quarta-feira, 31 de maio de 2006
Uma vida de cão
Foto de Henri Zerdoun
Foto de Henri Zerdoun
Deito-me sempre muito cedo, e estafado, e no entanto não é visível, no meu dia de trabalho, nada de cansativo.
É possível que não se dê mesmo por nada.
Mas a mim, o que me espanta, é poder aguentar até à noite, e não ser obrigado a ir-me deitar logo às quatro da tarde.
O que me cansa são as minhas contínuas intervenções.
Já disse que na rua andava à pancada com toda a gente. Dou bofetadas num tipo, apalpo as mamas às mulheres, e servindo-me do meu pé como dum tentáculo, semeio o pânico nas carruagens do Metropolitano.
Quanto aos livros, são os que mais me dão cabo da cabeça. Não deixo uma palavra com o seu sentido, nem sequer com a sua forma.
Agarro-a e, após alguns esforços, arranco-lhe a raiz e desvio-a definitivamente da manada do autor.
Num capítulo há logo milhares de frases, e lá tenho eu que as sabotar todas. Isso é-me necessário.
Às vezes, algumas palavras resistem como torres. Tenho que atacá-las várias vezes e, já bem lançado nas minhas devastações, subitamente, na esquina de uma ideia, revejo a torre. Por conseguinte, não a tinha suficientemente demolido. Tenho que voltar ao princípio e encontrar o veneno para ela, e nisto passo tempos infinitos.
E uma vez lido o livro inteiro, lamento-me, pois não percebi nada... naturalmente. Não consegui engordar nada. Continuo magro e seco.
Eu pensava (não era?) que quando tivesse destruído tudo, encontraria o equilíbrio. Possivelmente. Mas o que isso demora, quanto demora!
Henri Michaux, in As Minhas Propriedades.
É possível que não se dê mesmo por nada.
Mas a mim, o que me espanta, é poder aguentar até à noite, e não ser obrigado a ir-me deitar logo às quatro da tarde.
O que me cansa são as minhas contínuas intervenções.
Já disse que na rua andava à pancada com toda a gente. Dou bofetadas num tipo, apalpo as mamas às mulheres, e servindo-me do meu pé como dum tentáculo, semeio o pânico nas carruagens do Metropolitano.
Quanto aos livros, são os que mais me dão cabo da cabeça. Não deixo uma palavra com o seu sentido, nem sequer com a sua forma.
Agarro-a e, após alguns esforços, arranco-lhe a raiz e desvio-a definitivamente da manada do autor.
Num capítulo há logo milhares de frases, e lá tenho eu que as sabotar todas. Isso é-me necessário.
Às vezes, algumas palavras resistem como torres. Tenho que atacá-las várias vezes e, já bem lançado nas minhas devastações, subitamente, na esquina de uma ideia, revejo a torre. Por conseguinte, não a tinha suficientemente demolido. Tenho que voltar ao princípio e encontrar o veneno para ela, e nisto passo tempos infinitos.
E uma vez lido o livro inteiro, lamento-me, pois não percebi nada... naturalmente. Não consegui engordar nada. Continuo magro e seco.
Eu pensava (não era?) que quando tivesse destruído tudo, encontraria o equilíbrio. Possivelmente. Mas o que isso demora, quanto demora!
Henri Michaux, in As Minhas Propriedades.
terça-feira, 30 de maio de 2006
Caros colegas...
Os caros colegas bloguistas ainda não perceberam bem qual é o significado do termo falência. É o que dá quando se não corta com a dependência paternal e se justifica essa dependência com o termo solidariedade do estado para com todos nós. O pai estado tem, então, que ter muitas mãos e muitos bolsos e as mesadas não dão para todos. Façam-se à vida que talvez Portugal venha a ser alguém.
Os caros colegas bloguistas ainda não perceberam bem qual é o significado do termo falência. É o que dá quando se não corta com a dependência paternal e se justifica essa dependência com o termo solidariedade do estado para com todos nós. O pai estado tem, então, que ter muitas mãos e muitos bolsos e as mesadas não dão para todos. Façam-se à vida que talvez Portugal venha a ser alguém.
Hauser & Wirth, de Londres a Zurique
Em Londres, a Hauser & Wirth apresenta, desde o passado dia 26 e até 27 de Agosto, pintura de Martin Kippenberger e um conjunto de peças escultóricas de Dieter Roth. Enquanto a pintura de Kippenberger continua a ter um acentuado sentido de intervenção política, a escultura de Roth é verdadeiramente surpreendente, principalmente para quem conhece melhor a sua obra gráfica. As peças articulam-se como uma instalação a partir de materiais efémeros mas visualmente eficazes.
A galeria de Zurique da Hauser & Wirth apresenta, a partir de 3 de Junho, mais duas exposições: Portrait of an Image é o título desta exposição de fotografia de Roni Horn, artista americana, nascida em 1955, e que a partir dos anos 80 começou a ter relevo através de um conjunto de obras de grande qualidade, nomeadamente na área da fotografia e da instalação.
A segunda exposição da Hauser & Wirth junta Roni Horn a Louise Bourgeois numa muito esperada mostra de desenhos.
A não perder, em Londres ou em Zurique, durante os meses de Junho e Julho.
A segunda exposição da Hauser & Wirth junta Roni Horn a Louise Bourgeois numa muito esperada mostra de desenhos.
A não perder, em Londres ou em Zurique, durante os meses de Junho e Julho.
Correio da Cassini
Rigel, a estrela mais brilhante da constelação de Orion, impõe-se, lá de muito longe, ao gigante Saturno. Enganos...
segunda-feira, 29 de maio de 2006
Ainda a propósito de narcisismos...
Talvez seja isso que Carrilho até hoje ainda não conseguiu apreender levando-o a culpabilizar inteiramente as "agências", custa-lhe aceitar que os eleitores gostem menos dele ... que ele próprio.
Hoje no Bicho carpinteiro.
Hoje no Bicho carpinteiro.
Acontecimento
Foto de Lilya Corneli
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou
Ruy Belo
Foto de Lilya Corneli
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou
Ruy Belo
sexta-feira, 26 de maio de 2006
Anselm Kiefer: Velimir Chlebnikov
O Aldrich Contemporary Art Museum apresenta uma das maiores exposições de Anselm Kiefer alguma vez organizadas nos Estados Unidos. Trata-se de trinta obras de grandes dimensões que ocuparão um pavilhão, especialmente construído para esta exposição, e que recria o atelier de Kiefer em França, nos arredores de Paris. A exposição e as obras são uma homenagem de Kiefer ao pensador e filósofo russo Velimir Chlebnikov (1885-1922) que viveu uma breve e tumultuosa vida sempre como figura dominante da vanguarda russa durante o período da I Guerra Mundial e da revolução soviética. Kiefer foi influenciado pelos escritos de Chlebnikov, particularmente as suas teorias esotéricas sobre as forças que, históricamente, causam os conflitos humanos.
Anselm Kiefer, nascido em 1945, é um dos mais importantes pintores contemporâneos. Vive e trabalha em França, nos arredores de Paris.
Esta exposição inaugura amanhã.
Esta exposição inaugura amanhã.
quinta-feira, 25 de maio de 2006
ESAIDAZU EGIA BA
Esaidazu egia ba ou Pero dime la verdad é a exposição que inaugurou hoje, em Bilbau, na Sala Rekalde. Roberto Aguirrezabala, Zigor Barayazarra, Gorka Eizagirre, Borja Estankona, Kepa Garraza, Alejandro Goienetxea, Enrike Hurtado, Saioa Olmo e Ixone Sádaba é o grupo de jovens artistas bascos que mostram as suas obras neste prestigiado espaço. Estes jovens artistas foram, todos eles, bolseiros do Departamento de Cultura da Biscaia nos últimos dois anos. Estes foram os trabalhos desenvolvidos. A ver, em Bilbau, até 9 de Julho.
NO ASPRO
Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.
Manoel de Barros
Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.
Manoel de Barros
quarta-feira, 24 de maio de 2006
terça-feira, 23 de maio de 2006
Second Nature — XVIII
Foto de Lilya Corneli
Tristesse aux flots de pierre.
Des lames poignardent des lames
Des vitres cassent des vitres
Des lampes éteignent des lampes
Tant de liens brisés.
La flèche et la blessure
L'oeil et la lumière
L'ascension et la tête
Invisible dans le silence.
Paul Eluard in La vie immédiate, 1932.
Foto de Lilya Corneli
Tristesse aux flots de pierre.
Des lames poignardent des lames
Des vitres cassent des vitres
Des lampes éteignent des lampes
Tant de liens brisés.
La flèche et la blessure
L'oeil et la lumière
L'ascension et la tête
Invisible dans le silence.
Paul Eluard in La vie immédiate, 1932.
Maria Roosen
O Stedelijk Museum Schiedam apresenta Maria’s Maria’s!, obras de Maria Roosen dos últimos 10 anos. As suas esculturas de grandes dimensões reflectem as temáticas da fertilidade e do crescimento. Roosen joga frequentemente com brutais alterações de escala. Para quem fôr ou estiver na Holanda, até 25 de Junho.
segunda-feira, 22 de maio de 2006
Gustav Metzger
O Lund Konsthall mostra, até 27 de Agosto, obras de Gustav Metzger. Nascido em 1926 em Nuremberg, Metzger só começou a tornar-se conhecido nos anos 50 com o manifesto da arte auto-destrutiva. De origem judaica, Metzger teve que fugir para Londres em 1939 para escapar ao Holocausto, que aliás vitimou os seus pais e irmã. Desde a década de 50 que Metzger se interessou por uma arte efémera e auto-destrutiva abrindo a relação entre a intervenção artística e o manifesto político. Por outro lado, Metzger tornou óbvia a relação entre arte e ciência através de um conjunto de obras e instalações em que põe em evidência determinadas reacções químicas e físicas. Durante os anos 90, Metzger começou a trabalhar sobre a memória e são sobejamente conhecidas as suas séries de Historical Photographs, abordando principalmente o Nazismo e o Holocausto. Uma série de exposições nos últimos anos têm revelado a importancia de Gustav Metzger no contexto da arte do pós-guerra.
sexta-feira, 19 de maio de 2006
Portugal, trespassa-se
Noticiário da SIC, às 7 e 28 da manhã: Portugal é o décimo sétimo país mais pobre da Europa. Eslovénia, Chipre e Grécia já nos passaram à frente.
Tenham um bom dia de resistência à depressão.
Noticiário da SIC, às 7 e 28 da manhã: Portugal é o décimo sétimo país mais pobre da Europa. Eslovénia, Chipre e Grécia já nos passaram à frente.
Tenham um bom dia de resistência à depressão.
quinta-feira, 18 de maio de 2006
Relembrando:
L. Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, 1921.
6.431
Com a morte o mundo não se altera, cessa.
6.4311
A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte.
Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita mas como intemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente.
A nossa vida é infinita, tal como o nosso campo visual é sem limites.
Com a morte o mundo não se altera, cessa.
6.4311
A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte.
Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita mas como intemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente.
A nossa vida é infinita, tal como o nosso campo visual é sem limites.
L. Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, 1921.
Sylvie Zijlmans
The Uninvited é o título desta exposição de Sylvie Zijlmans, fotografias que exploram os conceitos de agressão, medo, raiva. Situações primárias que continuam sempre presentes nas sociedades contemporâneas. Sylvie Zijlmans consegue que as imagens adquiram uma extrema intensidade quando se aproxima íntimamente do momento da incontrolabilidade. Até 9 de Julho no Museum Boijmans Van Beuningen, em Roterdam.
quarta-feira, 17 de maio de 2006
Tina b.
This Is Not Another Biennale, sintetizado em Tina b., decorre, em Praga, de amanhã até 27 de Junho com a participação de 70 artistas. Organizado de dois em dois anos, tem este ano a particularidade da temática girar à volta da História e da arquitectura do país. Tina b. irá também coincidir com a feira de arte de Praga que decorrerá de 23 a 28 de Maio.
terça-feira, 16 de maio de 2006
Correio da Cassini
Reunião de luas: Tethys, no canto superior direito, Janus, ao centro, Epimeteus, no canto inferior esquerdo, e Enceladus, lá bem longe. Intimidades...
segunda-feira, 15 de maio de 2006
Cindy Sherman
Inaugura amanhã em Paris, no Jeu de Paume, uma retrospectiva de Cindy Sherman. Desde os seus primeiros trabalhos, há mais de trinta anos, Cindy Sherman serve-se do seu próprio corpo como objecto de representação fotográfica. Série após série, ela é sempre a actriz de múltiplas personagens inventadas. Por vezes tocando a comédia, outras a mais gritante brutalidade, Cindy Sherman interroga de forma sistemática os estereotipos sociais e culturais e a identidade individual, em particular a feminina, na relação com os vários modos de representação contemporânea: da publicidade ao cinema ou à pintura. Esta é a zona de incerteza e conflitualidade em que a identidade individual é tomada pelo imaginário colectivo com o poder simbólico que se lhe reconhece provocando, tantas vezes, a repulsa, a alteração ou o desmembramento do corpo. Esta é a proposta nuclear de Cindy Sherman que, como Jeff Wall, realizou integralmente a sua obra utilizando o suporte fotográfico.
Esta retrospectiva apresenta obras de 1975 a 2005. A não perder, até 3 de Setembro.
Esta retrospectiva apresenta obras de 1975 a 2005. A não perder, até 3 de Setembro.
domingo, 14 de maio de 2006
A ver
No Palais de Tokyo - site de création contemporaine, Ultra Peau, Une expérience sensorielle à fleur de peau. Em Paris até 21 de Junho e, também, aqui.
No Palais de Tokyo - site de création contemporaine, Ultra Peau, Une expérience sensorielle à fleur de peau. Em Paris até 21 de Junho e, também, aqui.
sábado, 13 de maio de 2006
sexta-feira, 12 de maio de 2006
Frank Bowling
White Paintings é o título da exposição de Frank Bowling que inaugura amanhã na Artsway, em Hampshire, Inglaterra. Frank Bowling é um dos mais interessantes pintores ingleses do pós-guerra. Nascido em 1936, é colega de curso de David Hockney e Derek Boshier. Com cerca de quarenta anos de carreira, Bowling mostra agora obras recentes. Tendo recebido o prémio Guggenheim Fellowships e dois Pollock-Krasner Awards, Bowling é membro da Royal Academy desde 2005. Até 2 de Julho.
quinta-feira, 11 de maio de 2006
Separação
Foto de Lilya Cornelli
Foto de Lilya Cornelli
Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde...
Vinicius de Moraes
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "Para viver um grande amor", 1962.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde...
Vinicius de Moraes
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "Para viver um grande amor", 1962.
quarta-feira, 10 de maio de 2006
Edward Krasinski
Les mises en scène é o título desta primeira grande retrospectiva da obra de Edward Krasinski que foi um dos mais importantes artistas da vanguarda polaca do século XX. Nascido em 1925 e falecido em 2004, Krasinski tornou-se particularmente notado nos anos 60 e 70. Com opções artísticas próximas do surrealismo e do construtivismo, a obra de Edward Krasinski evolui para soluções puramente conceptuais. Esta primeira retrospectiva inaugura amanhã na Generali Foundation, em Viena.
sexta-feira, 5 de maio de 2006
Homesick
Homesick ou homesickness é o conceito à volta do qual gira esta exposição. Até que ponto o termo romântico corresponde a um sentimento concreto; no termo correspondente português, saudade, seria também interessante levantar as questões que esta exposição pretende pôr, embora num sentido muito mais vasto e profundo. Aqui pretende-se redefinir a ideia de "home" numa sociedade globalizada e verificar até que ponto a procura da identidade não se faz através desse sentimento. Com obras de Guy Ben-Ner (Israel), Chantal Michel (Suíça), Nevin Aladag (Turquia), Katrin Siguroardóttir (Islândia), Haraldur Jónsson (Islândia) e Ólafur Arni Ólafsson & Libia Pérez de Siles Castro (Islândia/Espanha), inaugura amanhã no Akureyri Art Museum, em Akureyri, na Islândia.
quinta-feira, 4 de maio de 2006
quarta-feira, 3 de maio de 2006
Leurs yeux toujours purs
Foto de Lilya Corneli
Jours de lenteur, jours de pluie,
Jours de mirroirs brisés et d'aiguilles perdues,
Jours de paupières closes à l'horizon des mers,
D'heures toutes semblables, jours de captivité,
Mon esprit qui brillait encore sur les feuilles
Et les fleurs, mon esprit est nu comme l'amour,
L'aurore qu'il oublie lui fait baisser la tête
Et contempler son corps obéissant et vain.
Pourtant, j'ai vu les plus beaux yeaux du monde,
Dieux d'argent qui tenaient des saphirs dans leurs mains,
De véritables dieux, des oiseaux dans la terre
Et dans l'eau, je les ai vus.
Leurs ailes sont les miennes, rien n'existe
Que leur vol qui secoue ma misère,
Leur vol d'étoile et de lumière
Leur vol de terre, leur vol de pierre
Sur les flots de leurs ailes,
Ma pensée soutenue par la vie et la mort.
Paul Eluard in Capitale de la douleur, 1926.
Foto de Lilya Corneli
Jours de lenteur, jours de pluie,
Jours de mirroirs brisés et d'aiguilles perdues,
Jours de paupières closes à l'horizon des mers,
D'heures toutes semblables, jours de captivité,
Mon esprit qui brillait encore sur les feuilles
Et les fleurs, mon esprit est nu comme l'amour,
L'aurore qu'il oublie lui fait baisser la tête
Et contempler son corps obéissant et vain.
Pourtant, j'ai vu les plus beaux yeaux du monde,
Dieux d'argent qui tenaient des saphirs dans leurs mains,
De véritables dieux, des oiseaux dans la terre
Et dans l'eau, je les ai vus.
Leurs ailes sont les miennes, rien n'existe
Que leur vol qui secoue ma misère,
Leur vol d'étoile et de lumière
Leur vol de terre, leur vol de pierre
Sur les flots de leurs ailes,
Ma pensée soutenue par la vie et la mort.
Paul Eluard in Capitale de la douleur, 1926.
terça-feira, 2 de maio de 2006
segunda-feira, 1 de maio de 2006
Aniversário
Faz hoje trinta e dois anos, subi a Alameda com um grupo de amigos, debaixo de um sol abrasador, para, no estádio, ouvir o Cunhal, as canções de intervenção, os recém-chegados de Paris. A juventude, o entusiasmo, a inconsciência e a ingenuidade eram, então, sinónimos. Na altura, a Vida, complacente, deixou. Não demorou muito, no entanto, a repôr a sua pedagogia espartana. Quando se pensa se vale a pena é porque, de facto, já não vale a pena.
A propósito, o texto de Eduardo Pitta e a resposta de João Oliveira Santos:
«As portas que Abril fechou»
«Se não fosse a Abrilada, a minha vida era outra. Pode ser que sim, Marta, pode ser que sim. Nunca saberemos o que podia ter sido. A Marta não é parva, mas há coisas que lhe fazem muita confusão. O 25 de Abril é uma delas. Estava para casar, ele fugiu para o Brasil na véspera do 28 de Setembro. Telefonou do Botafogo: Vem ter comigo, tens uma passagem em teu nome em Barajas. Ela não foi. O pai foi saneado e teve um acidente vascular. A mãe trocou o bridge pelo álcool. A criada, no dia em que foi despedida, atirou um frasco de benzina a um óleo do Medina (o retrato do avô). Com os anos, resignou-se. Assim que os pais morreram trocou a casa da Ribeiro Sanches por um apartamento na João Crisóstomo. Tem votado contra a Abrilada. Nunca serviu de nada. Este também não, aponta a televisão e bate cada vez com mais força a massa dos muffins. Aos 58 anos, olhos de um verde metálico, é uma mulher amarga. Caetano negociou com a cáfila, foi ele que travou a polícia. Não percebeu nada. Não quer perceber. Ploc. Ploc. A batida da massa sobrepõe-se à homilia do regime.»
Eduardo Pitta, no Da Literatura
Pois foi. O que Marta não percebeu ou não quer perceber é que se tudo o mais não fosse senão mero registo de operações comerciais, segundo a conhecida técnica contabilística de inserção de colunas de deve e a haver, se concluiria que Marta até terá percebido muito, senão mesmo tudo.
Nessa conta corrente da vida e começando na coluna do a haver, lancemos-lhe então a amargura do retrato desfigurado do avô, a reforma compulsiva do papá e uma mamã viúva, embora alegrota até ao bater da pataleca. Aceitemos que se lhe lance e inscreva como partida de crédito, essa fuga de seu noivo para o Rio. Encerremos-lhe por fim a conta do a haver com as muitas aparas do passado, que decerto a terão ajudado a preencher vazios, a bolear as arestas de todos dias daí em diante.
Abra-se-lhe agora a coluna do deve e inscreva-se por exemplo Liberdade.
Muito Marta se teria de empenhar se lhe exigíssemos agora o ajuste final. Ficariam todas as Martas insolventes se de repente lhes exigíssemos um ajuste final de contas. Também seria impossível, mas mesmo que o não fosse seria injusto. Ploc. Ploc. Ploc. Esse ajuste afinal, andamos todos nós a fazer já lá vão trinta e dois anos!
Concluo eu usando as palavras de Alexandre O'Neill:
"Que maneira a nossa
de usar as coisas!
Fica-nos sempre a maçaneta
na mão! ..."
Faz hoje trinta e dois anos, subi a Alameda com um grupo de amigos, debaixo de um sol abrasador, para, no estádio, ouvir o Cunhal, as canções de intervenção, os recém-chegados de Paris. A juventude, o entusiasmo, a inconsciência e a ingenuidade eram, então, sinónimos. Na altura, a Vida, complacente, deixou. Não demorou muito, no entanto, a repôr a sua pedagogia espartana. Quando se pensa se vale a pena é porque, de facto, já não vale a pena.
A propósito, o texto de Eduardo Pitta e a resposta de João Oliveira Santos:
«As portas que Abril fechou»
«Se não fosse a Abrilada, a minha vida era outra. Pode ser que sim, Marta, pode ser que sim. Nunca saberemos o que podia ter sido. A Marta não é parva, mas há coisas que lhe fazem muita confusão. O 25 de Abril é uma delas. Estava para casar, ele fugiu para o Brasil na véspera do 28 de Setembro. Telefonou do Botafogo: Vem ter comigo, tens uma passagem em teu nome em Barajas. Ela não foi. O pai foi saneado e teve um acidente vascular. A mãe trocou o bridge pelo álcool. A criada, no dia em que foi despedida, atirou um frasco de benzina a um óleo do Medina (o retrato do avô). Com os anos, resignou-se. Assim que os pais morreram trocou a casa da Ribeiro Sanches por um apartamento na João Crisóstomo. Tem votado contra a Abrilada. Nunca serviu de nada. Este também não, aponta a televisão e bate cada vez com mais força a massa dos muffins. Aos 58 anos, olhos de um verde metálico, é uma mulher amarga. Caetano negociou com a cáfila, foi ele que travou a polícia. Não percebeu nada. Não quer perceber. Ploc. Ploc. A batida da massa sobrepõe-se à homilia do regime.»
Eduardo Pitta, no Da Literatura
Pois foi. O que Marta não percebeu ou não quer perceber é que se tudo o mais não fosse senão mero registo de operações comerciais, segundo a conhecida técnica contabilística de inserção de colunas de deve e a haver, se concluiria que Marta até terá percebido muito, senão mesmo tudo.
Nessa conta corrente da vida e começando na coluna do a haver, lancemos-lhe então a amargura do retrato desfigurado do avô, a reforma compulsiva do papá e uma mamã viúva, embora alegrota até ao bater da pataleca. Aceitemos que se lhe lance e inscreva como partida de crédito, essa fuga de seu noivo para o Rio. Encerremos-lhe por fim a conta do a haver com as muitas aparas do passado, que decerto a terão ajudado a preencher vazios, a bolear as arestas de todos dias daí em diante.
Abra-se-lhe agora a coluna do deve e inscreva-se por exemplo Liberdade.
Muito Marta se teria de empenhar se lhe exigíssemos agora o ajuste final. Ficariam todas as Martas insolventes se de repente lhes exigíssemos um ajuste final de contas. Também seria impossível, mas mesmo que o não fosse seria injusto. Ploc. Ploc. Ploc. Esse ajuste afinal, andamos todos nós a fazer já lá vão trinta e dois anos!
Concluo eu usando as palavras de Alexandre O'Neill:
"Que maneira a nossa
de usar as coisas!
Fica-nos sempre a maçaneta
na mão! ..."
Painting Ruins
Painting Ruins é o título da exposição que inaugura amanhã em Kabul, no Afeganistão, com obras de Lida Abdul que representou o Afeganistão na última bienal de Veneza, bem como trabalhos em vídeo de Fikret Atay, Tobias Collier, Phil Collins, Juan Manuel Echavarría, Cao Fei, Alexander Heim, Adrian Lee, Elizabeth McAlpine, Deimantas Narkevicius, Anri Sala e Boris Sincek. A exposição organizada pela própria Lida Abdul e patrocinada pelo British Council Afghanistan inaugura amanhã na Afghan Foundation for Culture and Civil Society, em Kabul. Uma pequena luz ao fundo do túnel, neste país martirizado pela guerra.