segunda-feira, 5 de dezembro de 2005
Os espelhos
Foto de Wiejewiatr
Eu, que senti o horror dos espelhos
Não só ante o cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um impossível espaço de reflexos,
Mas ante a água especular que imita
O outro azul no seu profundo céu
Que às vezes raia o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita
E ante a superfície silenciosa
Do ébano subtil, cuja tersura
Repete como um sonho essa brancura
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao cabo de tantos e perplexos
Anos de errar sob a diversa lua,
Pergunto-me que acaso da fortuna
Determinou que temesse os espelhos.
Espelhos de metal, dissimulado
Espelho de acaju que pela bruma
Do seu crepúsculo vermelho esfuma
Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto,
Multiplicar o mundo como o acto
Genesíaco, insones e fatais.
Prolongam este mundo vão, incerto,
Na sua teia sempre fugidia;
às vezes pela tarde os embacia
O hálito de alguém que não está morto.
Espia-nos o cristal. E se entre as quatro
Paredes deste quarto houver um espelho,
Já não estou só. Há outro. Há o reflexo
Na alba erguendo um sigiloso teatro.
Tudo acontece e nada se recorda
Lá nesses gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos,
Lemos os livros da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até ao dia
Em que um actor mimou sua felonia
Com arte silenciosa, num tablado.
Que haja sonhos é estranho, que haja espelhos,
Que o mais banal e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
E Deus (pensei assim) põe um empenho
Em toda essa virtual arquitectura
Que edifica a sua luz com a tersura
Do cristal e a sombra com o sonho.
E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.
J. L. Borges in O Fazedor, 1960.
Foto de Wiejewiatr
Eu, que senti o horror dos espelhos
Não só ante o cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um impossível espaço de reflexos,
Mas ante a água especular que imita
O outro azul no seu profundo céu
Que às vezes raia o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita
E ante a superfície silenciosa
Do ébano subtil, cuja tersura
Repete como um sonho essa brancura
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao cabo de tantos e perplexos
Anos de errar sob a diversa lua,
Pergunto-me que acaso da fortuna
Determinou que temesse os espelhos.
Espelhos de metal, dissimulado
Espelho de acaju que pela bruma
Do seu crepúsculo vermelho esfuma
Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto,
Multiplicar o mundo como o acto
Genesíaco, insones e fatais.
Prolongam este mundo vão, incerto,
Na sua teia sempre fugidia;
às vezes pela tarde os embacia
O hálito de alguém que não está morto.
Espia-nos o cristal. E se entre as quatro
Paredes deste quarto houver um espelho,
Já não estou só. Há outro. Há o reflexo
Na alba erguendo um sigiloso teatro.
Tudo acontece e nada se recorda
Lá nesses gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos,
Lemos os livros da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até ao dia
Em que um actor mimou sua felonia
Com arte silenciosa, num tablado.
Que haja sonhos é estranho, que haja espelhos,
Que o mais banal e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
E Deus (pensei assim) põe um empenho
Em toda essa virtual arquitectura
Que edifica a sua luz com a tersura
Do cristal e a sombra com o sonho.
E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.
J. L. Borges in O Fazedor, 1960.