terça-feira, 30 de janeiro de 2007
À memória de Rafael Monteiro
Há vinte e poucos anos atrás conheci Rafael Monteiro. Nos anos que se seguiram, cimentámos uma amizade que se regia por longos períodos de silêncio, sempre interrompidos pela alegria profunda do reencontro. De vez em quando, surgia um telefonema inesperado, regra geral alertando-me para um qualquer livro ou para uma ideia que continuava a conversa do jantar de há muitos meses atrás. Os meus telefonemas eram mais frequentes e regulares: preocupava-me a sua saúde, o efizema pulmonar que o atormentava e que muito dificultava a sua vida de mais de setenta anos.
Rafael Monteiro era um sábio. Morava numa casa de pedra dentro do castelo de Sesimbra e havia quem dissesse que não tinha bilhete de identidade. De uma enorme erudição, lia, com facilidade, várias línguas, inclusivé o árabe e o hebraico. A dificuldade não estava nos caracteres, estava nos olhos, cada vez mais debilitados.
De vez em quando, aconteciam coisas estranhas: lembro-me do António Telmo me contar num almoço que tivemos em Lisboa que uma noite, altas horas, apareceu no castelo de Sesimbra um qualquer professor universitário francês que teria viajado até ali à procura do sábio. Rafael encolarizava-se com facilidade. Incomodado a desoras, os seus cães todos a ladrar, correu com o francês dizendo-lhe que o Prestes João não morava ali e que ele era louco.
Durante anos, tínhamos uma espécie de ritual. Jantávamos sempre no dia 22 de Dezembro. Esses jantares eram, para mim, verdadeiras aulas. A conversa prolongava-se horas e, invariavelmente, terminava em casa dele, rodeado de livros, cães e gatos. O Agostinho da Silva tinha por ele uma forte amizade de muitos anos e falava sempre do Rafael com grande deferência.
Um dia, o Rafael Monteiro deixou-nos. E o que ficou, para mim, foi a saudade e uma infinidade de lições por terminar.
Um dos temas que o interessaram profundamente foi o dos painéis de Nuno Gonçalves. Em Janeiro de 1988 ofereceu-me um pequeno opúsculo que editou em 1973 e que tem, justamente, por título Ainda os painéis "de Nuno Gonçalves". Por ter sido muito pouco divulgado, na altura da sua edição e, depois, praticamente esquecido, pareceu-me importante, passados todos estes anos, a sua (re)publicação (em 3 partes), neste caso, digital, deste contributo para uma investigação que vem desde há mais de um século. Embora eu esteja longe de ser um conhecedor profundo da matéria, sempre me pareceu conter, este estudo, algumas ideias absolutamente novas e inesperadas, principalmente em relação às obras que li de José de Figueiredo e Afonso Botelho. Na esperança de que possa, eventualmente, vir a aproveitar a alguns estudiosos do assunto, é este pequeno mas extraordinário estudo que aqui fica divulgado. À memória de Rafael Monteiro.
Há vinte e poucos anos atrás conheci Rafael Monteiro. Nos anos que se seguiram, cimentámos uma amizade que se regia por longos períodos de silêncio, sempre interrompidos pela alegria profunda do reencontro. De vez em quando, surgia um telefonema inesperado, regra geral alertando-me para um qualquer livro ou para uma ideia que continuava a conversa do jantar de há muitos meses atrás. Os meus telefonemas eram mais frequentes e regulares: preocupava-me a sua saúde, o efizema pulmonar que o atormentava e que muito dificultava a sua vida de mais de setenta anos.
Rafael Monteiro era um sábio. Morava numa casa de pedra dentro do castelo de Sesimbra e havia quem dissesse que não tinha bilhete de identidade. De uma enorme erudição, lia, com facilidade, várias línguas, inclusivé o árabe e o hebraico. A dificuldade não estava nos caracteres, estava nos olhos, cada vez mais debilitados.
De vez em quando, aconteciam coisas estranhas: lembro-me do António Telmo me contar num almoço que tivemos em Lisboa que uma noite, altas horas, apareceu no castelo de Sesimbra um qualquer professor universitário francês que teria viajado até ali à procura do sábio. Rafael encolarizava-se com facilidade. Incomodado a desoras, os seus cães todos a ladrar, correu com o francês dizendo-lhe que o Prestes João não morava ali e que ele era louco.
Durante anos, tínhamos uma espécie de ritual. Jantávamos sempre no dia 22 de Dezembro. Esses jantares eram, para mim, verdadeiras aulas. A conversa prolongava-se horas e, invariavelmente, terminava em casa dele, rodeado de livros, cães e gatos. O Agostinho da Silva tinha por ele uma forte amizade de muitos anos e falava sempre do Rafael com grande deferência.
Um dia, o Rafael Monteiro deixou-nos. E o que ficou, para mim, foi a saudade e uma infinidade de lições por terminar.
Um dos temas que o interessaram profundamente foi o dos painéis de Nuno Gonçalves. Em Janeiro de 1988 ofereceu-me um pequeno opúsculo que editou em 1973 e que tem, justamente, por título Ainda os painéis "de Nuno Gonçalves". Por ter sido muito pouco divulgado, na altura da sua edição e, depois, praticamente esquecido, pareceu-me importante, passados todos estes anos, a sua (re)publicação (em 3 partes), neste caso, digital, deste contributo para uma investigação que vem desde há mais de um século. Embora eu esteja longe de ser um conhecedor profundo da matéria, sempre me pareceu conter, este estudo, algumas ideias absolutamente novas e inesperadas, principalmente em relação às obras que li de José de Figueiredo e Afonso Botelho. Na esperança de que possa, eventualmente, vir a aproveitar a alguns estudiosos do assunto, é este pequeno mas extraordinário estudo que aqui fica divulgado. À memória de Rafael Monteiro.
Painel do Arcebispo, Museu Nacional de Arte Antiga
Ainda os painéis
"de Nuno Gonçalves"
S. Tomaz de Cantuária?
(parte 1)
"de Nuno Gonçalves"
S. Tomaz de Cantuária?
(parte 1)
Pareceu-nos oportuna, no ano em que se celebra o 600º aniversário da convenção luso-britânica, a publicação desta "lembrança", da qual deu notícia "A Ilha", suplemento do "Jornal da Madeira".
O desenvolvimento das ideias expressas e a correlativa ampliação da investigação, poderão conduzir os estudiosos ao conhecimento da verdadeira razão que gerou a aliança de dois poderosos Reinos.
"Jtem beatissime pater.
Cum ad ecclesiam Sancti Thome martiris opidi de Tomar, Vlixbonensis diocesis, in (qua) plures venerabilis sanctorum relique honorifice recondite consentur et ad quam etiam propterea prefatus dux singularem deuocionis gerit affectum, copiosa Christi fidelium et, presertim in festiuitate Sancti Jacobi Maioris apostoli, confluat multitudo, ut christifidelium ipsorum augeatur deuocio jpsaque ecclesia in suis structuris et edificijs decencius conserueter ac diuinus cultus propagetur".
(Início da súplica feita pelo Infante D. Henrique ao Papa Eugénio IV, em 1 de Abril de 1434).
Constituem apreciada e valiosa colecção as dezenas de volumes publicados a respeito dos celebrados "painéis" pintados, ao enigmático Nuno Gonçalves atribuídos.
Aqui prestamos homenagem a todos os estudiosos que se ocuparam da controversa questão. De todos havendo lido as obras e recebido ensinamentos, escusamo-nos às habituais notas e citações; no decorrer da leitura, sem dificuldade se verificará o que de um ou de outro tomámos e utilizámos.
Tão conhecidas são dos eruditos e dos curiosos as teses e as hipóteses, os argumentos pró e contra, que esta notícia ou "lembrança" não será prejudicada omitindo-os. Recordaremos, no entanto, alguns dados do problema cuja solução, sempre buscada, apaixonou muitos homens das últimas gerações.
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Após séculos de esquecimento (ou ocultação) foi Columbano — no ano de 1882 — o primeiro a ver as tábuas; logo nelas identificou o Infante D. Henrique pela semelhança flagrante entre o retrato pintado e a iluminura do códice chamado "Crónica da Guiné", da Biblioteca de Paris (Tal identificação é hoje muito contestada, particularmente após os estudos de Conceição Silva, seguidos por Belard da Fonseca). Mas só em 1895, depois dos escritos de Joaquim de Vasconcelos, se tentou identificar o conjunto de retratos (em número de 60), opinando então aquele investigador ser de Santo Eduardo, Rei de Inglaterra, a figura principal (Citamos por transcrição, pois não nos foi possível obter ou ler os trabalhos deste estudioso).
José de Figueiredo, em 1910, no seu livro "O Pintor Nuno Gonçalves", procurou demonstrar ser de S. Vicente a figura central, e a Nuno Gonçalves atribuiu a autoria da obra — apoiando-se no trabalho de Francisco d'Ollanda ("Da Pintura Antiga", 1548), onde este afirma ser aquele o pintor do painel do altar de S. Vicente, na Sé de Lisboa. E para "acertar" as iniciais que firmam as tábuas, com a hipótese, têm aquelas sofrido as mais absurdas interpretações, mantendo-se até hoje indecifráveis.
Estava iniciada a controvérsia, ainda não terminada.
Durante ela, a bela e dupla figura foi identificada com: o Infante D. Fernando; Santa Catarina; Santiago Menor; S. João Evangelista; Rainha Santa Isabel; Cardeal D. Jaime, etc. (Em 1908 já Sampaio Bruno havia identificado o Cardeal D. Jaime no célebre quadro "Fons Vitae", da Santa Casa da Misericórdia do Porto, (Vd. "Portuenses Ilustres", T.III, pág.353 e seg.) identificação esquecida ou ignorada).
Para todas as hipóteses se arquitectaram provas e coligiram documentos, nem sempre convincentes.
Referiremos, finalmente, as magistrais interpretações de Almada Negreiros, Afonso Botelho e Conceição Silva, as deste último publicadas no "Correio Braziliense", de Brasília.
Atentemos na obra genial. Ao leitor interessado e ao erudito sem prejuízos, pedimos o favor de prestar atenção a algumas particularidades — tantas vezes apontadas! — do políptico. São elas:
a) a figura central é dupla e nimbada;
b) na "saia" da alva envergada pelo santo veêm-se, certamente cosidos, bocados do tecido da dalmática: — "regaços" ou "quadratos"; bocados do mesmo tecido estão cosidos nos punhos e na gola;
c) os versículos 28 e 31(cap. XIV) pintados no livro que o santo mostra, estão incompletos: faltam o início do vers. 28 e o final do vers. 31.
O estudo destas particularidades, conjugado com outros conhecimentos, levou-nos à identificação da dupla figura central com S. Tomaz — ou Tomé — Arcebispo de Cantuária.
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S. Tomaz, ou Tomé, nasceu em Londres no dia 21 de Dezembro de 1117, dia dedicado a S. Tomé Apóstolo; daí o nome que no baptismo recebeu.
Foram seus pais Gilberto Becket e uma "sarracena" (filha de emir) convertida ao cristianismo por amor e com o nome de Matilde baptizada.
Tomaz era homem dotado, e Thibaldo, Arcebispo de Cantuária, fê-lo diácono; assim se inicia a sua vida eclesiástica. Quando Rogério, Arcediago, é investido na dignidade de Arcebispo de York, Thibaldo dá a Tomaz o lugar de Rogério.
Era conhecida e notória a amizade que ligava o Rei a Tomaz Becket; e instaram junto de Henrique II para que o fizesse Chanceler, opondo a inteligência de Tomaz à ignorância de alguns conselheiros. Em 1155 Tomaz era Chanceler da Inglaterra.
No ano de 1162 ocorreu a morte de Thibaldo; por vontade do Rei mas com a oposição dos Bispos, Tomaz foi eleito Arcebispo de Cantuária.
Amedronta-o o cargo, e recusa; aceita-o depois, por obediência.
Ordenado então sacerdote, no dia seguinte ao da ordenação é sagrado pelo Bispo de Winchester — assistido por 14 prelados, na presença da Nobreza.
O homem do mundo é agora homem de Deus.
Tomaz abandona todas as riquezas, repartindo com os míseros o próprio vestuário.
Como Arcebispo, participa, no ano de 1163, no Concílio de Tours, e para cumprir as decisões conciliares entra em conflito com o Rei. A discórdia separa-os.
Desgostoso e cansado, sai de Inglaterra (em 1165?), indo para França, onde se recolhe na Abadia de Pontigny, da Ordem de Cister. Mais tarde, graças à intervenção do Rei de França, reconcilia-se com Henrique II, sem desvio, porém, da sua crença, firme na defesa dos seus direitos. E regressa no ano de 1170, após tormentosa viagem.
Ao saber que Tomaz voltara, quatro oficiais do Rei: Reinaldo de Ours, Hugo de Morville, Guilherme de Tracy e Ricardo de Breton, juram matá-lo, na presunção de prestar ao Rei um bom serviço.
Tomaz celebra na sua igreja as festas de Natal. Presciente do trágico destino, pela última vez fala ao seu clero e ao seu povo, na pregação lhes anunciando a sua morte próxima.
Em 29 de Dezembro chegam a Cantuária os assassinos; procuram o Arcebispo no Templo, e aí o matam — junto ao altar, com lançadas na cabeça, no momento da celebração da missa.
Toda a cristandade chorou a morte do mártir; três anos depois, na Primavera de 1173, o Papa Alexandre III inscreve-o no catálogo dos santos, pela bula Redolet Anglia.
S. Luiz, Rei de França, obteve do Rei de Inglaterra (diz-se) parte da cabeça do mártir, depositando-a na Abadia de Royaumont como preciosa relíquia.
O culto por S. Tomaz espalhou-se com prodigiosa rapidez e as peregrinações a Canterbury foram das mais concorridas e das mais célebres.
Das relíquias, merecia especial veneração a corona ou caput sancti Thome — "parte do crâneo do mártir, aquela que havia recebido a unção, quebrada pelas lanças dos assassinos", segundo afirma Raymonde Foreville, a grande historiadora dos Jubileus de S. Tomaz.
Se a cristandade amou o novo santo, uma família lhe devotou particular culto: os poderosos Lencastres.
Quando em 1322, por ordem de Eduardo II, Thomaz de Lencastre foi decapitado, a sua morte foi comparada com a do Arcebispo ("Gaude Thoma, ducum decus, lucerna Lancastriae qui per necem imitaris Thomam Canturiae".) — tornado patrono da Inglaterra e protector por excelência da Casa de Lencastre.
O culto persiste e exalta-se, até à Reforma. Após esta, os protestantes assaltam o túmulo de S. Tomaz, destruindo os seus ossos.
E o mundo começou a esquecer...
Eis o breve esboço da vida e da morte de S. Tomaz de Canterbury, cujas devoção e fama perduraram até aos nossos dias (Lembramos a bela obra de Jean Anouilh: "Becket ou a honra de Deus", levada à cena em Paris no ano de 1959, e o filme — da peça extraído — mais tarde exibido em Lisboa).