quinta-feira, 5 de janeiro de 2006
A lenda
Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque eram ambos muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram uma fogueira e comeram. Guardavam silêncio, à maneira de pessoas cansadas quando declina o dia. No céu aparecia uma ou outra estrela, que ainda não recebera nome. À luz das chamas, Caim reparou na marca da pedra na testa de Abel e deixou caír o pão que ía levar à boca e pediu que lhe fosse perdoado o seu crime.
Abel respondeu:
— Tu mataste-me ou fui eu que te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como dantes.
— Agora sei que na verdade me perdoaste — disse Caim —, porque esquecer é perdoar. Eu tratarei também de esquecer.
Abel disse devagar:
— É verdade. Enquanto dura o remorso dura a culpa.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque eram ambos muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram uma fogueira e comeram. Guardavam silêncio, à maneira de pessoas cansadas quando declina o dia. No céu aparecia uma ou outra estrela, que ainda não recebera nome. À luz das chamas, Caim reparou na marca da pedra na testa de Abel e deixou caír o pão que ía levar à boca e pediu que lhe fosse perdoado o seu crime.
Abel respondeu:
— Tu mataste-me ou fui eu que te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como dantes.
— Agora sei que na verdade me perdoaste — disse Caim —, porque esquecer é perdoar. Eu tratarei também de esquecer.
Abel disse devagar:
— É verdade. Enquanto dura o remorso dura a culpa.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.