sábado, 16 de julho de 2011
A posse da beleza
Entre todos os lugares onde vamos, mas que não sabemos ver ou que nos deixam indiferentes, sobressaem por vezes alguns, cujo impacto irreprimível nos conquista, impondo-os à nossa atenção. Possuem essa qualidade a que costumamos dar o nome aproximativo de beleza. Esta pode nada ter de agradavelmente bonito, nem exibir o mais pequeno traço que os guias turísticos consideram belos panoramas. Talvez o nosso recurso àquela palavra seja apenas outra maneira de dizer que gostámos de certo lugar.
Houve muita beleza nas minhas viagens. Em Madrid, a poucos edifícios de distância do meu hotel, havia um terreno vago cercado de prédios de apartamentos e uma grande estação de serviço cor de laranja, onde se lavavam automóveis. Uma noite, cortando a escuridão um comboio muito comprido, elegante e quase vazio, passou uns quantos metros acima do telhado da estação de serviço, abrindo caminho a meia altura dos prédios de apartamentos. Com o seu viaduto perdido na noite, dir-se-ia que a composição flutuava acima do solo, proeza tecnológica que se afigurava menos inverosímil dadas as linhas futuristas do comboio e a pálida luz verde e fantasmagórica que se entornava pelas suas janelas. Portas adentro dos seus apartamentos, as pessoas estavam a ver televisão ou a tratar de alguma coisa na cozinha; entretanto, os poucos passageiros do comboio admiravam a cidade ou liam o jornal, no começo de uma viagem a Sevilha ou a Córdova que só alcançaria o seu destino muito depois das lavagens da louça terem chegado ao fim ou de os televisores se calarem. Os passageiros do comboio e os moradores dos apartamentos daqueles prédios pouca atenção prestavam uns aos outros; as suas vidas corriam sobre linhas que nunca se encontrariam, excepto por um breve momento na retina de um observador que fora dar uma volta, tentando escapar à tristeza do seu hotel.
Alain de Botton in A arte de viajar, 2004.