domingo, 14 de agosto de 2005
Tempo
Na passagem das Enéadas que pretende interrogar e definir a natureza do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eternidade, que — conforme todos sabem — é o modelo e arquétipo daquele. Esta advertência preliminar, tanto mais grave se a julgarmos sincera, parece aniquilar toda a esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um problema para nós, um tremendo e exigente problema, porventura o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança. Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um registo que a ninguém distrai da convicção de que a eternidade é uma imagem feita com substância de tempo. É esta imagem, esta tosca palavra enriquecida pelos desacordos humanos, que me proponho historiar.
Invertendo o método de Plotino (única maneira de aproveitá-lo) começarei por recordar as obscuridades inerentes ao tempo: mistério metafísico, natural, que tem de anteceder a eternidade, que é filha dos homens. Uma destas obscuridades, não a mais árdua, mas também não a menos bela, é a que nos impede de precisar a direcção do tempo. Que flui do passado para o porvir é a crença comum, mas de modo nenhum é mais ilógica a sua contrária, a que foi fixada em verso espanhol por Miguel de Unamuno:
Nocturno el rio de las horas fluye
desde su manantial que es el mañana
eterno...
Ambas são igualmente verosímeis — e igualmente inverificáveis. Bradley nega as duas e avança um hipótese pessoal: excluir o futuro, que é uma simples constrição da nossa esperança, e reduzir o "actual" à agonia do momento presente desintegrando-se no passado. Esta regressão temporal costuma corresponder aos estados descrentes ou insípidos, enquanto qualquer intensidade nos parece marchar sobre o porvir... Bradley nega o futuro; uma das escolas filosóficas da Índia nega o presente, por considerá-lo incaptável. "A laranja está para cair do ramo, ou já está no chão", afirmam essses estranhos simplificadores. "Ninguém a vê cair".
Outras dificuldades propõe o tempo. Uma, porventura a maior, a de sincronizar o tempo individual de cada pessoa com o tempo geral das matemáticas, tem sido largamente apregoada pelo recente alarme relativista, e todos se lembram dela — ou lembram-se de a ter lembrado até há pouquíssimo tempo. (Eu recupero-a assim, deformando-a: Se o tempoo é um processo mental, como podem compartilhá-lo milhares de homens ou mesmo dois homens diferentes?) Outra é dedicada pelos Eleatas a refutar o movimento. Pode caber nestas palavras: "É impossível que em oitocentos anos de tempo decorra um prazo de catorze minutos, porque antes é obrigatório que tenham passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três minutos e meio, um minuto e três quartos, e assim infinitamente, de maneira que os catorze minutos nunca se cumprem".
J. L. Borges in História da Eternidade, 1936.
Na passagem das Enéadas que pretende interrogar e definir a natureza do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eternidade, que — conforme todos sabem — é o modelo e arquétipo daquele. Esta advertência preliminar, tanto mais grave se a julgarmos sincera, parece aniquilar toda a esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um problema para nós, um tremendo e exigente problema, porventura o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança. Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um registo que a ninguém distrai da convicção de que a eternidade é uma imagem feita com substância de tempo. É esta imagem, esta tosca palavra enriquecida pelos desacordos humanos, que me proponho historiar.
Invertendo o método de Plotino (única maneira de aproveitá-lo) começarei por recordar as obscuridades inerentes ao tempo: mistério metafísico, natural, que tem de anteceder a eternidade, que é filha dos homens. Uma destas obscuridades, não a mais árdua, mas também não a menos bela, é a que nos impede de precisar a direcção do tempo. Que flui do passado para o porvir é a crença comum, mas de modo nenhum é mais ilógica a sua contrária, a que foi fixada em verso espanhol por Miguel de Unamuno:
Nocturno el rio de las horas fluye
desde su manantial que es el mañana
eterno...
Ambas são igualmente verosímeis — e igualmente inverificáveis. Bradley nega as duas e avança um hipótese pessoal: excluir o futuro, que é uma simples constrição da nossa esperança, e reduzir o "actual" à agonia do momento presente desintegrando-se no passado. Esta regressão temporal costuma corresponder aos estados descrentes ou insípidos, enquanto qualquer intensidade nos parece marchar sobre o porvir... Bradley nega o futuro; uma das escolas filosóficas da Índia nega o presente, por considerá-lo incaptável. "A laranja está para cair do ramo, ou já está no chão", afirmam essses estranhos simplificadores. "Ninguém a vê cair".
Outras dificuldades propõe o tempo. Uma, porventura a maior, a de sincronizar o tempo individual de cada pessoa com o tempo geral das matemáticas, tem sido largamente apregoada pelo recente alarme relativista, e todos se lembram dela — ou lembram-se de a ter lembrado até há pouquíssimo tempo. (Eu recupero-a assim, deformando-a: Se o tempoo é um processo mental, como podem compartilhá-lo milhares de homens ou mesmo dois homens diferentes?) Outra é dedicada pelos Eleatas a refutar o movimento. Pode caber nestas palavras: "É impossível que em oitocentos anos de tempo decorra um prazo de catorze minutos, porque antes é obrigatório que tenham passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três minutos e meio, um minuto e três quartos, e assim infinitamente, de maneira que os catorze minutos nunca se cumprem".
J. L. Borges in História da Eternidade, 1936.