Fui reler o programa eleitoral do PS à luz do “memorando de entendimento” de Portugal com a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu. É um exercício penoso pois o PS (e veremos domingo o que propõe o PSD) mantém-se fiel ao velho princípio de que os eleitores só votam em quem lhes apresenta a realidade em tons cor-de-rosa. Nada que surpreenda: é assim em Portugal desde que temos democracia. Pior: parece ser assim em muito lado pois, como esta semana confessou Jean-Claude Juncker, presidente do Eurogrupo, “quando as coisas começam a ficar sérias, temos de mentir”. Ora o memorando de entendimento não mente nem está embrulhado em palavras delicodoces, antes estipula, exige, estabelece metas, fixa prazos. O memorando é mesmo o programa das reformas que há muito se sabe serem necessárias mas das quais se tem fugido como o diabo da cruz.
Há um ano, quando se tornou claro que os mercados não perdoariam aos países que tivessem perdido o controlo dos seus défices e das suas dívidas, Portugal poderia ter optado por seguir o caminho agora delineado no memorando. Primeiro, porque o essencial das suas medidas reformistas há muito que eram defendidas pelos especialistas. Depois, porque, dividindo a austeridade por quatro anos, em vez de a dividir por três, como agora sucederá, tudo seria mais fácil e menos penoso, como ontem a troika reconheceu. Preferiu-se antes a ilusão (versão benigna), optou-se depois pela improvisação e guindou-se por fim o ilusionismo do “great performer” em suprema qualidade política. São águas passadas – mas não esquecidas – de um desgraçado capítulo político a que se espera que os portugueses saibam pôr fim a 5 de Junho. As águas futuras correrão, para nossa vergonha mas também alívio, por entre as estreitas balizas do memorando. Felizmente.
Felizmente?, perguntar-se-á. Sim. E felizmente por este nos impor a revolução que a cobardia política dos nossos líderes e o endémico arrastar dos pés da nação impedia. Vêm de fora dar-nos ordem porque não entrámos sozinhos na ordem.
O que temos pela frente não é, ao contrário do que disse ontem Teixeira dos Santos, um “PEC IV desenvolvido”. É muito mais do que isso porque, ao contrário do PEC IV, não se limita a cortar a eito e de forma cega, antes trata de encontrar remédios para a nossa principal doença, isto é, para o que realmente nos distingue da Grécia e da Irlanda, como ainda recordou Nouriel Roubini: a nossa incapacidade de crescer. O PEC IV era, na melhor das hipóteses, uma aspirina para adiar a dor. O memorando é um antibiótico que ataca a infecção.
Fá-lo de muitas e diferentes formas. Primeiro que tudo emagrecendo o Estado e, sobretudo, tornando-o menos presente e menos tentacular. O programa de privatizações é ambicioso e a ele não escapa sequer o Grupo Caixa Geral de Depósitos, que terá de alienar a área de seguros. A EDP, a Galp, a PT, a TAP, a ANA, os CTT e uma parte da CP não deixarão apenas de ser do Estado, em parte ou no todo: o Estado também perderá todas as “golden share” e, ao mesmo tempo, as coutadas ocupadas por políticos de pousio. Diminuem também, de forma drástica, a infinidade de subsídios utilizados pelos governos para tentar “dirigir” a economia, são suspensas as PPP e ainda se obriga o Estado (Administração Central e autarquias) a ficar longe das obras públicas “de regime”. Não é apenas uma dieta, é uma mudança de paradigma, é a despedida do modelo dirigista e intervencionista que, nas últimas décadas, permitiu a multiplicação das empresas públicas e das “fundações”, a proliferação dos lugares para políticos, a despesa descontrolada e a ausência de responsabilização.
Só fazendo diminuir o “Estado gordo”, para utilizar a expressão de Eduardo Catroga, é possível libertar para a economia os recursos de que esta necessita. Mas mesmo isso não seria suficiente, só por si, para retomar o crescimento. Também é necessário diminuir a rigidez do mercado laboral e cortar nos muitos regimes especiais. É nesse sentido que vão as alterações previstas na lei laboral (mesmo sem revisão constitucional, o despedimento individual tornar-se-á mais simples), as mudanças no regime do subsídio de desemprego, a introdução do famoso banco de horas, a prioridade aos contratos de empresa e o fim dos benefícios excessivos por horas extraordinárias. Sem mudanças como estas nunca a economia recuperaria a competitividade perdida; com estas mudanças os portugueses empreendedores voltam a ter uma oportunidade. Mais: a diminuição da taxa social única é uma medida, a melhor medida, para, diminuindo a carga contributiva sobre o emprego, facilitar a contratação e ajudar a conter o desemprego.
A atenção dada pela troika a áreas como a Justiça ou a Educação também se distingue por não incidir apenas no corte na despesa: houve a preocupação de incluir medidas estruturais, como as relativas aos processos tributários ou à concessão de autonomia à gestão escolar já em 2012, acompanhada por um financiamento realizado com base no desempenho. Da mesma forma se saúdam as medidas destinadas a penalizar a aquisição de casa própria e todas as destinadas a abrir o mercado do arrendamento. Vamos ver se é desta que, ao fim de décadas de discussão e de danos irreparáveis para as nossas cidades e a nossa economia, se liberalizam de vez as rendas.
Quer isto dizer que tudo são rosas no memorando da troika? Claro que não. Portugal tem mesmo de passar por uma cura de austeridade. A experiência obtida pelo FMI e pela UE na Grécia, e a especificidade da situação portuguesa, permitiram adoptar um plano em que essa austeridade não penalizará em excesso os contribuintes. Basta referir que o aumento previsto da carga fiscal (2,3 mil milhões de euros) é análogo ao do PEC IV para resultados muito mais vastos e ambiciosos.
Contudo, a calibração das medidas de forma a não castigarem demasiado as famílias só foi possível porque foi dado a Portugal mais um ano para cortar o défice público até três por cento do PIB. Curiosamente esta medida tinha sido uma proposta de Pedro Passos Coelho aqui há uns meses, uma ideia de imediato “arrasada” como sendo irresponsável, imatura e aventureirista. Nenhum desses epítetos foi agora aplicado à troika, mas não deixa de ser significativo como se inventaram medidas duras que esta nunca sequer chegou a considerar (espero que um dia se faça a história da campanha de intoxicação dos jornais a que se assistiu nas últimos semanas e a que anteontem se referia o editorial do Jornal de Negócios).
Seja lá como for, Portugal tem uma nova oportunidade. É possível que os 78 mil milhões de euros de ajuda sejam insuficientes, como já referiram alguns economistas, caso de Silva Lopes e Jacinto Nunes. É natural que muito tenhamos ainda de discutir e de afinar para levar à prática este plano. Mas, como disse recentemente o mais sensato dos membros do Governo, Luís Amado, Portugal tem de compreender que, ao aderir ao euro, aderiu a uma zona monetária com regras muito exigentes. Nela não há espaço para cigarras, todos têm de ser formigas. Por isso, ou aproveitamos esta oportunidade, ou regressaremos ao espectro da bancarrota. Roubini dixit.