sábado, 29 de abril de 2006
A partida
Foto de Lilya Corneli
Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo.
Sairei de casa à tarde
Na hora crepuscular
Em minha rua deserta
Nem uma janela aberta
Ninguém para me espiar
De vivo verei apenas
Duas mulheres serenas
Me acenando devagar.
Será meu corpo sozinho
Que há de me acompanhar
Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.
Ninguém ficará chorando
Que mãe já não terei mais
E a mulher que outrora tinha
Mais que ser minha mulher
É mãe de uma filha minha.
Irei embora sozinho
Sem angústia nem pesar
Antes contente da vida
Que não pedi, tão sofrida
Mas não perdi por ganhar.
Verei a cidade morta
Ir ficando para trás
E em frente se abrirem campos
Em flores e pirilampos
Como a miragem de tantos
Que tremeluzem no alto.
Num ponto qualquer da treva
Um vento me envolverá
Sentirei a voz molhada
Da noite que vem do mar
Chegar-me-ão falas tristes
Como a querer me entristar
Mas não serei mais lembrança
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Compreensivo e singular
Como um cadáver num rio
E quando, de algum lugar
Chegar-me o apelo vazio
De uma mulher a chorar
Só então me voltarei
Mas nem adeus lhe darei
No oco raio estelar
Libertado subirei.
Vinicius de Moraes
in Poemas, sonetos e baladas, 1946.
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"
Foto de Lilya Corneli
Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo.
Sairei de casa à tarde
Na hora crepuscular
Em minha rua deserta
Nem uma janela aberta
Ninguém para me espiar
De vivo verei apenas
Duas mulheres serenas
Me acenando devagar.
Será meu corpo sozinho
Que há de me acompanhar
Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.
Ninguém ficará chorando
Que mãe já não terei mais
E a mulher que outrora tinha
Mais que ser minha mulher
É mãe de uma filha minha.
Irei embora sozinho
Sem angústia nem pesar
Antes contente da vida
Que não pedi, tão sofrida
Mas não perdi por ganhar.
Verei a cidade morta
Ir ficando para trás
E em frente se abrirem campos
Em flores e pirilampos
Como a miragem de tantos
Que tremeluzem no alto.
Num ponto qualquer da treva
Um vento me envolverá
Sentirei a voz molhada
Da noite que vem do mar
Chegar-me-ão falas tristes
Como a querer me entristar
Mas não serei mais lembrança
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Compreensivo e singular
Como um cadáver num rio
E quando, de algum lugar
Chegar-me o apelo vazio
De uma mulher a chorar
Só então me voltarei
Mas nem adeus lhe darei
No oco raio estelar
Libertado subirei.
Vinicius de Moraes
in Poemas, sonetos e baladas, 1946.
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"
sexta-feira, 28 de abril de 2006
Correio da Cassini
Saturno na sua belíssima cor natural. O pequeno Enceladus, indiferente à grandeza de Cronos, segue a sua rota no plano dos anéis.
Milovan Markovic
Daqui a pouco, às 6 da tarde, na Galerie Kai Hilgemann, em Berlim, inaugura a exposição Homeless Berlin de Milovan Markovic. A exposição é constituída por um conjunto de retratos de grande dimensão de homens e mulheres sem-abrigo de Belgrado, a que Markovik chama retratos transfigurados. Nestas peças são escritas as histórias dos retratados, as suas condições de existência e da sociedade em que vivem ou viveram. Uma abordagem diferente do conceito de retrato.
quinta-feira, 27 de abril de 2006
52nd International Short Film Festival
De 4 a 9 de Maio, em Oberhausen, decorre a edição deste ano de um dos mais importantes festivais de curtas-metragens europeus. Com uma forte vocação vanguardista e experimental, este festival tornou conhecidos nomes como os de Eija-Liisa Ahtila, Christian Boltanski ou Pipilotti Rist. Este ano, conta com a participação de obras de Victor Alimpiev, Anita Beckers (Anita Beckers Gallery, Frankfurt), David Brocca (IFILM Short Films Channel and IFILM User Video Channel, Hollywood), Sergio Edelsztein (Center for Contemporary Art, Tel Aviv), Henriette Huldisch (Whitney Museum of American Art), GertJan Kuipers (VPRO Digitaal, Amsterdam), Philippe-Alain Michaud (Centre Pompidou, Paris), Rabih Mroueh, Matthias Müller, Mark Nash, Laure Provost e Philine von Guretzky (tank tv, London), Eran Schaerf, Daniel Schmitt (Screen Digest, London), Cate Shortland, Berta Sichel (Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid), Patrick Walke (Content Partnerships Google), Stephen Wright, Lori Zippay (Electronic Arts Intermix, New York).
quarta-feira, 26 de abril de 2006
terça-feira, 25 de abril de 2006
Fins de semana prolongados
Os fins de semana prolongados têm destas coisas...
A conferência sobre arte contemporânea de Chuck Close, um dos mais importantes pintores contemporâneos americanos, que aconteceu ontem, às 8 da noite em Nova York, foi extraordinária, dizem os meus leitores de Nova York. Deveria ter falado dela mais cedo mas falhou-me...
A conferência sobre arte contemporânea de Chuck Close, um dos mais importantes pintores contemporâneos americanos, que aconteceu ontem, às 8 da noite em Nova York, foi extraordinária, dizem os meus leitores de Nova York. Deveria ter falado dela mais cedo mas falhou-me...
Vieillir
Foto de Henri Zerdoun
Ombre de neige,
Coeur blanc, sang pauvre, coeur d'enfant.
Le jour.
Il y a toujours le jour du soleil et le jour des
nuages.
Le ciel, bras ouverts, bon accueil
Au ciel.
Paul Eluard
Foto de Henri Zerdoun
Ombre de neige,
Coeur blanc, sang pauvre, coeur d'enfant.
Le jour.
Il y a toujours le jour du soleil et le jour des
nuages.
Le ciel, bras ouverts, bon accueil
Au ciel.
Paul Eluard
Henri Zerdoun
A principal das razões de serem publicadas fotografias a acompanhar poesia e textos de vários autores neste blog passa pela divulgação da obra de alguns dos excelentes fotógrafos contemporâneos, por vezes desconhecidos do grande público. Foi-me chamada a atenção por Henri Zerdoun de uma falta minha: por lapso, no post de 14 de Abril, A carta que não foi mandada, não fiz referência à autoria da fotografia que acompanha o poema de Vinicius de Moraes. A fotografia é deste excelente fotógrafo contemporâneo francês. Henri Zerdoun tem a sua obra fotográfica publicada na net que poderá ser visitada aqui. Corrigido que está o lapso, ficam aqui as minhas desculpas a Henri Zerdoun.
A principal das razões de serem publicadas fotografias a acompanhar poesia e textos de vários autores neste blog passa pela divulgação da obra de alguns dos excelentes fotógrafos contemporâneos, por vezes desconhecidos do grande público. Foi-me chamada a atenção por Henri Zerdoun de uma falta minha: por lapso, no post de 14 de Abril, A carta que não foi mandada, não fiz referência à autoria da fotografia que acompanha o poema de Vinicius de Moraes. A fotografia é deste excelente fotógrafo contemporâneo francês. Henri Zerdoun tem a sua obra fotográfica publicada na net que poderá ser visitada aqui. Corrigido que está o lapso, ficam aqui as minhas desculpas a Henri Zerdoun.
quinta-feira, 20 de abril de 2006
terça-feira, 18 de abril de 2006
Nous avons fait la nuit
Nous avons fait la nuit je tiens ta main je veille
Je te soutiens de toutes mes forces
Je grave sur un roc l'étoile de tes forces
Sillons profonds où la bonté de ton corps germera
Je me répète ta voix cachée ta voix publique
Je ris encore de l'orgueilleuse
que tu traites comme une mendiante
Des fous que tu respectes des simples où tu te baignes
Et dans ma tête qui se met doucement d'accord avec la tienne avec la nuit
Je m'émerveille de l'inconnue semblable à toi semblable à tout ce que j'aime
Qui est toujours nouveau.
Paul Eluard in Les yeux fertiles, 1936.
Nous avons fait la nuit je tiens ta main je veille
Je te soutiens de toutes mes forces
Je grave sur un roc l'étoile de tes forces
Sillons profonds où la bonté de ton corps germera
Je me répète ta voix cachée ta voix publique
Je ris encore de l'orgueilleuse
que tu traites comme une mendiante
Des fous que tu respectes des simples où tu te baignes
Et dans ma tête qui se met doucement d'accord avec la tienne avec la nuit
Je m'émerveille de l'inconnue semblable à toi semblable à tout ce que j'aime
Qui est toujours nouveau.
Paul Eluard in Les yeux fertiles, 1936.
segunda-feira, 17 de abril de 2006
domingo, 16 de abril de 2006
O palácio
Foto de Henri Zerdoun
O palácio não é infinito.
Os muros, os terreiros, os jardins, os labirintos, as grades, os terraços, os parapeitos, as portas, os corredores, os pátios circulares ou rectangulares, os claustros, as encruzilhadas, as cisternas, as antecâmaras, as câmaras, as alcovas, as bibliotecas, os desvãos, os cárceres, as celas sem saída e os hipogeus não são menos numerosos do que os grãos de areia do Ganges, mas o seu número tem um fim. Das açoteias até ao poente não faltará quem aviste as carpintarias, as cavalariças, as oficinas e as cabanas dos escravos.
A ninguém é dado percorrer mais do que uma parte infinitesimal do palácio. Alguns conhecem apenas os subterrâneos. Podemos aperceber-nos de umas caras, de umas vozes, de umas palavras, mas tudo de que nos apercebemos é ínfimo. Ínfimo e ao mesmo tempo precioso. A data que o aço grava na lápide e que os livros paroquiais registam é posterior à nossa morte; já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um anseio, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.
J. L. Borges in O Ouro dos Tigres, 1972.
Foto de Henri Zerdoun
O palácio não é infinito.
Os muros, os terreiros, os jardins, os labirintos, as grades, os terraços, os parapeitos, as portas, os corredores, os pátios circulares ou rectangulares, os claustros, as encruzilhadas, as cisternas, as antecâmaras, as câmaras, as alcovas, as bibliotecas, os desvãos, os cárceres, as celas sem saída e os hipogeus não são menos numerosos do que os grãos de areia do Ganges, mas o seu número tem um fim. Das açoteias até ao poente não faltará quem aviste as carpintarias, as cavalariças, as oficinas e as cabanas dos escravos.
A ninguém é dado percorrer mais do que uma parte infinitesimal do palácio. Alguns conhecem apenas os subterrâneos. Podemos aperceber-nos de umas caras, de umas vozes, de umas palavras, mas tudo de que nos apercebemos é ínfimo. Ínfimo e ao mesmo tempo precioso. A data que o aço grava na lápide e que os livros paroquiais registam é posterior à nossa morte; já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um anseio, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.
J. L. Borges in O Ouro dos Tigres, 1972.
sábado, 15 de abril de 2006
sexta-feira, 14 de abril de 2006
A carta que não foi mandada
Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor
Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
E, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei... nem lembro mais
Vinicius de Moraes
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor
Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
E, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei... nem lembro mais
Vinicius de Moraes
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
quinta-feira, 13 de abril de 2006
100 anos
Faz hoje cem anos que Samuel Beckett nasceu. Beckettt gostava de Cascais. Para um bloguista de Cascais isto é significativo. Em 1969 Beckett recebeu o Nobel. Em vez de ir recebê-lo veio para Cascais. Instalou-se num hotel em Cascais. À espera de Godot...
Faz hoje cem anos que Samuel Beckett nasceu. Beckettt gostava de Cascais. Para um bloguista de Cascais isto é significativo. Em 1969 Beckett recebeu o Nobel. Em vez de ir recebê-lo veio para Cascais. Instalou-se num hotel em Cascais. À espera de Godot...
A ler
A propósito dos blogues e dos bloguistas, Pierre Assouline, sempre de forma irónica — Blogomanes et autres alcooliques —, escreve sobre o livro Overdose d'info do professor de psiquiatria Michel Lejoyeux (voilà bien un nom prédestiné !):
Le professeur Lejoyeux y relève que le blog est si personnalisé qu'il crée une autre actualité de nature à se passer du spectacle du monde. C'est le stade suprême de l'addiction solitaire du blogueur à l'information :
"Il ne prend plus des nouvelles que de lui-même ou des sujets qui le concernent directement. Il n'a plus de temps à perdre à lire un roman ou un journal. Son actualité est celle de sa messagerie et des missives que lui laissent ses meilleurs amis, des hommes ou des femmes qu'en réalité il ne connaît pas et qu'il ne reconnaîtrait pas dans la rue. Comme l'alcoolique surveillant le niveau de sa bouteille qu'il boit seul, le blogomane exclusif est victime d'une fausse actualité, traversée de fausses présences qui l'enferment dans une vraie solitude".
A ler na íntegra em La république des livres.
A propósito dos blogues e dos bloguistas, Pierre Assouline, sempre de forma irónica — Blogomanes et autres alcooliques —, escreve sobre o livro Overdose d'info do professor de psiquiatria Michel Lejoyeux (voilà bien un nom prédestiné !):
Le professeur Lejoyeux y relève que le blog est si personnalisé qu'il crée une autre actualité de nature à se passer du spectacle du monde. C'est le stade suprême de l'addiction solitaire du blogueur à l'information :
"Il ne prend plus des nouvelles que de lui-même ou des sujets qui le concernent directement. Il n'a plus de temps à perdre à lire un roman ou un journal. Son actualité est celle de sa messagerie et des missives que lui laissent ses meilleurs amis, des hommes ou des femmes qu'en réalité il ne connaît pas et qu'il ne reconnaîtrait pas dans la rue. Comme l'alcoolique surveillant le niveau de sa bouteille qu'il boit seul, le blogomane exclusif est victime d'une fausse actualité, traversée de fausses présences qui l'enferment dans une vraie solitude".
A ler na íntegra em La république des livres.
quarta-feira, 12 de abril de 2006
A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias...
(s/ título)
(s/ título)
Foto de Lilya Corneli
A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias.
A regra pode-se enunciar assim: espera-se que a avó entre para descansar, depois vai-se pé ante pé ver se o avô está mesmo cochilando, na cadeira de balanço...
– ou estará MORTO?
… não, não está porque a cabeça des-ca-ca-c ... aiu num cochilo e se levantou de novo sozinho, assustado, dormindo e saiu uma língua da boca que lambeu o bigode branco e a cabeça foi, foi e des-ca-ca-ca-ca-caiu...
O corredor é a corrida geométrica natural para a fuga de uma gargalhada que não se contém. O avô é o mais engraçado dos homens, o avô é tão, tão, tão, tão, tão...
O medo se abate sobre o Descobridor. É a doçura do nome de Margarida, cujo retrato à meia-luz não entreviu.
Vinicius de Moraes
in Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas"
A regra pode-se enunciar assim: espera-se que a avó entre para descansar, depois vai-se pé ante pé ver se o avô está mesmo cochilando, na cadeira de balanço...
– ou estará MORTO?
… não, não está porque a cabeça des-ca-ca-c ... aiu num cochilo e se levantou de novo sozinho, assustado, dormindo e saiu uma língua da boca que lambeu o bigode branco e a cabeça foi, foi e des-ca-ca-ca-ca-caiu...
O corredor é a corrida geométrica natural para a fuga de uma gargalhada que não se contém. O avô é o mais engraçado dos homens, o avô é tão, tão, tão, tão, tão...
O medo se abate sobre o Descobridor. É a doçura do nome de Margarida, cujo retrato à meia-luz não entreviu.
Vinicius de Moraes
in Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas"
terça-feira, 11 de abril de 2006
DaimlerChrysler Contemporary: Classically modern masterpieces
Max Ackermann, Josef Albers, Jean Arp, Willi Baumeister, Max Bill, Adolf Fleischmann, Günter Fruhtrunk, Rupprecht Geiger, Hermann Glöckner, Camille Graeser, Adolf Hölzel, Johannes Itten, Ida Kerkovius, Norbert Kricke, Verena Loewensberg, Richard Paul Lohse, Otto Meyer-Amden, Lothar Quinte, Oskar Schlemmer, Anton Stankowski, George Vantongerloo, Friedrich Vordemberge-Gildewart. Esta é a impressionante lista de artistas de que a DaimlerChrysler Collection possui obras e que mostra, a partir de amanhã, na Potsdamer Platz em Berlim. A exposição abarca cerca de cem obras produzidas entre 1908 e 1987.
Millenium BCP ou Arte mal partilhada
Tenho-me deparado, com alguma frequência, com o facto de alguns senhores administradores ou directores de grandes empresas julgarem que, por dominarem plenamente o seu ofício, possuem conhecimento bastante para, não só darem opinião — regra geral erróneamente fundamentada — mas fazerem, em última análise, valer a sua vontade e decisão em áreas que lhes são absolutamente estranhas e relativamente às quais pouco ou nada entendem. O mundo da arte é frequentemente "assaltado" por estas inteligências, convencidas de que a subjectividade que lhe está associada é campo fértil para opinarem e susceptível de poder acatar passivamente decisões erróneas e, regra geral, arrogantes. O grande problema aqui é que estes poderes instituídos estão plenamente convencidos que dominam áreas de conhecimento em que não acertam uma. Este comportamento é, digamos, muito português; raramente se encontra este tipo de equívocos noutros países europeus em que administradores e directores de grandes empresas, bancos ou seguradoras há muito compreenderam que o seu sucesso se deve a "não brincarem em serviço" e por isso deixam aos profissionais de outras áreas a total responsabilidade de também "não brincarem em serviço" nas suas especialidades. Em Portugal, estas almas competentes da área bancária e financeira não só se consideram igualmente competentes, nomeadamente na área da arte como, muitas vezes, por arrogante teimosia, obrigam os seus colaboradores mais qualificados a "brincarem em serviço".
É exactamente isto que pode ser apreciado ao se visitar a exposição de excelentes obras de Júlio Resende da colecção Millenium BCP que está patente no salão nobre da Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa. O conjunto de obras de Resende que fazem parte da colecção do BCP é excelente, exceptuando uma série de gravuras de nível mais duvidoso. A peça fundamental da exposição é o extraordinário painél monumental Ribeira Negra que é apresentado pela primeira vez em Lisboa. Mas o que predomina nesta exposição é a sua apresentação. Quem desenhou o espaço do salão e a apresentação destas obras não faz a menor ideia do que é apresentar uma exposição de pintura e muito menos um painél como a Ribeira Negra. Conseguiram retirar ao painél a sua leitura e a sua monumentalidade. Emparedaram-no atrás de um estranho e bizarro esquema de paredes, retirando a possibilidade do recuo necessário à sua leitura. É absolutamente notório que o desenho da apresentação desta exposição é obra de amadores. Pena é que o profissionalismo e competência evidentes na área da banca não sejam, neste caso, sinónimos de inteligência e humildade em áreas para as quais não estão vocacionados nem possuem qualquer tipo de qualificação. Este é o exemplo acabado de como se estraga uma exposição. Arte mal partilhada.
É exactamente isto que pode ser apreciado ao se visitar a exposição de excelentes obras de Júlio Resende da colecção Millenium BCP que está patente no salão nobre da Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa. O conjunto de obras de Resende que fazem parte da colecção do BCP é excelente, exceptuando uma série de gravuras de nível mais duvidoso. A peça fundamental da exposição é o extraordinário painél monumental Ribeira Negra que é apresentado pela primeira vez em Lisboa. Mas o que predomina nesta exposição é a sua apresentação. Quem desenhou o espaço do salão e a apresentação destas obras não faz a menor ideia do que é apresentar uma exposição de pintura e muito menos um painél como a Ribeira Negra. Conseguiram retirar ao painél a sua leitura e a sua monumentalidade. Emparedaram-no atrás de um estranho e bizarro esquema de paredes, retirando a possibilidade do recuo necessário à sua leitura. É absolutamente notório que o desenho da apresentação desta exposição é obra de amadores. Pena é que o profissionalismo e competência evidentes na área da banca não sejam, neste caso, sinónimos de inteligência e humildade em áreas para as quais não estão vocacionados nem possuem qualquer tipo de qualificação. Este é o exemplo acabado de como se estraga uma exposição. Arte mal partilhada.
segunda-feira, 10 de abril de 2006
A ausente
Foto de Lilya Corneli
Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...
Vinicius de Moraes
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "Nossa Senhora de Los Angeles"
Foto de Lilya Corneli
Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...
Vinicius de Moraes
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "Nossa Senhora de Los Angeles"
A ler
Hoje, Pierre Assouline no La république des livres: Tout Lévinas dans le moteur. Fácil de procurar e encontrar tudo sobre Emmanuel Lévinas no novo motor de busca do L'Institut d'Etudes Lévinasiennes.
Hoje, Pierre Assouline no La république des livres: Tout Lévinas dans le moteur. Fácil de procurar e encontrar tudo sobre Emmanuel Lévinas no novo motor de busca do L'Institut d'Etudes Lévinasiennes.
domingo, 9 de abril de 2006
Carla Arocha
O Kunsthalle Bern apresenta, desde ontem, a exposição Dirt de Carla Arocha. Nascida na Venezuela em 1961, Arocha mostra nesta exposição pintura e desenho. Rejeitando a tradição abstracta, Arocha opta pelo jogo do olhar sobre as ilusões ópticas reflectindo a sua formação como bióloga num conjunto de situações pictóricas quase descritivas de alguns fenómenos biológicos numa interessante intersecção entre a ciência e a arte. A exposição pode ser vista em Berna até 21 de Maio.
quinta-feira, 6 de abril de 2006
A ler
Obrigatóriamente, mais um notável post de Tiago de Oliveira Cavaco — O portageiro — no Comedor de gafanhotos.
Obrigatóriamente, mais um notável post de Tiago de Oliveira Cavaco — O portageiro — no Comedor de gafanhotos.
Correio da Cassini
Por de cima dos anéis o pequeno Enceladus iluminado aproxima-se de Dione. Intimidades...
Por de cima dos anéis o pequeno Enceladus iluminado aproxima-se de Dione. Intimidades...
GAMeC
A Galleria d’Arte Moderna e Contemporanea di Bergamo — GAMeC, apresenta, desde ontem, três exposições: Giulio Paolini — Fuori programma, Mario Finazzi — Fotografie e Keren Cytter — Atmosphere.
O percurso da exposição de Paolini articula-se ao longo de quatro salas da GAMeC, o salão de honra da Academia Carrara e uma aula da Academia Carrara de Belas Artes. O título da exposição, Fuori programma, refere-se a tudo aquilo que está, de facto, "fora" do programa do ensino das academias. A exposição divide-se em três núcleos, l’Aula di Pittura, l’Aula di Scultura e l’Aula di Disegno e uma última sala, Quadri d’autore. Esta exposição foi criada para este espaço. Paolini, nascido em 1940, é desde os anos 60 um dos artistas relevantes da arte contemporânea. Tendo passado, pontualmente, pela Arte Povera e pelos conceptualismos dos finais dos anos 60, Paolini continua a afirmar as suas opções por um classicismo formal.
O percurso da exposição de Paolini articula-se ao longo de quatro salas da GAMeC, o salão de honra da Academia Carrara e uma aula da Academia Carrara de Belas Artes. O título da exposição, Fuori programma, refere-se a tudo aquilo que está, de facto, "fora" do programa do ensino das academias. A exposição divide-se em três núcleos, l’Aula di Pittura, l’Aula di Scultura e l’Aula di Disegno e uma última sala, Quadri d’autore. Esta exposição foi criada para este espaço. Paolini, nascido em 1940, é desde os anos 60 um dos artistas relevantes da arte contemporânea. Tendo passado, pontualmente, pela Arte Povera e pelos conceptualismos dos finais dos anos 60, Paolini continua a afirmar as suas opções por um classicismo formal.
A exposição de Mario Finazzi compreende cerca de uma centena de obras deste fotógrafo italiano, obras pertencentes ao Archivio Fotografico di Mario Finazzi, entretanto adquirido pelo museu em 2003. A produção fotográfica de Finazzi constrói-se em torno de uma permanente desmaterialização do objecto, através de diversas técnicas, nomeadamente a solarização, na procura de uma estética que determina novos parâmetros para a avaliação do próprio meio.
A artista israelita Keren Cytter apresenta um vídeo — Atmosphere — produzido em 2005 em que desmonta as características das linguagens cinematográfica e televisiva, abordando situações tão diversas como o documentario, o melodrama, o sit-com e o género sentimental.
terça-feira, 4 de abril de 2006
O labirinto
Foto de Lilya Corneli
Zeus não poderia desatar as redes
de pedra que me cercam. Já esqueci
todos os homens que antes fui; segui
o caminho de insípidas paredes
que é o meu destino. Rectas galerias
que se curvam em círculos secretos
ao fim de muitos anos. Parapeitos
gretados pela erosão dos dias.
Entre a poeira tenho decifrado
rastos que temo. O ar tem-me trazido
nas mais côncavas tardes um bramido
ou o eco de um bramido desolado.
Sei que na sombra há Outro, cuja sorte
é fatigar as tão longas saudades
que tecem e destecem este Hades,
ansiar meu sangue e devorar-me a morte.
Ambos nos procuramos. Quem me dera
fosse este o dia último da espera.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Foto de Lilya Corneli
Zeus não poderia desatar as redes
de pedra que me cercam. Já esqueci
todos os homens que antes fui; segui
o caminho de insípidas paredes
que é o meu destino. Rectas galerias
que se curvam em círculos secretos
ao fim de muitos anos. Parapeitos
gretados pela erosão dos dias.
Entre a poeira tenho decifrado
rastos que temo. O ar tem-me trazido
nas mais côncavas tardes um bramido
ou o eco de um bramido desolado.
Sei que na sombra há Outro, cuja sorte
é fatigar as tão longas saudades
que tecem e destecem este Hades,
ansiar meu sangue e devorar-me a morte.
Ambos nos procuramos. Quem me dera
fosse este o dia último da espera.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
domingo, 2 de abril de 2006
sábado, 1 de abril de 2006
In memoriam J. F. K.
Foto de Lilya Corneli
Esta bala é antiga.
Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevideu, Arredondo, que passara muito tempo sem ver ninguém para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projéctil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um actor que as palavras de Shakespeare tinham convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em meados do século XVII a vingança serviu-se dela para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia, a meio da hecatombe de uma batalha.
Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é apenas própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi o punhal triangular que ceifou o colo de uma rainha, foi os obscuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi o veneno que o chefe cartaginês guardava num anel de ferro, foi a serena taça que Sócrates bebeu num entardecer.
No dealbar do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão acabar com os homens e com o seu prodigioso e frágil destino.
J. L. Borges in O Fazedor, 1960.
Foto de Lilya Corneli
Esta bala é antiga.
Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevideu, Arredondo, que passara muito tempo sem ver ninguém para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projéctil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um actor que as palavras de Shakespeare tinham convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em meados do século XVII a vingança serviu-se dela para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia, a meio da hecatombe de uma batalha.
Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é apenas própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi o punhal triangular que ceifou o colo de uma rainha, foi os obscuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi o veneno que o chefe cartaginês guardava num anel de ferro, foi a serena taça que Sócrates bebeu num entardecer.
No dealbar do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão acabar com os homens e com o seu prodigioso e frágil destino.
J. L. Borges in O Fazedor, 1960.