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terça-feira, 25 de maio de 2004

 

Enzo Cucchi, desenho, 1979.

Le dessin n'existe pas: le dessin vit un double moment, le moment de l'idée et le moment de son articulation; une invention artistique émerge «latéralement» et ne marque pas les champs d'action de cette connaissance de la chose, que cette même chose avait précédemment été appelée à contenir.
Enzo Cucchi, 1986.

segunda-feira, 24 de maio de 2004

 
Às vezes, a vida é amável.
Desde há muitos anos que me impressiona a figura e a pintura de Belinni. Guardo de Belinni uma das imagens pictoricamente mais elucidativas que vi - há mais de 20 anos, nos Uffizi - «Alegoria Sagrada». Lembro a imensa quantidade de interpretações à volta desta obra de Bellini, umas mais interessantes que outras, sempre doutamente defendidas pelos professores da Academia de Florença, mas sempre especulativas em relação à imagem pintada.
Bellini teve uma vida "fácil". Filho de Jacopo Bellini, também pintor (discípulo de Gentile da Fabriano), irmão de Gentile, também pintor e de Niccolosa que viria a casar com Andrea de Mantegna, Giovanni percorreu um caminho sereno e próspero e viveu o suficiente para ver a sua escola ser reconhecida e aclamada.
Esta imagem pintada por Bellini em 1490, tem-me acompanhado ao longo dos últimos vinte e tal anos. Faz, seguramente, parte dos meus afectos. Curiosamente, continua ainda hoje obscuro o motivo pintado. As figuras presentes nunca foram claramente identificadas e, embora a maioria dos estudiosos se incline para uma alegoria do Paraíso ou um diálogo sagrado sobre o Paraíso, inclino-me mais para a tese, pouco aprofundada, de que se trata de uma pequena ilustração de um poema francês do século XIV entitulado «Le pélérinage de l'âme».


Giovanni Bellini, Alegoria Sagrada, 1490.

domingo, 23 de maio de 2004

 
Pain, Sex and Time (Cassel)

Em princípios de 1896, Bernard Shaw percebeu que em Fredrich Nitzsche havia um académico inepto, coibido pelo culto supersticioso do Renascimento e dos clássicos. O inegável é que Nietzsche, para comunicar ao século de Darwin a sua conjectura evolucionista do Super-Homem, o fez num livro carcomido, que é uma desairosa paródia de todos os Sacred Books of the East. Não arriscou uma só palavra sobre a anatomia ou a psicologia da futura espécie biológica; limitou-se à sua moralidade, que identificou (temeroso do presente e do porvir) com a de César Bórgia e dos Vikings.

(Já uma vez (História da Eternidade) tentei enumerar ou compilar todos os testemunhos da Teoria do Eterno Retorno que foram anteriores a Nietzsche. Este vão propósito excede a brevidade da minha erudição e da vida humana. Aos testemunhos já registados basta-me acrescentar, por agora, o do padre Feijoo (Teatro crítico universal, tomo quarto, discurso doze). Este, como Sir Thomas Browne, atribui a doutrina a Platão. Formula-se assim: «Um dos delírios de Platão foi que, cumprido todo o ciclo do ano magno - assim se chamava ao espaço de tempo em que todos os astros, após inúmeras voltas, se têm de restituír à mesma posição e ordem que antes haviam tido entre si -, se têm de renovar todas as coisas; isto é, têm de voltar a aparecer no teatro do mundo os mesmos actores a representar os mesmos sucessos, recebendo nova existência os homens, bichos, plantas e pedras; enfim, tudo o que houve animado e inanimado nos anteriores séculos, para se repetirem neles os mesmos exercícios, os mesmos acontecimentos, os mesmos jogos da sorte que tiveram na sua primeira existência.» São palavras de 1730.; repete-as o tomo LVI da Biblioteca de Autores Espanhóis. Declaram bem a justificação astrológica do Retorno. No Timeu, Platão afirma que os sete planetas, equilibradas as suas diferentes velocidades, regressarão ao ponto inicial de partida, mas não infere deste vasto circuito uma repetição pontual da história. No entanto, Lucilio Vanini declara: «De novo Aquiles irá a Tróia; renascerão as cerimónias e religiões; a história humana repete-se; nada há agora que não tenha havido; o que foi, será; mas tudo isso em geral, e não (como determina Platão) em particular.» Escreveu-o em 1616; cita-o Burton na quarta secção da terceira parte do livro The Anatomy of Melancholy. Francis Bacon (Essay, LVIII, 1625) admite que, cumprido o ano platónico, os astros causarão os mesmos efeitos genéricos, mas nega a sua virtude para repetir os mesmos indivíduos.)

Heard corrige, à sua maneira, as negligências e omissões de Zaratustra. Linearmente, o estilo de que dispõe é muito inferior; para uma leitura seguida, é mais tolerável. Descrê de uma super-humanidade, mas anuncia uma vasta evolução das faculdades humanas. Esta evolução mental não requer séculos: há nos homens um infatigável depósito de energia nervosa, que lhes permite serem incessantemente sexuais, ao contrário das outras espécies, cuja sexualidade é periódica. «A história», escreve Heard, «é parte da história natural. A história humana é biologia acelerada psicologicamente». A possibilidade de uma evolução ulterior da nossa consciência do tempo é talvez o tema básico deste livro. Heard é de opinião que aos animais falta completamente esta consciência e que a sua vida descontínua e orgânica é uma pura actualidade. Esta conjectura é antiga; já Séneca a havia raciocinado na última das epístolas a Lucílio: «Animalibus tantum, quod brevissimum est in transcursu, dactum, proesens...» Também abunda na literatura teosófica. Rudolf Steiner compara a estada inerte dos minerais à dos cadáveres; a vida silenciosa das plantas à dos homens que dormem; as atenções momentâneas do animal às do negligente sonhador que sonha incoerências.

J. L. Borges, in Discussão, 1932.

sexta-feira, 21 de maio de 2004

 
Malczewski

No final do século XIX, início do século XX, predomina, nos meios intelectuais europeus, o espírito científico. Desde meados do século XIX, a movimentação científica era intensa: em 1847, o físico alemão Helmholtz apresenta provas do princípio de conservação de energia e propõe o conceito de potencial de energia. Três anos depois, Rudolf Clausius, formula a segunda lei da termodinâmica que especifica que a entropia aumenta sempre à custa da energia disponível. Um ano depois, Foucault, com o seu pendulo, demonstra a rotação diurna da Terra. Em 1859, Charles Darwin publica A Origem das Espécies em que avança com a teoria evolucionista baseada na selecção natural. Esta publicação ía ter consequências muito para além da área das ciências biológicas. Dois anos depois, o físico inglês James Maxwell descobre que as ondas electromagnéticas deslocando-se através de um dado meio, têm a sua velocidade determinada pelas propriedades eléctricas e magnéticas desse meio. Em 1864, William Huggins, determina a natureza gasosa de algumas nebulosas através de análise espectral, lançando os fundamentos da Astrofísica. Um ano depois o biologista austríaco Gregor Mendel anuncia as leis da hereditariedade a partir de experiências com plantas híbridas. Embora o seu trabalho tenha sido ignorado até 1900, lança as bases da Genética. Em 1869, Mendeleyev anuncia a tabela periódica dos elementos, uma das leis básicas da química moderna. Em 1887, os físicos americanos Albert Michelson e Edward Morley provam a inexistência de um éter luminoso e estabelecem que a velocidade da luz é uma constante. Em 1895, o físico alemão Wilhelm Röntgen descobre os raios X. A sua descoberta vai revolucionar a física, o diagnóstico médico e a engenharia. Um ano depois, baseando-se no trabalho de Röntgen, Henri Becquerel descobre a radioactividade. Em 1899, Freud publica A Interpretação dos Sonhos, convocando a atenção para o novo campo da psicanálise. Um ano depois, Max Planck formula os princípios da teoria quântica, revolucionando toda a física moderna.
Nesta viragem de século que, do ponto de vista das grandes novas ideias, não se dá cronológicamente em 1900 mas antes se arrasta desde as publicações de Darwin até à quântica de Planck (passando, necessáriamente, por Freud), assiste-se na Europa a um conjunto de modificações artísticas – nas áreas da literatura, da música, da pintura e da arquitectura – cuja marca distinta passa pela revolta da jovem geração contra o passado (da última metade do século XIX), nomeadamente contra o racionalismo e as suas aquisições científicas e, mais específicamente em relação ao sector das ciências naturais. A jovem geração vai rejeitar o monopólio da razão. E, por toda a Europa, assiste-se ao aparecimento de correntes de vanguarda, no período entre 1890 e a Primeira Grande Guerra, que vão tomando, nos respectivos países os nomes de «Jovem Alemanha», «Jovem Bélgica», «Jovem Escandinávia» ou «Jovem Polónia». Não se trata, no entanto, de correntes amorfas, produtoras de uma arte uniforme.


Jacek Malczewski, "A Inspiração do Pintor", 1897.

Na Polónia, o movimento nascido por volta de 1880 sob o nome de «Jovem Polónia», traz consigo os subtítulos de «modernismo», «simbolismo» ou «neoromantismo» em todos os manifestos literários e artísticos. Nestes, é definida a atitude ideológica dos artistas que, na viragem do século, se revoltam contra o realismo e o dogma da objectividade científica. E, embora em grande parte da segunda metade do século XIX tenha predominado um realismo naturalista, a proposta dos artistas polacos na viragem do século, prende-se com outros valores, nomeadamente a intuição, por forma a redescobrir o homem e a natureza, numa espécie de «panpsiquismo», de unidade entre o material e o espiritual, na reinvenção de um mundo ideal a que novos conceitos psicológicos e psicofisiológicos não são estranhos.
Durante o século XIX, a arte na Polónia foi, quase sempre, o reflexo da situação política. O país esteve sob a ocupação de três potências: a Rússia, a Prússia e a Áustria. Qualquer uma delas usou e abusou de mão férrea. Quer a zona de ocupação russa, denominada Reino da Polónia, quer a zona de ocupação prussiana, viram as suas liberdades, sociais, políticas, económicas e culturais extremamente diminuídas e controladas. As instituições não funcionavam e, específicamente na zona de ocupação prussiana foi aplicada uma severa política de germanização na imposição da língua, nomeadamente a nível administrativo. Aos artistas restava assumir o papel de enclave da liberdade, lembrando os valores da identidade de um país cativo de três países diferentes. A pintura tomou especial relevo na medida em que era possível subordinar a forma a uma ideologia. Entre os muitos pintores a trabalhar no exílio, destaca-se Jan Matejko que, em 1865 recebe, em Paris, a medalha de ouro no mesmo Salão em que Manet expõe Olympia.
Mas, a ausência de condições políticas normais, não foi suficiente para cortar o contacto entre a arte polaca e as novas correntes estéticas europeias. Mesmos os artistas não exilados participam em exposições internacionais. Por razões políticas aparecem-nos sempre integrando secções austríacas, alemãs, russas e mesmo francesas. A primeira manifestação de artistas polacos, assumindo um grupo nacional, dá-se em Berlim em 1891.
O contacto com ideias novas vai gerar no grupo da «Jovem Polónia» duas atitudes: por um lado, a mudança e o enriquecimento em relação aos conceitos clássicos dominantes, por outro, a polarização de novas ideias estéticas cuja interpenetração e aprofundamento, numa permanente revisão de valores, só terminará no final da Primeira Grande Guerra, coincidindo com a recuperação da independência em 1918. Tal como as correntes filosóficas da época, divididas entre o realismo e o idealismo, a arte polaca irá evoluir entre estes dois extremos, pendendo para a valorização da ideologia em detrimento da estética. O sujeito e a narrativa, na representação do mundo, aquilo que tradicionalmente se considerava o conteúdo, dominam a procura de novas soluções formais. Esta subordinação da forma pura à ideia vai ser progressivamente posta em causa pelo movimento «Jovem Polónia». Podemos, assim, encontrar dois momentos distintos: um primeiro marcado pelo triunfo da tradição realista orientada para o impressionismo e o simbolismo; um outro, no início do século XX, já marcadamente expressionista, procurando deformações anti-naturalistas.
É neste contexto que poderemos ler a obra de Jacek Malczewski (1854-1929).


Jacek Malczewski, "A Arte na Vila", 1896.

Malczewski é uma das figuras maiores da arte polaca com uma pintura monumental e lírica, concreta e visionária. Ele é um colorista não convencional, um excepcional desenhador e um arquitecto da forma mas, igualmente um pensador e um poeta. No âmbito dos postulados filosóficos da sua época, Malczewski põe em causa a visão científica do mundo, fazendo da intuição e da experiência individual as últimas instâncias capazes de ajuizar o resultado das suas investigações metafísicas. Mas Malczewski não se limita a criar um universo mitológico original, revela-se também capaz de dominar a ideia social. Através de imagens poéticas rigorosas e sensuais, Malczewski levanta as questões maiores e fundamentais, revelando o elo entre o homem e a nação. Protegendo-se contra um excesso de subjectividade e relativismo nas noções de bem e mal, ele aborda com rigor e segurança assuntos mais fortes do que a mutabilidade histórica, nomeadamente, o amor e a morte.


Jacek Malczewski, "Ressurreição (Imortalidade)", 1900.

Tendo feito a sua formação em Cracóvia, Malzewski estuda em Paris onde frequenta o atelier de Henri Lehmann e, mais tarde, em Munique. Em 1873 ganha notoriedade com um conjunto de perturbantes desenhos destinados a uma ilustração da Ilíada e da Odiseia. Leitor da poesia de Slowacki que, a partir de 1890 se torna uma referência essencial para os modernistas polacos, Malczewski aborda, por mais de uma vez, o poema «Anhelli» e a sua problemática relacionada com a deportação do povo polaco para a Sibéria, criando um conjunto de interpretações metafísicas sobre o sentido do sofrimento e da nação. No entanto, Malczewski participa intensamente nos desenvolvimentos filosóficos da sua época, nomeadamente nos sistemas filosóficos messiânicos tão em voga na viragem do século. O pensamento messiânico romântico que se esforça por ultrapassar o dualismo entre a anatomia do espírito e a matéria, a eternidade e o tempo, a escatologia e a História, o individual e o colectivo, acaba remetendo para categorias do absoluto. Neste aspecto, o neomessianismo próprio do modernismo polaco ignora a existência política da Polónia e encara o sofrimento, o martírio e o sacrifício como etapas necessárias a uma ressurreição, tendo em conta a evolução do homem, um programa ético que relaciona os actos humanos com uma visão do futuro e do fim da História.
Esta filosofia põe, igualmente, em relação a história da fé com as concepções do símbolo e do mito, enquanto elementos delimitantes de uma visão do mundo.
A realidade da pintura de Malczewski é a de um mundo autónomo e particular donde é difícil escapar, quer pela razão, quer pelos sentidos.

quarta-feira, 19 de maio de 2004

 

Cy Twombly, "Apollon et l'Artiste", 1975

Protector das artes, da poesia e da música, Apolo preside aos jogos das musas. Délos evoca a ilha do seu nascimento, Delphos, o lugar do oráculo. A flor do artista é, talvez, um narciso.

terça-feira, 18 de maio de 2004

 
«Vejo os olhos que viram o Imperador», diz Barthes comentando uma imagem fotográfica de Jerôme, irmão mais novo de Napoleão, fotografia tirada em 1852. A fotografia em causa é, evidentemente “consciente”, está patente a intencionalidade do retrato na pose do rapaz.
A fotografia-retrato (de alguma maneira, é-o sempre) pode, no entanto, remeter para níveis de consciência bem diferenciados. Há algumas imagens fotográficas, principalmente do início da Fotografia enquanto experiência estética e ontológica, que fazem notoriamente a distinção de diferentes níveis de consciência nessa relação simbiótica e “instantânea” entre o que fotografa e o que é fotografado. O primeiro exemplo que seleccionei é o da foto tirada por Molard de Louis Dodier na prisão, aguardando a execução,(1847). A “consciência” da foto é evidente mas remete para uma passividade forçada pelas circunstâncias. O olhar perturbado e perturbador do condenado ultrapassa qualquer intenção estética. Fica-nos a certeza inapelável daquela morte, aquele homem é como se já estivesse morto. Olha (para nós?) como alguém que já não tem nenhuma relação com “o lado de cá”. Poder-se-ía perguntar quem observa quem?


Retrato de Louis Dodier na prisão, aguardando a execução (1847)

A segunda selecção de imagens prende-se rigorosamente com o oposto. Trata-se de duas fotos características do género erótico, a primeira de autoria de Jacques Moulin, a segunda de autor anónimo, ambas de 1850. Em ambas, os modelos, têm plena consciência da sua condição de modelos. Olham a câmara com ostentação, pretendem ser o alvo do fotógrafo. Qualquer uma das fotos é trabalhada, estudada pormenorizadamente. A segunda, mais arrojada, menos pictural, remete, no entanto, para o quadro de Courbet, L’Origin du Monde, pintado, por esta altura, para o embaixador otomano Khalil Bey.


Duas mulheres (1850)


Mulher (1850)

A terceira imagem é, sem dúvida, a mais perturbadora. Trata-se do retrato post mortem de uma mulher, de autor anónimo, também de 1850. Nestes retratos post mortem nota-se a inexistência de simbiose entre o observador e a coisa observada. É como se o nível de consciência da captação do real estivesse incompleto. Também isto se verifica pela distância do nosso olhar perante estas imagens. Falta a ligação afectiva que permita adoptar um ponto de vista, qualquer que seja – histórico, sociológico ou estético. Mas, independentemente de qualquer fenómeno identificador, a contemplação da pessoa morta reveste-se friamente de um carácter clínico e documental. Estes retratos eram guardados na intimidade das famílias para, simultâneamente, confirmarem a realidade da existência e do desaparecimento de um ente querido.


Retrato Post Mortem (1850)

 
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Dürer

Mais uma vez o Oitavo Teorema
Encontrei em De Symmetria Partium Humanorum Corporum de Albert Dürer, Paris, 1557, novamente várias abordagem do problema das excepções perspéticas que advêm das incongruências do sistema renascentista relativamente à visão esferóide que constitui a realidade visual psico-fisiológica humana. Também Dürer se debate com o problema dos ângulos de visão terem grandezas diferentes das distancias. Neste Tratado, Dürer tenta resolver o problema em relação à representação perspéctica do corpo humano.

quinta-feira, 13 de maio de 2004

 
Não consigo deixar de me impressionar, neste 13 de Maio, com as imagens televisivas de Fátima, essa Cova da Iria, simbólicamente essa «cova» uterina e maternal, lugar da hierofania desde 13 de Maio de 1917. Começo por uma observação mundana. Parece-me, embora sem certezas, que ainda são mais as pessoas presentes nesta noite em Fátima do que em qualquer concerto dos Guns & qualquer coisa que desconheço. Mas, mesmo aqui, não tenho a certeza. Porquê, passados dois mil anos, esta devoção a Maria? O que sabemos dela? Que era uma jovem, muito jovem, filha de um abastado comerciante de Nazaré que foi entregue, por seu pai, a um carpinteiro, homem de ofício, bastante mais velho que ela, em casamento. Porquê? Dizem-nos os textos apócrifos que Maria se teria apaixonado por um soldado romano (teria sido desonrada?), estaria, portanto, em tempo de ocupação, condenada ao ostracismo, se não a pena mais cruel. Daí o acordo com este homem, José, de condição social inferior à dela e já viúvo com vários filhos a cargo. Não deixa de ser interessante esta pequena história.
Da mesma maneira, não deixa de ser interessante que Maria, simbólicamente a «mãe» nos «apareça» em Fátima, simbólicamente a «filha» na tradição islâmica. Como não deixa de ser interessante que Lúcia, Jacinta e Francisco se refiram a Maria como uma «senhora de luz» o que corresponde, literalmente, ao termo islâmico az-zahrã pelo qual é designada a filha do Profeta.
Ela acompanhou seu pai de Mecca para Medina em 622 e foi ela que o tratou na sua última doença em 632. Maria também já não era jovem quando recebeu o seu filho morto, descido da cruz. Teria cerca de 48 anos.
Deixo aqui, a quem interesse, os textos escritos por Lúcia, a testemunha desta hierofania de Fátima:
O « SEGREDO » DE FÁTIMA


PRIMEIRA E SEGUNDA PARTE DO « SEGREDO »
SEGUNDO A REDACÇÃO FEITA PELA IRMÃ LÚCIA
NA « TERCEIRA MEMÓRIA », DE 31 DE AGOSTO DE 1941,
DESTINADA AO BISPO DE LEIRIA-FÁTIMA
(texto original)

(transcrição) (6)

Terei para isso que falar algo do segredo e responder ao primeiro ponto de interrogação.
O que é o segredo?
Parece-me que o posso dizer, pois que do Céu tenho já a licença. Os representantes de Deus na terra, têm-me autorizado a isso várias vezes, e em várias cartas, uma das quais, julgo que conserva V. Ex.cia Rev.ma do Senhor Padre José Bernardo Gonçalves, na em que me manda escrever ao Santo Padre. Um dos pontos que me indica é a revelação do segredo. Algo disse, mas para não alongar mais esse escrito que devia ser breve, limitei-me ao indispensável, deixando a Deus a oportunidade d'um momento mais favorável.
Expus já no segundo escrito a dúvida que de 13 de Junho a 13 de Julho me atormentou e que n'essa aparição tudo se desvaneceu.
Bem o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar.
A primeira foi pois a vista do inferno!
Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fôgo que parcia estar debaixo da terra. Mergulhados em êsse fôgo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronziadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faulhas em os grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dôr e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios destinguiam-se por formas horríveis e ascrosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa bôa Mãe do Céu; que antes nos tinha prevenido com a promeça de nos levar para o Céu (na primeira aparição) se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.
Em seguida, levantámos os olhos para Nossa Senhora que nos disse com bondade e tristeza:
— Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores, para as salvar, Deus quer establecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra peor. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sufrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será consedido ao mundo algum tempo de paz.(7)



TERCEIRA PARTE DO « SEGREDO »
(texto original)
(transcrição) (8)

« J.M.J.
A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima.
Escrevo em acto de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.
Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fôgo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam encendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: “algo semelhante a como se vêem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante” um Bispo vestido de Branco “tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre”. Varios outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam varios tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de varias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944 ».

INTERPRETAÇÃO DO « SEGREDO »

CARTA DE JOÃO PAULO II
À IRMÃ LÚCIA
(texto original)

COLÓQUIO
COM A IRMÃ MARIA LÚCIA DE JESUS
E DO CORAÇÃO IMACULADO

O encontro da Irmã Lúcia com Sua Ex.cia Rev.ma D. Tarcisio Bertone, Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, por encargo recebido do Santo Padre, e Sua Ex.cia Rev.ma D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva, Bispo de Leiria-Fátima, teve lugar a 27 de Abril passado (uma quinta-feira), no Carmelo de Santa Teresa em Coimbra.
A Irmã Lúcia estava lúcida e calma, dizendo-se muito feliz com a ida do Santo Padre a Fátima para a Beatificação de Francisco e Jacinta, há muito desejada por ela.
O Bispo de Leiria-Fátima leu a carta autógrafa do Santo Padre, que explicava os motivos da visita. A Irmã Lúcia disse sentir-se muito honrada, e releu pessoalmente a carta comprazendo-se por vê-la nas suas próprias mãos. Declarou-se disposta a responder francamente a todas as perguntas.
Então, o Senhor D. Tarcisio Bertone apresenta-lhe dois envelopes: um exterior que tinha dentro outro com a carta onde estava a terceira parte do « segredo » de Fátima. Tocando esta segunda com os dedos, logo exclamou: « É a minha carta », e, depois de a ler, acrescentou: « É a minha letra ».
Com o auxílio do Bispo de Leiria-Fátima, foi lido e interpretado o texto original, que é em língua portuguesa. A Irmã Lúcia concorda com a interpretação segundo a qual a terceira parte do « segredo » consiste numa visão profética, comparável às da história sagrada. Ela reafirma a sua convicção de que a visão de Fátima se refere sobretudo à luta do comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento das vítimas da fé no século XX.
À pergunta: « A personagem principal da visão é o Papa? », a Irmã Lúcia responde imediatamente que sim e recorda como os três pastorinhos sentiam muita pena pelo sofrimento do Papa e Jacinta repetia: « Coitadinho do Santo Padre. Tenho muita pena dos pecadores! » A Irmã Lúcia continua: « Não sabíamos o nome do Papa; Nossa Senhora não nos disse o nome do Papa. Não sabíamos se era Bento XV, Pio XII, Paulo VI ou João Paulo II, mas que era o Papa que sofria e isso fazia-nos sofrer a nós também ».
Quanto à passagem relativa ao Bispo vestido de branco, isto é, ao Santo Padre — como logo perceberam os pastorinhos durante a « visão » — que é ferido de morte e cai por terra, a irmã Lúcia concorda plenamente com a afirmação do Papa: « Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte » (João Paulo II, Meditação com os Bispos Italianos, a partir da Policlínica Gemelli, 13 de Maio de 1994).
Uma vez que a Irmã Lúcia, antes de entregar ao Bispo de Leiria-Fátima de então o envelope selado com a terceira parte do « segredo », tinha escrito no envelope exterior que podia ser aberto somente depois de 1960 pelo Patriarca de Lisboa ou pelo Bispo de Leiria, o Senhor D. Bertone pergunta-lhe: « Porquê o limite de 1960? Foi Nossa Senhora que indicou aquela data? ».Resposta da Irmã Lúcia: « Não foi Nossa Senhora; fui eu que meti a data de 1960 porque, segundo intuição minha, antes de 1960 não se perceberia, compreender-se-ia somente depois. Agora pode-se compreender melhor. Eu escrevi o que vi; não compete a mim a interpretação, mas ao Papa ».
Por último, alude-se ao manuscrito, não publicado, que a Irmã Lúcia preparou para dar resposta a tantas cartas de devotos e peregrinos de Nossa Senhora. A obra intitula-se « Os apelos da Mensagem de Fátima », e contém pensamentos e reflexões que exprimem, em chave catequética e parenética, os seus sentimentos e espiritualidade cândida e simples. Perguntou-se-lhe se gostava que fosse publicado, ao que a Irmã Lúcia respondeu: « Se o Santo Padre estiver de acordo, eu fico contente; caso contrário, obedeço àquilo que decidir o Santo Padre ». A Irmã Lúcia deseja sujeitar o texto à aprovação da Autoridade Eclesiástica, esperando que o seu escrito possa contribuir para guiar os homens e mulheres de boa vontade no caminho que conduz a Deus, meta última de todo o anseio humano.
O colóquio termina com uma troca de terços: à Irmã Lúcia foi dado o terço oferecido pelo Santo Padre, e ela, por sua vez, entrega alguns terços confeccionados pessoalmente por ela.
A Bênção, concedida em nome do Santo Padre, concluiu o encontro.

terça-feira, 11 de maio de 2004

 
La vie et la mort ne se définissent que l'une par rapport à l'autre et l'omniprésence du sacrifice dans les religions humaines exprime cette contrainte d'ordre sémantique. La vie des uns a besoin de la mort des autres: ce constat peut s'appliquer trivialement à des faits matériels et physiques ou se représenter symboliquement dans des constructions complexes. Il en est de même avec ce que nous percevons de l'intime liaison entre mort et individualité: l'inscription dans le temps caractérise l'individu, de la naissance à la mort; et les affirmations postulant qu'«on meurt toujours seul» ou que «la mort change la vie en destin» - l'une avec la sobriété d'un presque proverbe, l'autre avec l'éloquence d'un écrivain parfois un peu trop orateur - ne font que répéter cette évidence. La définition de la mort comme horizon de toute vie individuelle, évidente, prend toutefois un autre sens, un sens plus subtil et plus quotidien, dès qu'on la perçoit comme une définition de la vie elle-même - de la vie entre deux morts. Ainsi en va-t-il de la mémoire et de l'oubli. La définition de l'oubli comme perte du souvenir prend un autre sens dès qu'on le perçoit comme une composante de la mémoire elle-même.
Marc Augé in «Les Formes de l'Oubli», Payot, Paris, 2001

segunda-feira, 10 de maio de 2004

 
A partir de hoje, poder-se-à seguir as propostas de trabalho dos diversos grupos do 2º Ano do Curso de Pintura da SNBA a partir deste link Intervenção

quinta-feira, 6 de maio de 2004

 

Notas sobre Não-lugares (1)

Marc Augé estrutura a Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade sobre três factores de análise, a saber:
A aceleração do tempo, a aceleração do espaço e a aceleração do eu.
Primeira situação analisada: a aceleração do tempo. Com efeito, esta aceleração do tempo, ou a nossa percepção do tempo e do uso que fazemos dele passa por uma primeira permissa que se relaciona com o princípio da sua inteligibilidade. A ideia de progresso nasceu no século XX depois da queda das esperânças e ilusões que acompanharam a travessia do século XIX. Esta ideia de progresso é paradoxal em relação ao próprio desenvolvimento histórico: as atrocidades das duas Grandes Guerras, os totalitarismos e genocídios, o fim das grandes narrativas, dos grandes sistemas de interpretação que aspiravam a traçar um mapa da evolução de toda a humanidade, bem como o desvio dos sistemas políticos oficialmente apoiados nesses grandes sistemas, criam, em suma, a dúvida fundamental sobre o sentido da História ou se a História deve ter um sentido. Quando os historiadores contemporâneos têm dúvidas sobre a História, não é por razões técnicas mas, fundamentalmente, porque lhes é muito difícil fazer do tempo um princípio de inteligibilidade, um princípio de identidade. O que podemos constatar, e confrontamo-nos diáriamente com este facto, é uma evidente aceleração da História. Mal temos tempo de atingir a maturidade em relação ao nosso passado e ele é já História, pertencendo as nossas histórias individuais a uma História mais lata. Pessoas de idade que viveram a guerra de 1914-18 parecem dizer-nos que viveram um período histórico mas nós perdemos a capacidade de compreender o que isso realmente significa. Para nós, os anos sessenta, os anos setenta, os anos oitenta, já se tornaram História imediatamente a seguir a serem vividos. Como Marc Augé diz, "a História parece seguir-nos como uma sombra, como a morte."
E Augé continua: "História significa a série de acontecimentos reconhecidos como acontecimentos por um grande número de pessoas (os Beatles, Maio de 68, Vietnam, Muro de Berlim, democratização da Europa de Leste, a Guerra do Golfo, a desintegração da URSS), acontecimentos que, acreditamos, irão contar aos olhos de futuros historiadores e relativamente aos quais, cada um de nós, embora consciente da sua insignificancia, pode agregar uma circunstância ou imagem pessoal".
(...)
"A aceleração da História corresponde, de facto, a uma multiplicação de eventos poucos dos quais são previstos por economistas, historiadores ou sociólogos. O problema é a super-abundância de acontecimentos. Esta super-abundância de eventos pode ser devidamente apreciada através da super-abundância de informação, por um lado, e pela crescente teia de inter-dependências naquilo a que podemos chamar um "sistema mundial".
Se é verdade que, perante esta super-abundância de acontecimentos, desenvolvemos um excesso de investimento e interesse, também não deixa de ser verdade que, contraditóriamente, sucedem-se, em grande número, acontecimentos para os quais não conseguimos encontrar um sentido, nomeadamente a dissolução de regimes cuja queda ninguém conseguia prever ou a crise latente que afecta política, social e económicamente os países ditos liberais e, relativamente à qual, caímos no hábito inconsciente de discutir em termos de sentido.
O que é verdadeiramente novo em tudo isto não é o mundo não fazer sentido, ou fazer pouco sentido, ou fazer menos sentido do que fazia. O que é verdadeiramente novo é a nossa diária, explícita e intensa necessidade de conferir sentido ao mundo. Esta necessidade de conferir sentido ao mundo confunde-se com a necessidade de conferir sentido ao presente e é o preço que pagamos por esta super-abundância de acontecimentos que corresponde a uma situação que podemos apelidar de supermodernidade para expressar a sua característica mais essencial: excesso.
Cada um de nós tem, ou pensa que tem, o uso deste tempo sobrecarregado de acontecimentos que entrelaçam o presente e o passado. Isto apenas nos faz mais ávidos de sentido. O aumento da esperânça de vida que provocou a passagem da coexistência normal de duas ou três gerações para quatro provocou uma mudança gradual da visão relativamente ao presente e do conceito de tempo. Provocou uma expansão do colectivo e da memória histórica e geneológica multiplicando as ocasiões em que um indivíduo sente que a sua história se intersecta com a História, podendo até imaginar que, de alguma maneira, as duas estão ligadas.
Assim é com uma imagem de excesso – excesso de tempo – que podemos começar a definir uma situação de supermodernidade.

A segunda aceleração que se dá no mundo contemporâneo e a segunda figura de excesso característica da supermodernidade relaciona-se com o espaço.
Curiosa e paradoxalmente esse excesso de espaço não pode ser desrelacionado do fenómeno da progressiva redução do espaço do planeta. Num determinado sentido, os passos dados na conquista espacial têm, como primeira consequência, a redução do nosso espaço para uma escala infinitésimal, de que as fotografias dos satélites nos dão a medida exacta. Vivemos numa era caracterizada por radicais e paradoxais mudanças de escala. Estas alterações operam-se desde as novas visões proporcionadas pela exploração espacial à construção de máquinas que permitem deslocarmo-nos rápidamente e fazer com que qualquer lugar esteja apenas a algumas horas ou a alguns minutos do lugar onde estamos.
Mas também, na privacidade das nossas casas, imagens de todos os tipos, transmitidas por satélites, dão-nos instantânea e simultâneamente uma visão de acontecimentos que ocorrem do outro lado do planeta.
Já não há grande interesse na discussão sobre a manipulação das imagens mas há que entender que, independentemente dessa manipulação, as imagens exercem uma influência e possuem um poder que vai muito para além do objectivo meramente informativo de que, aparentemente, de forma inocente, são portadoras. É de sublinhar que o conjunto de imagens que diáriamente consumimos – notícias, ficção, publicidade -, cuja apresentação e propósito são diferentes, tecem, aos nossos olhos, um universo relativamente homogéneo na sua diversidade. O que é que pode ser mais realista e, em certo sentido, mais informativo sobre a vida nos Estados Unidos do que uma série de TV americana? E a falsa familiaridade que estabelecemos, através da imagem, com os actores da História, pessoas que conhecemos tão bem como os heróis das novelas ou as estrêlas desportivas? Na realidade, não os conhecemos pessoalmente mas reconhecemo-los.
Esta super-abundância de espaço provoca o aparecimento de novos universos. Estes universos são ficcionais e são essencialmente universos de reconhecimento. A propriedade destes universos simbólicos é constituírem-se como lugares de reconhecimento – não de conhecimento -, universos fechados onde tudo é signo. Colecções de códigos de que alguns possuem a chave mas cuja existência é aceite por todos. Totalidades parcialmente ficcionais mas efectivas. Universos de sentido nos quais os indivíduos se definem a si mesmos segundo o mesmo critério, os mesmos valores, os mesmos procedimentos interpretativos.
A super-abundância de espaço define-se nas mudanças de escala, na proliferação da imagem e na aceleração dos meios de transporte. A concretização disto envolve consideráveis modificações físicas: concentrações urbanas, movimentos de populações e a multiplicação daquilo que podemos chamar os não-lugares, por oposição à noção sociológica de lugar e à ideia de cultura localizada no tempo e no espaço. As instalações necessárias para a aceleração de circulação de pessoas e bens – auto-estradas, aeroportos, estações de caminho de ferro – são tanto não-lugares como os próprios meios de transporte, os grandes centros comerciais ou os imensos campos de refugiados.

A terceira figura de excesso relativamente à qual a situação da supermodernidade pode ser definida é a figura do eu. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, pelo menos, o indivíduo quer ser um mundo ele mesmo. Ele pretende interpretar a informação, que à partida considera ser-lhe específicamente destinada, por si mesmo e para si mesmo. Os sociólogos das religiões notaram, inclusivamente, esta situação relativamente à teorização e prática religiosas: cada católico pratica “à sua maneira”. Cada crente “tem a sua” ideia de Deus.
As questões das relações entre sexos opostos são resolvidas no âmbito da indiferenciação do valor do indivíduo.
Por outro lado, nunca as histórias individuais foram tão explícitamente afectadas pela história colectiva como, também não deixa de ser verdade que os pontos de referência para a identificação colectiva nunca foram tão instáveis. Assim, a produção individual de sentidos torna-se mais necessária que nunca. Naturalmente, torna-se fácil entender o conjunto de ilusões em que esta aproximação individualizada se baseia, bem como a produção de estereotipos, a maioria dos quais escapa aos indivíduos envolvidos.
Não deixa, no entanto, de ser interessante, o carácter singular desta produção de sentidos, consubstânciado num aparato publicitário – o corpo, a frescura da vida – bem como num conjunto de vocábulos políticos – as liberdades individuais.
Mas, independentemente da atenção que requer, hoje, esta individualização de referências, não deixa de ser interessante a reflexão sobre os factores da singularidade: singularidade de objectos, de grupos e de reconstrução de lugares. Estas singularidades constituem-se como paradoxais relativamente à aceleração do tempo e do espaço e à des-localização cultural tantas vezes referida de forma apologética como “homogeneização cultural” ou “cultura global”.

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