segunda-feira, 28 de junho de 2010
Jorge Guimarães (1933-2010)
Debruçado na terra espreito a noite
que se despenha em luzes e silêncio,
eu sou um bicho pequeno e momentâneo
que faz da consciência a sua anomalia,
por um segundo expludo em parca labareda
vaga-lume consumido por si próprio
e durante esse segundo pela noite acesa
habito-a com a ânsia do meu vómito.
O silêncio percorre a escuridão
tão breve como a luz
o que me doi não é o seu encontro
é ser atravessado por Deus,
nesta ara de pedra onde me ponho
assistindo ao meu próprio passamento
bêbedo do meu pesado sono
acordo ao som dos meus passos.
Ah eu queria que este papel negro
e esburacado, eu queria que esta luz,
que este negro de pálpebras fechado,
que o som contínuo do silêncio,
que este toque de folhas nos cabelos,
que este esbarrar nas coisas com os olhos,
que este grito dentro de mim mesmo
se me rasgassem nas mãos como uma carta.
Nesta ponte onde paro sobre o rio
desconhecido da noite
entre as duas margens, devagar, oscilo,
sem me lembrar de uma nem de outra,
nas mãos seguro a esperança que se parte,
foge-me o chão, o céu dança comigo,
a cor deste silêncio esconde a morte
como se a morte fosse a minha vida.
A noite tem mais mortos que as estrelas
que vejo, os olhos desfilam-me em museu,
as bibliotecas ardem, as gerações
enchem o campo-santo do mundo,
e nesta fila sei que agora sou eu,
e somos todos tão iguais, todos tão medonhos,
a habitar os sonhos uns dos outros
no pesadelo de nos metermos medo.
A voz das coisas habita-me de nada,
a minha nau chamou-se esquecimento,
quantas mãos seguraram este crâneo vivo,
escuto-me na noite a noite sem manhã,
a voz das coisas faz o silêncio do mundo,
o vento atravessa as pedras com o frio,
a sucessão dos dias é isenta de mim mesmo,
mas ataca-me de frio como o vento às pedras.
3.00,22/7/87, Funchal
Até sempre, meu caro Jorge.