sábado, 24 de dezembro de 2005
João I: 14
Foto de Lylia Corneli
Não será menos um enigma esta folha
do que as dos Meus livros sagrados
nem essas outras repetidas
pelas bocas ignorantes
julgando serem de um homem e não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será,
volto a condescender com a linguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com uma criança brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com os Meus filhos.
Estive entre eles com espanto e ternura.
por uma obra de magia
nasci curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que nunca é a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendurado numa cruz.
Bebi a taça até às fezes.
Vi com os Meus olhos o que nunca tinha visto:
a noite e as suas estrelas.
Conheci o brilhante, o arenoso, o ímpar, o áspero,
o sabor do mel e das maçãs,
a água numa garganta de sede,
o peso de um metal na palma da mão,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a erva,
o cheiro da chuva na Galileia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escritura a um homem qualquer;
nunca será o que quero dizer,
não deixará de ser o seu reflexo.
Da Minha eternidade tombam estes sinais.
Que outro, não o que é agora o seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei tigre entre tigres
e pregarei a Minha lei à sua selva,
a uma grande árvore na Ásia.
Por vezes penso com nostalgia
no cheiro dessa carpintaria.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Foto de Lylia Corneli
Não será menos um enigma esta folha
do que as dos Meus livros sagrados
nem essas outras repetidas
pelas bocas ignorantes
julgando serem de um homem e não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será,
volto a condescender com a linguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com uma criança brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com os Meus filhos.
Estive entre eles com espanto e ternura.
por uma obra de magia
nasci curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que nunca é a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendurado numa cruz.
Bebi a taça até às fezes.
Vi com os Meus olhos o que nunca tinha visto:
a noite e as suas estrelas.
Conheci o brilhante, o arenoso, o ímpar, o áspero,
o sabor do mel e das maçãs,
a água numa garganta de sede,
o peso de um metal na palma da mão,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a erva,
o cheiro da chuva na Galileia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escritura a um homem qualquer;
nunca será o que quero dizer,
não deixará de ser o seu reflexo.
Da Minha eternidade tombam estes sinais.
Que outro, não o que é agora o seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei tigre entre tigres
e pregarei a Minha lei à sua selva,
a uma grande árvore na Ásia.
Por vezes penso com nostalgia
no cheiro dessa carpintaria.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.