segunda-feira, 31 de outubro de 2005
O guardião dos livros
Foto de Lylia Corneli
Ali estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A recta música e as rectas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os rituais que são a única sabedoria
Outorgada aos homens pelo Firmamento,
A decência desse imperador
Cuja serenidade foi reflectida pelo mundo, o seu espelho,
De maneira que os campos davam os seus frutos
E as torrentes respeitavam as suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para assinalar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou a sua memória estão nos livros
Que guardo na torre.
Os tártaros vieram do Norte
Em crinados potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar a sua impiedade,
Erigiram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o preverso e o justo,
Mataram o escravo agrilhoado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para Sul,
Inocentes como animais de presa,
Cruéis como facas.
Na alba duvidosa
O pai do meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre onde permaneço
Recordando os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.
Nos meus olhos não há dias. As prateleiras
Estão muito altas e os meus anos não as atingem
Léguas de poeira e sono cercam a torre.
Para quê enganar-me?
A verdade é que nunca soube ler,
Mas consolo-me ao pensar
Que o imaginado e o passado são já a mesma coisa
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
Que agora volta a ser o deserto.
O que me impede de sonhar que uma vez
Decifrei a sabedoria
E desenhei com mão aplicada os símbolos?
O meu nome é Hsiang. Sou o que guarda os livros
Que talvez sejam os últimos
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Ali estão nas altas prateleiras,
Longínquos e ao mesmo tempo próximos,
Secretos e visíveis como os astros.
Ali estão os jardins, os templos.
J.L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Foto de Lylia Corneli
Ali estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A recta música e as rectas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os rituais que são a única sabedoria
Outorgada aos homens pelo Firmamento,
A decência desse imperador
Cuja serenidade foi reflectida pelo mundo, o seu espelho,
De maneira que os campos davam os seus frutos
E as torrentes respeitavam as suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para assinalar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou a sua memória estão nos livros
Que guardo na torre.
Os tártaros vieram do Norte
Em crinados potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar a sua impiedade,
Erigiram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o preverso e o justo,
Mataram o escravo agrilhoado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para Sul,
Inocentes como animais de presa,
Cruéis como facas.
Na alba duvidosa
O pai do meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre onde permaneço
Recordando os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.
Nos meus olhos não há dias. As prateleiras
Estão muito altas e os meus anos não as atingem
Léguas de poeira e sono cercam a torre.
Para quê enganar-me?
A verdade é que nunca soube ler,
Mas consolo-me ao pensar
Que o imaginado e o passado são já a mesma coisa
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
Que agora volta a ser o deserto.
O que me impede de sonhar que uma vez
Decifrei a sabedoria
E desenhei com mão aplicada os símbolos?
O meu nome é Hsiang. Sou o que guarda os livros
Que talvez sejam os últimos
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Ali estão nas altas prateleiras,
Longínquos e ao mesmo tempo próximos,
Secretos e visíveis como os astros.
Ali estão os jardins, os templos.
J.L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.