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domingo, 8 de abril de 2007

 
A ignorância


Foto de Katarzina Widmanska


Durante os vinte anos da sua ausência, os habitantes de Ítaca conservaram muitas recordações de Ulisses mas não sentiam por ele qualquer nostalgia. Enquanto Ulisses sofria de nostalgia e não se recordava de quase nada.
(...) Quanto mais forte é a sua nostalgia, mais se esvazia de recordações. Quanto mais Ulisses enlanguescia, mais esquecia. Porque a nostalgia não intensifica a actividade da memória, não desperta recordações, basta-se a si própria, à sua emoção, absorta por completo como está no seu próprio sofrimento.

Depois de ter matado os temerários que queriam desposar Penélope e reinar sobre Ítaca, Ulisses foi obrigado a viver com pessoas das quais nada sabia. Os outros, para o lisonjearem, repisavam-lhe tudo aquilo que recordavam dele antes da sua partida para a guerra. E, convencidos de que nada a não ser a sua Ítaca lhe interessava (como teriam podido não o pensar se ele percorrera a imensidão dos mares para regressar ali?), seringavam-lhe o que se passara durante a sua ausência, ávidos de responderem a todas as suas perguntas. Nada o aborrecia mais que isso. Só esperava uma coisa, que lhe dissessem enfim: conta! E foi a única palavra que nunca lhe disseram.

Durante vinte anos só pensara no seu regresso. Mas uma vez de volta compreendeu, espantado, que a sua vida, a própria essência da sua vida, o seu centro, o seu tesouro se encontrava fora de Ítaca, nos vinte anos da sua errância. E esse tesouro, perdera-o e só teria podido reencontrá-lo contando.




Milan Kundera
in A ignorância, 2000.




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