domingo, 27 de setembro de 2009
Páginas notáveis (3)
Qu'est-ce que tous les mots nous disent en secret? Quel est le secret que nous nous passons les uns les autres en parlant?... Si nous appelons les choses d'un nom, c'est pour entendre que tout le réel est parlé. C'est sur la parole que la matière repose: la parole est la portée du temps, son portement. C'est un autre monde que nous verrions de nos yeux avec d'autres mots. Notre vue est parlée. Le visible est un renouvellement perpétuel de paroles. Rien n'est sans voix.
Rien n'est sans langage. Si le mot en sait plus que l'image, c'est parce qu'il n'est ni la chose, ni le reflet de la chose, mais ce qui l'appelle, ce qui trace dans l'air son absence, ce qui dit dans l'air son manque, ce qui désire qu'elle soit. Le mot dit à la chose qu'elle manque et il l'appelle — et en l'appelant il tient réunis dans un même souffle son être et sa disparition. Comme si ce mouvement amoureux de la parole avait appelé le monde. C'est d'une disparition que le monde apparaît; c'est en nous manquant que le réel est devant nous. L'univers est sans repos. L'espace n'est pas le champ de la matière mais le théâtre du drame de la parole. Un tombeau vide: toute la matière est restée là. La matière est parce que le langage s'en est retiré. En elle-même, la matière n'est rien. Elle n'est qu'un langage fait de choses.
Valère Novarina in Devant la parole, 1999.
Rien n'est sans langage. Si le mot en sait plus que l'image, c'est parce qu'il n'est ni la chose, ni le reflet de la chose, mais ce qui l'appelle, ce qui trace dans l'air son absence, ce qui dit dans l'air son manque, ce qui désire qu'elle soit. Le mot dit à la chose qu'elle manque et il l'appelle — et en l'appelant il tient réunis dans un même souffle son être et sa disparition. Comme si ce mouvement amoureux de la parole avait appelé le monde. C'est d'une disparition que le monde apparaît; c'est en nous manquant que le réel est devant nous. L'univers est sans repos. L'espace n'est pas le champ de la matière mais le théâtre du drame de la parole. Un tombeau vide: toute la matière est restée là. La matière est parce que le langage s'en est retiré. En elle-même, la matière n'est rien. Elle n'est qu'un langage fait de choses.
Valère Novarina in Devant la parole, 1999.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
Não acredito que os portugueses queiram mais disto:
etc., etc., etc.,
Páginas notáveis (2)
O regresso, em grego, diz-se nostos. Algos significa sofrimento. A nostalgia é portanto o sofrimento causado pelo desejo insatisfeito de regressar. Para esta noção fundamental, a maior parte dos europeus pode utilizar uma palavra de origem grega (nostalgia) e além disso outras palavras com raízes na sua língua nacional: anoranza, dizem os espanhóis; saudade, dizem os portugueses. Em cada língua, estas palavras possuem um matiz semântico diferente. Muitas vezes significam apenas a tristeza causada pela impossibilidade do regresso ao país. Recordação dolorosa do país. Recordação dolorosa do lugar. O que, em inglês, se diz: homesickness. Ou em alemão: Heimweh. Em holandês: heimwee. Mas trata-se de uma redução espacial da grande noção. Uma das mais antigas línguas europeias, o islandês, distingue bem dois termos: söknudur: nostalgia no seu sentido geral; e heimfra: recordação dolorosa do país. Os checos, a par da palavra nostalgie vinda do grego, têm para a noção o seu próprio substantivo, stesk, e o seu próprio verbo; a mais comovente expressão de amor checa: styska se mi po tobe: tenho nostalgia de ti; não posso suportar a dor da tua ausência. Em espanhol, anoranza vem do verbo anorar (ter nostalgia), que vem do catalão enyorar, derivado, por seu turno, da palavra latina ignorare (ignorar). A esta luz etimológica, a nostalgia aparece como o sofrimento da ignorância.
Milan Kundera in A Ignorância, 2000.
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Livros esquecidos (19)
Editado em 1958, Le Roi du Monde é um dos livros fundamentais da vasta obra de René Guénon. A propósito de dois livros — Mission de l'Inde de Saint-Yves d'Alveydre (1910) e Bêtes, Hommes et Dieux de M. Ferdinand Ossendowski (1924) — Guénon explica aqui um conjunto fundamental de conceitos simbólicos com a clareza e a erudição que o caracterizam. Relacionando todas as religiões, Guénon encontra um denominador comum, distinguindo o essencial do acessório. Muito esquecidos, o autor e a obra, são sem dúvida um momento importante da erudição ocidental.
terça-feira, 22 de setembro de 2009
O Sr. Dr. Eng., luminária, timoneiro da pátria... José Sócrates...
...tem mau feitio. O processo contra João Miguel Tavares tinha sido arquivado pelo MP. O Sr. Dr. Eng., luminária, timoneiro da pátria José Sócrates não gostou. Deixem-no ganhar no próximo domingo deixem, e depois venham-se queixar que os processos já não são só contra quem escreve artigos de opinião para o grande público mas também contra pequenos blogues como este lidos por tuta e meia de pessoas. Quem levantar um "dedo" contra o Sr. Dr. Eng., luminária, timoneiro da pátria José Sócrates, ficará na mira.
Páginas notáveis
A cidade de noite está acordada, como os gatos nas vielas, procura recolher-se a uma luminosidade íntima. Manipula seus hábitos, conta histórias, passeia, combina com a verdade o que vai acontecer quando daí a pouco a luz inunda os olhos dos bichos e os telhados das casas.
Desintegro-me. Custou-me sempre participar do colectivo. Apoquenta-me a minha narrativa, sobretudo pela veracidade mordaz de que se revestem todos os meus actos. Tento disfarçar com imagens. Puxo as sargetas da alma, guindastro pelas roldanas do meu vaivém um peso de sentimentos misturados com banalidades do dia a dia. Não vou à praça fazer compras. Recuso-me terminantemente a tomar uma laranjada, ou um eléctrico. Deixo que as pessoas olhem para mim, de caras, com a minha imagem estampada, bem visível à vista desarmada. Mesmo na loja que na Baixa me queria vender um binóculo por tuta-e-meia, eu recusei em absoluto essa alavanca trancada no rosto. Fui sempre pelo que é natural, tanto em animais, como na cama. A memória recorda factos, é parte de uma história que se ensinava no século XIX e ainda hoje alegra os meninos do Liceu. Lembro futuros melhores, de fava-rica, camisas arregaçadas, terminações com o mesmo dinheiro de muitas sortes grandes, banhos em pelote, mulheres de tremer os alicerces, terramotos que correm cheios de saudade, prenhes de desejos, satisfações imberbes que nunca se cumprem. Arrepio-me, agora, já, sem saber bem porquê, uma viagem que sobe e desce pela espinha dorsal. Olho para mim. Uma radiografia perfeita, bem chapada. Tudo foge ao meu controle. Fico destituído de mim, como desmobilizado de uma guerra em que não tomei parte.
Ruben A. in O outro que era eu, 1966.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Porque será que...(?)
Sempre que oiço António Costa na "Quadratura do Círculo", a falar em nome do PS e do (Engº.) José Sócrates, me lembro que...
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!
(...)
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!
(...)
O Dantas é um habilidoso!
(...)
O Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrizinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
(...)
O Danta é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe que vai saír... Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é um pim-pam-pum.
(...)
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental!
(...)
E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!
(...)
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia — se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
José de Almada Negreiros in Manifesto Anti-Dantas, 1915.
Sempre que oiço António Costa na "Quadratura do Círculo", a falar em nome do PS e do (Engº.) José Sócrates, me lembro que...
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!
(...)
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!
(...)
O Dantas é um habilidoso!
(...)
O Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrizinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
(...)
O Danta é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe que vai saír... Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é um pim-pam-pum.
(...)
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental!
(...)
E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!
(...)
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia — se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
José de Almada Negreiros in Manifesto Anti-Dantas, 1915.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
domingo, 13 de setembro de 2009
Fragmentos de um evangelho apócrifo
3. Infeliz o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que é agora na terra.
4. Infeliz o que chora, porque já tem o hábito desgraçado do pranto.
5. Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6. Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8. Feliz o que perdoa aos outros e o que se perdoa a si mesmo.
9. Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10. Bem-aventurados os que têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou afortunada, é obra do acaso, que é imperscrutável.
11. Bem-aventurados os misericordiosos, porque a felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio.
12. Bem-aventurados os de coração limpo, porque vêem Deus.
13. Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que o seu destino humano.
14. Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento da sua vida, não o é.
15. Que a luz de um candeeiro se acenda, mesmo que nenhum homem a veja. Deus vê-la-á.
16. Não há mandamento que não possa ser infringido, incluindo os que digo e os que os profetas disseram.
17. O que matar por causa da justiça, ou por causa que ele crê justa, não tem culpa.
18. Os actos dos homens não merecem o fogo nem os céus.
19. Não odeies o teu inimigo, porque, se o fizeres, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20. Se te ofender a tua mão direita, perdoa-a; és o teu corpo e és a tua alma e é árduo ou impossível fixar a fronteira que os separa...
24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25. Não jures, porque qualquer juramento é uma ênfase.
26. Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita podes voltar-lhe a outra, desde que não te mova o temor.
27. Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28. Fazer bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é difícil; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29. Fazer bem ao teu inimigo é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio e este último da tristeza e do tédio.
31. Pensa que os outros são ou serão justos, e se não for assim, o erro não é teu.
32. Deus é mais generoso que os homens e medi-los-á com outra bitola.
33. Dá o santo aos cães, deita as tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34. Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar...
39. A porta é que escolhe, não o homem.
40. Não julgues a árvore pelos seus frutos nem o homem pelas suas obras; podem ser piores ou melhores.
41. Nada se constrói sobre a pedra e tudo sobre a areia, mas o nosso dever é construir como se a areia fosse pedra...
47. Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48. Felizes os valentes, os que aceitam com o mesmo ânimo a derrota ou as palmas.
49. Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque elas irão dar luz aos seus dias.
50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51. Felizes os felizes.
3. Infeliz o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que é agora na terra.
4. Infeliz o que chora, porque já tem o hábito desgraçado do pranto.
5. Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6. Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7. Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8. Feliz o que perdoa aos outros e o que se perdoa a si mesmo.
9. Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10. Bem-aventurados os que têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou afortunada, é obra do acaso, que é imperscrutável.
11. Bem-aventurados os misericordiosos, porque a felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio.
12. Bem-aventurados os de coração limpo, porque vêem Deus.
13. Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que o seu destino humano.
14. Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento da sua vida, não o é.
15. Que a luz de um candeeiro se acenda, mesmo que nenhum homem a veja. Deus vê-la-á.
16. Não há mandamento que não possa ser infringido, incluindo os que digo e os que os profetas disseram.
17. O que matar por causa da justiça, ou por causa que ele crê justa, não tem culpa.
18. Os actos dos homens não merecem o fogo nem os céus.
19. Não odeies o teu inimigo, porque, se o fizeres, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20. Se te ofender a tua mão direita, perdoa-a; és o teu corpo e és a tua alma e é árduo ou impossível fixar a fronteira que os separa...
24. Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25. Não jures, porque qualquer juramento é uma ênfase.
26. Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita podes voltar-lhe a outra, desde que não te mova o temor.
27. Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28. Fazer bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é difícil; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29. Fazer bem ao teu inimigo é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio e este último da tristeza e do tédio.
31. Pensa que os outros são ou serão justos, e se não for assim, o erro não é teu.
32. Deus é mais generoso que os homens e medi-los-á com outra bitola.
33. Dá o santo aos cães, deita as tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34. Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar...
39. A porta é que escolhe, não o homem.
40. Não julgues a árvore pelos seus frutos nem o homem pelas suas obras; podem ser piores ou melhores.
41. Nada se constrói sobre a pedra e tudo sobre a areia, mas o nosso dever é construir como se a areia fosse pedra...
47. Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48. Felizes os valentes, os que aceitam com o mesmo ânimo a derrota ou as palmas.
49. Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque elas irão dar luz aos seus dias.
50. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51. Felizes os felizes.
Jorge Luis Borges in Elogio da Sombra, 1969.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Livros esquecidos (18)
Psicanálise da Percepção Artística — nesta edição brasileira da Zahar — foi a primeira obra de Ehrenzweig, publicada originalmente em Nova York em 1953, com o título The Psychoanalysis of Artistic Vision and Hearing. Juntamente com Art and Visual Perception de Rudolf Arnheim, é seguramente um dos clássicos na área da Psicologia da Arte do século XX. Ehrenzweig (1908-1966) foi um dos mais notáveis pensadores no campo da arte visual. Abandonando a Áustria em 1938, em plena Anschluss, refugia-se em Londres onde se torna professor no Goldsmith College, University of London. Entre outras obras e escritos há a salientar The Hidden Order of Art, publicado em 1967, Alienation versus Self-Expression (1960), The Undifferentiated Matrix of Artistic Imagination (1964) e Towards a Theory of Art Education (1965). Em Psicanálise da Percepção Artística, A. Ehrenzweig faz uma tentativa de sistematização da impressão caótica dos elementos inconscientes na produção artística e estabelece a relação entre a criação consciente e formal de imagens, por um lado, e a indisciplinada imaginação perceptiva, por outro.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
sábado, 5 de setembro de 2009
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Cores
Foi gratuitamente e por acaso que estando ontem na Ribeira das Naus a olhar para um Tejo verde me espantei a trouxe-mouxe. Eram sete e tal duma tarde de fim de Abril, quando princípios de Primavera já puxam o bridão de verdes diferentes em cima das árvores mais dengosas. No entanto, era o Tejo verde e sem mesclas de barros invernosos ou pardos esgotosos que se me apresentava. A visão não se possuía só da cachimónia, não senhor. O que eu estava a ver era a realidade de uma água verde a espelhar-se contra os barcos catraeiros de Cacilhas e a deixar pousar o reflexo de velas rotas e remendadas das velhas fragatas de Offenbach que pacoviamente deslizam para cima e para baixo — numa viagem trazem legumes e na outra levam ninharias rio nascente. Eu olhava para as bandas lá do fundo e a mancha verde mais carregada alimentava-se num futuro cheio de entusiasmo. Pensava nas férias no campo, também ao fim da tarde, ouvindo o cacarejo de umas galinhas aliviadas de ovo quando aproveitava a ocasião para deitar o busílis à jovem mestra-escola que guardava cautelosamente a sua virgindade para fins oficiais e, decerto, matrimoniais. Realmente porque estaria assim o Tejo tão verde, tão esperançoso?
Ruben A. in Cores, 1960.
Foi gratuitamente e por acaso que estando ontem na Ribeira das Naus a olhar para um Tejo verde me espantei a trouxe-mouxe. Eram sete e tal duma tarde de fim de Abril, quando princípios de Primavera já puxam o bridão de verdes diferentes em cima das árvores mais dengosas. No entanto, era o Tejo verde e sem mesclas de barros invernosos ou pardos esgotosos que se me apresentava. A visão não se possuía só da cachimónia, não senhor. O que eu estava a ver era a realidade de uma água verde a espelhar-se contra os barcos catraeiros de Cacilhas e a deixar pousar o reflexo de velas rotas e remendadas das velhas fragatas de Offenbach que pacoviamente deslizam para cima e para baixo — numa viagem trazem legumes e na outra levam ninharias rio nascente. Eu olhava para as bandas lá do fundo e a mancha verde mais carregada alimentava-se num futuro cheio de entusiasmo. Pensava nas férias no campo, também ao fim da tarde, ouvindo o cacarejo de umas galinhas aliviadas de ovo quando aproveitava a ocasião para deitar o busílis à jovem mestra-escola que guardava cautelosamente a sua virgindade para fins oficiais e, decerto, matrimoniais. Realmente porque estaria assim o Tejo tão verde, tão esperançoso?
Ruben A. in Cores, 1960.
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
Cores
A morte do Preto começava na terça-feira. Tinha de se preparar e tocar "jazz" num melodiar quase fúnebre. Atirar a alma por ali acima e chegar aos bens do céu para brincar com os anjos. Não se despistar nas suas visitas, precisava da certeza que morria. Para a frente, para a frente é que era, num ritmo de cântico mandioca.
Quarta-feira. Preto levantou-se cedo — embarcou no Veloz que estava do lado de lá do rio e dirigiu-se apressado à cidade. Foi ao banco levantar dinheiro para o seu Delegado, cumprimentou um cliente do cabaré e avançou de carapinha bem acamada para o chapéu do Grémio. Havia de ter um bom funeral, pois assim, com uma casaca vermelha de botões dourados a coisa era muito digna. Com indumentária de general de Grémio devia parecer mais branco que preto e viajar na catedral rolante, ouvindo carpideiras nas coxias, dava-lhe ares de enterro de primeira.
Ruben A. in Cores, 1960.
A morte do Preto começava na terça-feira. Tinha de se preparar e tocar "jazz" num melodiar quase fúnebre. Atirar a alma por ali acima e chegar aos bens do céu para brincar com os anjos. Não se despistar nas suas visitas, precisava da certeza que morria. Para a frente, para a frente é que era, num ritmo de cântico mandioca.
Quarta-feira. Preto levantou-se cedo — embarcou no Veloz que estava do lado de lá do rio e dirigiu-se apressado à cidade. Foi ao banco levantar dinheiro para o seu Delegado, cumprimentou um cliente do cabaré e avançou de carapinha bem acamada para o chapéu do Grémio. Havia de ter um bom funeral, pois assim, com uma casaca vermelha de botões dourados a coisa era muito digna. Com indumentária de general de Grémio devia parecer mais branco que preto e viajar na catedral rolante, ouvindo carpideiras nas coxias, dava-lhe ares de enterro de primeira.
Ruben A. in Cores, 1960.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
Cores
Tinha os olhos roxos, de vidente. Com mesa pé-de-galo, mezinhas de cháses concomitantes para diarreia e prisão, rezas de abrenúncio atrás da porta, contando as pancadas de outro mundo batidas no soalho pela vizinha, Roxo mirava a lanterna expondo em alvo as suas ditas de provérbios, máximas, adivinhações, anedotas.
Ruben A. in Cores, 1960.
Tinha os olhos roxos, de vidente. Com mesa pé-de-galo, mezinhas de cháses concomitantes para diarreia e prisão, rezas de abrenúncio atrás da porta, contando as pancadas de outro mundo batidas no soalho pela vizinha, Roxo mirava a lanterna expondo em alvo as suas ditas de provérbios, máximas, adivinhações, anedotas.
Ruben A. in Cores, 1960.