terça-feira, 17 de maio de 2005
S. Bernardo
Há 22 anos, António Carlos Carvalho, num encontro que tivemos a propósito de uma exposição (na altura ele escrevia para A Capital), teve a amabilidade de me oferecer um exemplar de S. Bernardo de René Guénon, numa tradução sua. Nos anos seguintes acabei por adquirir toda a obra deste autor, cerca de 25 volumes, muito esquecido — quando não ignorado — que, em Portugal, terá tido, quase exclusivamente, como tradutor e promotor, António Carlos Carvalho. Na Colecção Janus que dirigiu para a Editorial Vega, António Carlos Carvalho traduziu, para além do S. Bernardo, O esoterismo de Dante e A crise do mundo moderno. Julgo que para além deste três textos de Guénon, existe apenas uma outra tradução de O rei do mundo, levada a cabo por Rui José Sacramento Alecrim para as Edições 70. Quase toda a obra de Guénon, adquiri-a em Paris, nas edições da Gallimard e da já desaparecida Éditions Traditionelles, alguns volumes, também esgotados em França, encontrei-os em Itália, editados pela Adelphi e pela Rusconi Editore e traduzidos para o italiano por Francesco Zambon, Pietro Nutrizio e Luigi Grozio, bem como alguma coisa editada pela Editorial Universitaria de Buenos Aires e com excelente distribuição em Espanha.
Embora com um pensamento muito datado, este S. Bernardo de Guénon não deixa de tocar alguns pontos de uma extrema actualidade, neste caldo relativista em que vivemos. É no entanto, um belo exemplar da profunda erudição deste autor. Porque me parece de elementar justiça contribuir no pouco que posso para a divulgação da obra muito esquecida de R. Guénon, fica aqui, dividido em 3 partes, a versão integral de S. Bernardo, na tradução de António Carlos Carvalho:
S. Bernardo (I)
(René Guénon)
Entre as grandes figuras da Idade Média há poucas cujo estudo seja mais apropriado do que a de S. Bernardo para dissipar certos preconceitos caros ao espírito moderno. Efectivamente, haverá algo mais desconcertante, para esse espírito, do que ver um puro contemplativo, que sempre quis ser assim e continuar a sê-lo, chamado a desempenhar um papel preponderante na condução dos negócios da Igreja e do Estado, e triunfando muitas vezes onde tinha fracassado toda a prudência dos políticos e dos diplomatas de profissão? Haverá algo mais surpreendente, e mesmo mais paradoxal, de acordo com a maneira vulgar de julgar as coisas, do que um místico que só sente desdém por aquilo que ele chama "as argúcias de Platão e subtilezas de Aristóteles" e, que todavia, vence sem dificuldade os mais subtis dialécticos do seu tempo? Toda a vida de S. Bernardo poderia parecer destinada a mostrar, através de um exemplo fulgurante, que existem, para resolver os problemas de ordem intelectual e mesmo de ordem prática, meios totalmente diferentes daqueles que se tornou hábito, desde há muito tempo, considerar como os únicos eficazes, sem dúvida porque eles são os únicos ao alcance de uma sabedoria puramente humana, que nem sequer é a sombra da verdadeira sabedoria. Essa vida aparece, assim, de qualquer modo, como uma refutação antecipada destes erros, aparentemente opostos mas realmente solidários, que são o Nacionalismo e o Pragmatismo; e, ao mesmo tempo, confunde e derruba, para quem as examina imparcialmente, todas as ideias preconcebidas dos historiadores "cientistas" que consideram, com Renan, que "a negação do sobrenatural constitui a própria essencia da crítica", o que nós admitimos, aliás, de bom grado, mas porque vemos nessa incompatibilidade o contrário do que eles vêem nela: a condenação da própria "crítica", e não a do sobrenatural. Na verdade, que lições poderiam, na nossa época, ser mais proveitosas do que essas?
Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines-lès-Dijon; os seus pais pertenciam à alta nobreza de Borgonha, e se apontamos esse facto é porque nos parece que alguns traços da sua vida e da sua doutrina, de que falaremos seguidamente, podem, até certo ponto, estar ligados a essa origem. Não queremos, somente, dizer que é possível explicar desse modo o ardor por vezes belicoso do seu zelo ou a violência que ele pôs muitas vezes nas polémicas para que foi arrastado, e que era, aliás, meramente superficial, porque a bondade e a doçura constituiam, incontestávelmente, o fundo do seu carácter. Pretendemos, sobretudo, aludir às suas relações com as instituições e o ideal da Cavalaria, aos quais, de resto, se deve sempre dar grande importância se se quiser compreender os acontecimentos e o próprio espírito da Idade Média.
Foi por volta dos seus vinte anos que Bernardo concebeu o projecto de se retirar do mundo; e em pouco tempo conseguiu fazer com que a sua visão fosse partilhada por todos os seus irmãos, alguns dos seus próximos e um certo número dos seus amigos. Neste primeiro apostolado, a sua força de persuasão era tal, apesar da sua juventude, que brevemente "ele se tornou, diz o seu biógrafo, o terror das mães e das esposas; os amigos temiam vê-lo abordar os seus amigos". Há já aí qualquer coisa de extraordinário, e seria seguramente insuficiente invocar o poder do "génio", no sentido profano desta palavra, para explicar uma influência semelhante. Não será melhor reconhecer aí a acção da graça divina que, penetrando de qualquer modo toda a pessoa do apóstolo e irradiando exteriormente pela sua superabundância, se comunicava através dele como por um canal, de acordo com a comparação que ele próprio utilizará, mais tarde, aplicando-a à Santa Virgem, e que se pode também, restringindo mais ou menos o seu alcance, aplicar a todos os santos?
É portanto, acompanhado por uma trintena de jovens que Bernardo em 1112 entrou no mosteiro de Cister, escolhido por ele em virtude do rigor com que aí era observada a regra, rigor contrastante com o desleixo que se tinha introduzido em todos os outros ramos da Ordem beneditina. Três anos mais tarde, os seus superiores não hesitavam em lhe confiar, apesar da sua inexperiência e da saúde periclitante, a direcção de doze religiosos que íam fundar uma nova abadia, a de Claraval, que ele deveria governar até à sua morte, repelindo sempre as honras e as dignidades que lhe ofereceriam tantas vezes, ao longo da sua carreira. O renome de Claraval não tardou a estender-se até longe e o desenvolvimento que essa abadia adquiriu em breve foi verdadeiramente prodigioso: quando morreu o seu fundador, ela abrigava, diz-se, cerca de setecentos monges e tinha dado origem a mais de sessenta novos mosteiros.
O cuidado que Bernardo trouxe à administração de Claraval, regulando ele próprio até aos mais minuciosos pormenores da vida quotidiana, a parte que ele teve na direcção da Ordem cisterciense, como chefe de uma das suas primeiras abadias, a habilidade e o êxito das suas intervenções para aplanar as dificuldades que surgiam frequentemente com ordens rivais, tudo isso basta já para provar que aquilo que se designa por sentido prático pode muito bem aliar-se, por vezes, à mais alta espiritualidade. Havia aí mais do que suficiente para absorver toda a actividade de um homem vulgar; e, no entanto, Bernardo em breve veria abrir-se diante de si um outro campo de acção, aliás bem contra a sua vontade, porque ele temia, mais do que qualquer outra coisa ser obrigado a saír do seu claustro para se misturar com os assuntos do mundo exterior, do qual ele tinha julgado poder isolar-se para sempre, a fim de se poder entregar inteiramente à ascese e à contemplação, sem que qualquer coisa o viesse distrair do que era, aos seus olhos, segundo as palavras evangélicas, "a única coisa necessária". Nisso ele tinha-se enganado redondamente; mas todas as "distracções" no sentido etimológico, às quais ele não pôde escapar e de que chegou a lamentar-se com alguma amargura, não o impediram de alcançar os pontos mais altos da vida mística. Isso é notável; e o que não o é menos é que, apesar de toda a sua humildade e de todos os esforços que empreendem para ficar na sombra, fez-se apelo à sua colaboração em todos os assuntos importantes, e que, embora ele nada fosse aos olhos do mundo, todos, incluindo os mais altos dignatários civis e eclesiásticos, se inclinaram sempre perante a sua autoridade espiritual — e nós não sabemos se esse facto é mais um louvor do santo ou da época em que viveu. Que contraste entre o nosso tempo e aquele em que um simples monge podia, pela simples irradiação das suas virtudes eminentes, tornar-se de certo modo o centro da Europa e da Cristandade, o árbitro incontestado de todos os conflitos em que o interesse histórico estava em jogo, tanto na ordem política como na ordem religiosa, o juiz dos mestres mais reputados da filosofia e da teologia, o restaurador da unidade da Igreja, o mediador entre o Papado e o Império, e ver, por fim, exércitos de muitas centenas de milhar de homens reunirem-se com a sua pregação.
Bernardo tinha começado em boa hora a denunciar o luxo no qual vivia então a maior parte dos membros do clero secular e mesmo os monges de certas abadias; as suas prédicas tinham provocado conversões retumbantes, entre as quais a de Suger, o ilustre abade de Saint-Denis, que, sem usar ainda o título de primeiro-ministro do rei de França, ocupava já essas funções. Foi essa conversão que tornou conhecido na corte o nome do abade de Claraval, considerado aí, segundo parece, com um respeito misturado com o temor, porque viam nele o adversário irredutível de todos os abusos e de todas as injustiças; e, efectivamente, em breve o viram intervir nos conflitos que tinham rebentado entre Luís o Gordo e diversos bispos, protestando em voz alta contra as usurpações do poder civil sobre os direitos da Igreja. Para dizer a verdade, não se tratava ainda senão de assuntos meramente locais, interessando somente este mosteiro ou aquela diocese; mas em 1130 ocorreram acontecimentos de uma outra gravidade, que puseram em perigo toda a Igreja dividida pelo cisma do anti-papa Anacleto II, e foi nessa ocasião que o renome de Bernardo se espalhou por toda a Cristandade.
Não temos aqui que voltar a traçar a história do cisma em todos os seus pormenores: os cardeais, divididos em duas facções rivais, tinham eleito sucessivamente Inocêncio II e Anacleto II; o primeiro, obrigado a fugir de Roma, não desesperou dos seus direitos e fez deles apelo à Igreja universal. A França foi a primeira a responder; no concílio convocado pelo rei em Etampes, Bernardo apareceu, diz o seu biógrafo, "como um verdadeiro enviado de Deus" no meio dos bispos e dos senhores reunidos; todos seguiram o seu conselho acerca da questão submetida ao seu exame e reconheceram a validade da eleição de Inocêncio II. Este encontrava-se, então, em solo francês e foi na abadia de Cluny que Suger lhe anunciou a decisão do concílio; percorreu depois as principais dioceses e foi por toda a parte acolhido com entusiasmo; este movimento iria arrastar consigo a adesão de quase toda a Cristandade. O abade de Claraval dirigiu-se ao rei de Inglaterra e triunfou prontamente das suas hesitações; talvez tenha também tido uma parte pelo menos indirecta no reconhecimento de Inocêncio II por parte do rei Lotário e do clero alemão. Foi seguidamente à Aquitania para combater a influência do bispo Gérard d'Angoulême, partidário de Anacleto II; mas somente no decorrer de uma segunda viagem a esta região, em 1135, é que conseguiu destruir o cisma, operando a conversão do conde de Poitiers. Entretanto, teve que ir a Itália, chamado por Inocêncio II que tinha regressado com o apoio de Lotário, mas que fora detido por dificuldades imprevistas, devidas à hostilidade de Pisa e de Genova; era necessário encontrar um entendimento entre as duas cidades rivais e fazê-las aceitá-lo; Bernardo foi encarregado dessa difícil missão e levou-a a cabo com o mais extraordinário êxito. Inocêncio pôde finalmente entrar em Roma, mas Anacleto permaneceu entrincheirado em S. Pedro, que foi impossível tomar; Lotário, coroado imperador em São João de Latrão, em breve se retirou com o seu exército; após a sua partida, o anti-papa retomou a ofensiva e o pontífice legítimo teve que fugir novamente e refugiar-se em Pisa.
Há 22 anos, António Carlos Carvalho, num encontro que tivemos a propósito de uma exposição (na altura ele escrevia para A Capital), teve a amabilidade de me oferecer um exemplar de S. Bernardo de René Guénon, numa tradução sua. Nos anos seguintes acabei por adquirir toda a obra deste autor, cerca de 25 volumes, muito esquecido — quando não ignorado — que, em Portugal, terá tido, quase exclusivamente, como tradutor e promotor, António Carlos Carvalho. Na Colecção Janus que dirigiu para a Editorial Vega, António Carlos Carvalho traduziu, para além do S. Bernardo, O esoterismo de Dante e A crise do mundo moderno. Julgo que para além deste três textos de Guénon, existe apenas uma outra tradução de O rei do mundo, levada a cabo por Rui José Sacramento Alecrim para as Edições 70. Quase toda a obra de Guénon, adquiri-a em Paris, nas edições da Gallimard e da já desaparecida Éditions Traditionelles, alguns volumes, também esgotados em França, encontrei-os em Itália, editados pela Adelphi e pela Rusconi Editore e traduzidos para o italiano por Francesco Zambon, Pietro Nutrizio e Luigi Grozio, bem como alguma coisa editada pela Editorial Universitaria de Buenos Aires e com excelente distribuição em Espanha.
Embora com um pensamento muito datado, este S. Bernardo de Guénon não deixa de tocar alguns pontos de uma extrema actualidade, neste caldo relativista em que vivemos. É no entanto, um belo exemplar da profunda erudição deste autor. Porque me parece de elementar justiça contribuir no pouco que posso para a divulgação da obra muito esquecida de R. Guénon, fica aqui, dividido em 3 partes, a versão integral de S. Bernardo, na tradução de António Carlos Carvalho:
S. Bernardo (I)
(René Guénon)
Entre as grandes figuras da Idade Média há poucas cujo estudo seja mais apropriado do que a de S. Bernardo para dissipar certos preconceitos caros ao espírito moderno. Efectivamente, haverá algo mais desconcertante, para esse espírito, do que ver um puro contemplativo, que sempre quis ser assim e continuar a sê-lo, chamado a desempenhar um papel preponderante na condução dos negócios da Igreja e do Estado, e triunfando muitas vezes onde tinha fracassado toda a prudência dos políticos e dos diplomatas de profissão? Haverá algo mais surpreendente, e mesmo mais paradoxal, de acordo com a maneira vulgar de julgar as coisas, do que um místico que só sente desdém por aquilo que ele chama "as argúcias de Platão e subtilezas de Aristóteles" e, que todavia, vence sem dificuldade os mais subtis dialécticos do seu tempo? Toda a vida de S. Bernardo poderia parecer destinada a mostrar, através de um exemplo fulgurante, que existem, para resolver os problemas de ordem intelectual e mesmo de ordem prática, meios totalmente diferentes daqueles que se tornou hábito, desde há muito tempo, considerar como os únicos eficazes, sem dúvida porque eles são os únicos ao alcance de uma sabedoria puramente humana, que nem sequer é a sombra da verdadeira sabedoria. Essa vida aparece, assim, de qualquer modo, como uma refutação antecipada destes erros, aparentemente opostos mas realmente solidários, que são o Nacionalismo e o Pragmatismo; e, ao mesmo tempo, confunde e derruba, para quem as examina imparcialmente, todas as ideias preconcebidas dos historiadores "cientistas" que consideram, com Renan, que "a negação do sobrenatural constitui a própria essencia da crítica", o que nós admitimos, aliás, de bom grado, mas porque vemos nessa incompatibilidade o contrário do que eles vêem nela: a condenação da própria "crítica", e não a do sobrenatural. Na verdade, que lições poderiam, na nossa época, ser mais proveitosas do que essas?
Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines-lès-Dijon; os seus pais pertenciam à alta nobreza de Borgonha, e se apontamos esse facto é porque nos parece que alguns traços da sua vida e da sua doutrina, de que falaremos seguidamente, podem, até certo ponto, estar ligados a essa origem. Não queremos, somente, dizer que é possível explicar desse modo o ardor por vezes belicoso do seu zelo ou a violência que ele pôs muitas vezes nas polémicas para que foi arrastado, e que era, aliás, meramente superficial, porque a bondade e a doçura constituiam, incontestávelmente, o fundo do seu carácter. Pretendemos, sobretudo, aludir às suas relações com as instituições e o ideal da Cavalaria, aos quais, de resto, se deve sempre dar grande importância se se quiser compreender os acontecimentos e o próprio espírito da Idade Média.
Foi por volta dos seus vinte anos que Bernardo concebeu o projecto de se retirar do mundo; e em pouco tempo conseguiu fazer com que a sua visão fosse partilhada por todos os seus irmãos, alguns dos seus próximos e um certo número dos seus amigos. Neste primeiro apostolado, a sua força de persuasão era tal, apesar da sua juventude, que brevemente "ele se tornou, diz o seu biógrafo, o terror das mães e das esposas; os amigos temiam vê-lo abordar os seus amigos". Há já aí qualquer coisa de extraordinário, e seria seguramente insuficiente invocar o poder do "génio", no sentido profano desta palavra, para explicar uma influência semelhante. Não será melhor reconhecer aí a acção da graça divina que, penetrando de qualquer modo toda a pessoa do apóstolo e irradiando exteriormente pela sua superabundância, se comunicava através dele como por um canal, de acordo com a comparação que ele próprio utilizará, mais tarde, aplicando-a à Santa Virgem, e que se pode também, restringindo mais ou menos o seu alcance, aplicar a todos os santos?
É portanto, acompanhado por uma trintena de jovens que Bernardo em 1112 entrou no mosteiro de Cister, escolhido por ele em virtude do rigor com que aí era observada a regra, rigor contrastante com o desleixo que se tinha introduzido em todos os outros ramos da Ordem beneditina. Três anos mais tarde, os seus superiores não hesitavam em lhe confiar, apesar da sua inexperiência e da saúde periclitante, a direcção de doze religiosos que íam fundar uma nova abadia, a de Claraval, que ele deveria governar até à sua morte, repelindo sempre as honras e as dignidades que lhe ofereceriam tantas vezes, ao longo da sua carreira. O renome de Claraval não tardou a estender-se até longe e o desenvolvimento que essa abadia adquiriu em breve foi verdadeiramente prodigioso: quando morreu o seu fundador, ela abrigava, diz-se, cerca de setecentos monges e tinha dado origem a mais de sessenta novos mosteiros.
O cuidado que Bernardo trouxe à administração de Claraval, regulando ele próprio até aos mais minuciosos pormenores da vida quotidiana, a parte que ele teve na direcção da Ordem cisterciense, como chefe de uma das suas primeiras abadias, a habilidade e o êxito das suas intervenções para aplanar as dificuldades que surgiam frequentemente com ordens rivais, tudo isso basta já para provar que aquilo que se designa por sentido prático pode muito bem aliar-se, por vezes, à mais alta espiritualidade. Havia aí mais do que suficiente para absorver toda a actividade de um homem vulgar; e, no entanto, Bernardo em breve veria abrir-se diante de si um outro campo de acção, aliás bem contra a sua vontade, porque ele temia, mais do que qualquer outra coisa ser obrigado a saír do seu claustro para se misturar com os assuntos do mundo exterior, do qual ele tinha julgado poder isolar-se para sempre, a fim de se poder entregar inteiramente à ascese e à contemplação, sem que qualquer coisa o viesse distrair do que era, aos seus olhos, segundo as palavras evangélicas, "a única coisa necessária". Nisso ele tinha-se enganado redondamente; mas todas as "distracções" no sentido etimológico, às quais ele não pôde escapar e de que chegou a lamentar-se com alguma amargura, não o impediram de alcançar os pontos mais altos da vida mística. Isso é notável; e o que não o é menos é que, apesar de toda a sua humildade e de todos os esforços que empreendem para ficar na sombra, fez-se apelo à sua colaboração em todos os assuntos importantes, e que, embora ele nada fosse aos olhos do mundo, todos, incluindo os mais altos dignatários civis e eclesiásticos, se inclinaram sempre perante a sua autoridade espiritual — e nós não sabemos se esse facto é mais um louvor do santo ou da época em que viveu. Que contraste entre o nosso tempo e aquele em que um simples monge podia, pela simples irradiação das suas virtudes eminentes, tornar-se de certo modo o centro da Europa e da Cristandade, o árbitro incontestado de todos os conflitos em que o interesse histórico estava em jogo, tanto na ordem política como na ordem religiosa, o juiz dos mestres mais reputados da filosofia e da teologia, o restaurador da unidade da Igreja, o mediador entre o Papado e o Império, e ver, por fim, exércitos de muitas centenas de milhar de homens reunirem-se com a sua pregação.
Bernardo tinha começado em boa hora a denunciar o luxo no qual vivia então a maior parte dos membros do clero secular e mesmo os monges de certas abadias; as suas prédicas tinham provocado conversões retumbantes, entre as quais a de Suger, o ilustre abade de Saint-Denis, que, sem usar ainda o título de primeiro-ministro do rei de França, ocupava já essas funções. Foi essa conversão que tornou conhecido na corte o nome do abade de Claraval, considerado aí, segundo parece, com um respeito misturado com o temor, porque viam nele o adversário irredutível de todos os abusos e de todas as injustiças; e, efectivamente, em breve o viram intervir nos conflitos que tinham rebentado entre Luís o Gordo e diversos bispos, protestando em voz alta contra as usurpações do poder civil sobre os direitos da Igreja. Para dizer a verdade, não se tratava ainda senão de assuntos meramente locais, interessando somente este mosteiro ou aquela diocese; mas em 1130 ocorreram acontecimentos de uma outra gravidade, que puseram em perigo toda a Igreja dividida pelo cisma do anti-papa Anacleto II, e foi nessa ocasião que o renome de Bernardo se espalhou por toda a Cristandade.
Não temos aqui que voltar a traçar a história do cisma em todos os seus pormenores: os cardeais, divididos em duas facções rivais, tinham eleito sucessivamente Inocêncio II e Anacleto II; o primeiro, obrigado a fugir de Roma, não desesperou dos seus direitos e fez deles apelo à Igreja universal. A França foi a primeira a responder; no concílio convocado pelo rei em Etampes, Bernardo apareceu, diz o seu biógrafo, "como um verdadeiro enviado de Deus" no meio dos bispos e dos senhores reunidos; todos seguiram o seu conselho acerca da questão submetida ao seu exame e reconheceram a validade da eleição de Inocêncio II. Este encontrava-se, então, em solo francês e foi na abadia de Cluny que Suger lhe anunciou a decisão do concílio; percorreu depois as principais dioceses e foi por toda a parte acolhido com entusiasmo; este movimento iria arrastar consigo a adesão de quase toda a Cristandade. O abade de Claraval dirigiu-se ao rei de Inglaterra e triunfou prontamente das suas hesitações; talvez tenha também tido uma parte pelo menos indirecta no reconhecimento de Inocêncio II por parte do rei Lotário e do clero alemão. Foi seguidamente à Aquitania para combater a influência do bispo Gérard d'Angoulême, partidário de Anacleto II; mas somente no decorrer de uma segunda viagem a esta região, em 1135, é que conseguiu destruir o cisma, operando a conversão do conde de Poitiers. Entretanto, teve que ir a Itália, chamado por Inocêncio II que tinha regressado com o apoio de Lotário, mas que fora detido por dificuldades imprevistas, devidas à hostilidade de Pisa e de Genova; era necessário encontrar um entendimento entre as duas cidades rivais e fazê-las aceitá-lo; Bernardo foi encarregado dessa difícil missão e levou-a a cabo com o mais extraordinário êxito. Inocêncio pôde finalmente entrar em Roma, mas Anacleto permaneceu entrincheirado em S. Pedro, que foi impossível tomar; Lotário, coroado imperador em São João de Latrão, em breve se retirou com o seu exército; após a sua partida, o anti-papa retomou a ofensiva e o pontífice legítimo teve que fugir novamente e refugiar-se em Pisa.