sexta-feira, 4 de maio de 2007
A Divina Comédia
Mocho de bronze (objectos pessoais de Borges)
dolce color d'oriental zaffiro
che s'accoglieva nel sereno aspetto
del mezzo puro infino al primo giro.
Gostaria de me deter no curioso mecanismo deste verso, salvo que a palavra "mecanismo" é demasiado dura para o que quero dizer. Dante descreve o céu oriental, descreve a aurora e compara a cor da aurora com a da safira. E compara-a com uma safira que se chama "safira oriental", safira do oriente. Em "dolce color d'oriental zaffiro" há um jogo de espelhos, visto que o Oriente se explica pela cor da safira e esta safira é uma "safira oriental". Quer dizer, uma safira que está carregada da riqueza da palavra "oriental"; está cheia, digamos, d'As Mil e Uma Noites que Dante não conheceu, mas que, no entanto, aqui estão presentes.
Vou recordar também o famoso verso no final do canto V d'O Inferno: "e caddi come corpo morto cade". Por que motivo é retumbante a queda? A queda é retumbante pela repetição da palavra "cai".
Toda a Comédia está cheia de felicidades deste tipo. Mas o que a sustem é o facto de ser narrativa. Quando eu era novo desprezava-se o género narrativo, chamava-se-lhe anedota e esquecia-se que a poesia começou por ser narrativa, que nas raízes da poesia está a épica e a épica é o género poético primordial, narrativo. Na épica está o tempo, na épica existe um antes, um enquanto e um depois; tudo isto está na poesia.
J. L. Borges in Sete Noites, 1980
dolce color d'oriental zaffiro
che s'accoglieva nel sereno aspetto
del mezzo puro infino al primo giro.
Gostaria de me deter no curioso mecanismo deste verso, salvo que a palavra "mecanismo" é demasiado dura para o que quero dizer. Dante descreve o céu oriental, descreve a aurora e compara a cor da aurora com a da safira. E compara-a com uma safira que se chama "safira oriental", safira do oriente. Em "dolce color d'oriental zaffiro" há um jogo de espelhos, visto que o Oriente se explica pela cor da safira e esta safira é uma "safira oriental". Quer dizer, uma safira que está carregada da riqueza da palavra "oriental"; está cheia, digamos, d'As Mil e Uma Noites que Dante não conheceu, mas que, no entanto, aqui estão presentes.
Vou recordar também o famoso verso no final do canto V d'O Inferno: "e caddi come corpo morto cade". Por que motivo é retumbante a queda? A queda é retumbante pela repetição da palavra "cai".
Toda a Comédia está cheia de felicidades deste tipo. Mas o que a sustem é o facto de ser narrativa. Quando eu era novo desprezava-se o género narrativo, chamava-se-lhe anedota e esquecia-se que a poesia começou por ser narrativa, que nas raízes da poesia está a épica e a épica é o género poético primordial, narrativo. Na épica está o tempo, na épica existe um antes, um enquanto e um depois; tudo isto está na poesia.
J. L. Borges in Sete Noites, 1980