supermodernidade pode ser definida é a figura do eu. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, pelo menos, o indivíduo quer ser um mundo ele mesmo. Ele pretende interpretar a informação, que à partida considera ser-lhe específicamente destinada, por si mesmo e para si mesmo. Os sociólogos das religiões notaram, inclusivamente, esta situação relativamente à teorização e prática religiosas: cada católico pratica “à sua maneira”. Cada crente “tem a sua” ideia de Deus.
As questões das relações entre sexos opostos são resolvidas no âmbito da indiferenciação do valor do indivíduo.
Por outro lado, nunca as histórias individuais foram tão explícitamente afectadas pela história colectiva como, também não deixa de ser verdade que os pontos de referência para a identificação colectiva nunca foram tão instáveis. Assim, a produção individual de sentidos torna-se mais necessária que nunca. Naturalmente, torna-se fácil entender o conjunto de ilusões em que esta aproximação individualizada se baseia, bem como a produção de estereotipos, a maioria dos quais escapa aos indivíduos envolvidos.
Não deixa, no entanto, de ser interessante, o carácter singular desta produção de sentidos, consubstânciado num aparato publicitário – o corpo, a frescura da vida – bem como num conjunto de vocábulos políticos – as liberdades individuais.
Mas, independentemente da atenção que requer, hoje, esta individualização de referências, não deixa de ser interessante a reflexão sobre os factores da singularidade: singularidade de objectos, de grupos e de reconstrução de lugares. Estas singularidades constituem-se como paradoxais relativamente à aceleração do tempo e do espaço e à des-localização cultural tantas vezes referida de forma apologética como “homogeneização cultural” ou “cultura global”.