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sábado, 28 de fevereiro de 2004

 
Distante, distante, distante, neste dia cinzento em que, de facto, o tempo está a viver-me. Há coisas pouco amáveis, com efeito.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

 
Para, de alguma maneira, arranjar um pequeno intervalo neste estudo dos "Não-lugares - antropologia da supermodernidade" do Marc Augé, deixo aqui (com um café) mais este belo poema de amor de J.L.Borges do livro Fervor de Buenos Aires, 1923:
Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

 
A leitura do "Non-places" absorve-me todo o tempo. Conseguir debitar alguma coisa neste blog é o resultado de uma imensa arquitectura temporal... (problema interessante para os arquitectos).

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

 
Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,
nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,
nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar o teu sono envolvido
na vigília dos meus braços:
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,
serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,
dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens.
Entregue à serenidade,
divisarei essa praia última do teu ser
e ver-te-ei acaso pla primeira vez
como Deus te verá,
já dissipada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.

J.L.Borges in Lua defronte, 1925.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

 

CADERNOS DA GRAVURA (4)

Ainda a multiplicação de imagens
No capítulo “Terminologie – Principes généraux” do livro de Ales Krejca “Les Techniques de la Gravure” é-nos dito: Le terme «gravure» dérive du grec graphein qui signifie écrire ou dessiner, et recouvre, dans sa plus large acception la transposition de formes vues ou ressenties en un système de lignes, de points et de surfaces. Au sens strict, il s’agit du passage créateur d’un dessin artistique libre à l’élaboration d’un matériau approprié dans le but d’en obtenir l’empreinte, c’est-à-dire de produire un certain nombre d’exemplaires de l’oeuvre.
Há aqui a adição de um conjunto de curiosos conceitos que fazem a reflexão passar para códigos outros, como a escrita ou a obra ou o exemplar (fazendo-me sempre lembrar a rigorosa distinção que J.L. Borges faz entre o espelho e a réplica), mantendo-se, no entanto, a ideia de transposição e de produção da multiplicação através de “um certo número de exemplares”.
Acentua-se, assim, este “cordão umbilical” da coisa gravada com a multiplicação por transposição.

 

CADERNOS DA GRAVURA (3)

Multiplicação e mecanicismo
O que adiante se escreve, desmente parcialmente o que o autor deste blog escreveu há pouco:
A técnica de duplicar imagens tem vários milhares de anos mas encontramo-la já sistematizada entre os Sumérios (cerca de 3000 anos a.C.). Eram então usados cilindros de pedra como suporte de gravação de desenhos e inscrições cuneiformes. Faziam-se, então, rolar estes cilindros sobre placas de gesso, deixando impressos, em relevo,os elementos gravados. Este é um dos processos mais antigos de impressão que reflete não só o conceito de multiplicação mas também um dos princípios de um sofisticado processo mecânico.
Encontrei este apontamento sobre os Sumérios no livro de Walter Chamberlain “Etching and engraving”. Curiosamente, não andará distante da referência da Enciclopédia Britânica sobre os princípios da multiplicação de imagens com excepção à referência a um mecanicismo.
O princípio da multiplicação da imagem relacionado com um processo mecânico remete para um conceito importante que nos distancia da referência da Enc. Britânica: já não se trata da visitação a um lugar e da transferência desse lugar para qualquer lugar mas da utilização de um lugar como “modelo” a ser tranferido. Ou seja, o que está aqui presente é a primeira ideia de matriz.
O lugar – ou a ideia fragmentada dele – passa a constituír-se como coisa matricial no contexto de uma intenção multiplicadora de lugares.

 

CADERNOS DA GRAVURA (2)

Conceitos de multiplicação da imagem
Um dos conceitos primários da multiplicação de imagens remete ainda para a ideia de visitação de lugares. Com efeito, a Enciclopédia Britânica, no Vol. XXVI, pág. 69, avança com esta curiosa informação: By the end of the 2nd century AD, the chinese apparently had discovered, empirically, a means of printing text; certainly they then had at their disposal the three elements necessary for printing: (1) paper, the techniques for the manufacture of which they had known for several decades; (2) ink, whose basic formula they had known for 25 centuries; and (3) surfaces bearing texts carved in relief. Some of the texts were classics of Buddhist thought inscribed on marble pillars, to which pilgrims doubtless applied sheets of damp paper, daubing the surface with ink so that the parts that stood out in relief showed up; some were religious seals evidently used to transfer pictures and texts of prayers to paper.
Esta ideia de transfer daquilo que foi inciso para um suporte outro, implica uma visitação não “inocente” do lugar; e, também, a possibilidade desse lugar “estar” em todos os lugares através da criação da virtualidade do lugar. Não que a linguagem do imaginário fosse inocente. Mas ela ainda se encontrava, ao nível da matéria pintada, presa aos lugares. A primeira emancipação da imagem dá-se justamente através do material gravado e da possibilidade de o transferir para outro suporte. Ao nível da pintura, a invenção móvel e mercantil do “quadro” enquanto coisa que se pode ligar a qualquer lugar, teria ainda que esperar cerca de 1500 anos.

 

CADERNOS DA GRAVURA (1)

Notas dispersas
A Gravura, na sua ancestralidade, não remete para nenhuma forma de representação. É, antes de tudo, um sinal de presença, reflexo da consciência de si, uma marca de existência deixada indelével num ferimento nas matérias do mundo enquanto “suporte” dessa existência.
Neste sentido, é talvez abusiva a denominação de Gravura quando nos referimos a algumas incisões em pedras ou rochas ao nível do paleolítico, mesmo quando já se impõe a representação de algo do mundo. Continuam a ser simples incisões profundamente ligadas aos lugares – destinadas a ser visitadas e não divulgadas.
Este aspecto da incisão, anterior à aposição de matéria sobre matéria, própria da pintura, remete para uma cronologia da consciência. Ou seja, o mundo ainda não é suporte de uma virtualidade; é apenas suporte de uma presença. A relação entre a presença e o lugar é óbvia.
A muito estudada e comentada sacralização de lugares poder-nos-ía remeter para uma primeira abordagem deste processo que se opera segundo um eixo vertical.
A virtualidade da pintura, cronológicamente posterior, funda-se já num processo de consciência que ultrapassa o si e encontra o outro, operando-se segundo um eixo horizontal.
Nesta reflexão sobre as incisões ancestrais, estamos ainda distantes da possibilidade de multiplicação das imagens, característica fundamental daquilo a que podemos chamar Gravura.

 

NOTAS PARA UMA ABORDAGEM DO CORPO

Quando se aborda o corpo, de uma perspectiva histórica, não nos interessa tanto a história das suas representações mas, antes, a narração dos seus modos de construção. E isto porque a história das representações refere-se sempre ao corpo real considerado como uma entidade sem história – seja o corpo considerado pelas ciências, o corpo enquanto fenómeno, ou o corpo instintivo e reprimido, objecto da psicanálise – enquanto que a história dos seus modos de construção reflete a história dos conceitos sobre o corpo e faz-nos adquirir, nessa reflexão, aquilo a que Foucault chamava “uma densa percepção do presente”.

Dentro desta perspectiva, poder-se-ía pensar primeiro no corpo como medida da distância ou proximidade para com a divindade – da alteração de conceitos na tradição judaico-cristã (a história do corpo feminino associado ao pecado original, da desqualificação da mulher enquanto ser eleito, passando pela interrogação sobre a Virgem, à assexuação dos anjos) – até à negação do corpo como objecto do desejo, próprio do budismo – a negação do desejo como pulsão de vida – ou como origem de todo o sofrimento.
Mas a questão relevante, nesta medida entre o corpo humano e o divino, seria qual a classe de corpo que foi considerada através da história por um guerreiro grego, um místico cristão da Idade Média ou o homem contemporâneo para que haja uma parecença física com o deus venerado ou até para que se entre sensualmente em comunicação com ele. E também, pelo contrário, o que é que na constituição do corpo impede o homem de participar da perfeição divina. Esta última questão leva-nos ao limiar da porta que separa o humano do animal mas também o organismo vivente dos artefactos mecânicos que tentam copiá-lo. E o problema interessante seria aqui conseguir avaliar, ao longo da história, quais as deformidades que atribuímos ao corpo – do homem-lobo ao robot – para conseguir essa utopia da perfeição divina.

Uma segunda aproximação ao problema do corpo poder-se-ía fazer no sentido das relações psicossomáticas: como é que o “dentro” e o “fora” se relacionam ou, colocando a questão numa perspectiva ocidental, o problema da alma. Essa alma, considerada pela cultura ocidental, invisível e imaterial (embora, curiosamente, se lhe atribua qualidades materiais), manifesta-se através do rosto ou dos gestos. E aqui surgiria uma questão interessante que se prende com a história dos mecanismos naturais ou aprendidos para a revelação dessa alma. Ainda mais interessante seria perguntar que gestos ou que disciplina imposta ou adquirida produziria a alma de um guerreiro, de um santo ou do homem contemporâneo. Também interessante seria reflectir em qual o tipo de mecanismos do corpo, naturais ou adquiridos, que pode produzir não apenas a depravação mas aquilo que a cria – ou seja, de que maneira um sentimento como o ódio deixa de ser apenas a consequência do medo universal ao outro para passar a ser uma construção cultural específica (os campos de concentração nazi).
Há também uma articulação fundamental entre o “dentro” e o “fora” na modulação das emoções e, particularmente, na área do erótico. Seria interessante verificar a relação existente entre a singularidade das emoções e o contexto das cerimónias em que se produzem. Não que o erotismo seja artificial mas a realidade é que se produz dentro de determinados ambientes dando origem a uma estilização de movimentos e atitudes, cada uma delas com as suas próprias intensidades e desvios. Esses movimentos da alma poderiam constituír a história dos costumes eróticos ou, em termos mais gerais, a estrutura das emoções sexuais.
Mas, para além do desejo e das exigências da alma, o corpo é também o lugar de um conjunto complexo de sensações e aflições que vêm de um interior obscuro e misterioso mas capaz de influenciar e contaminar o pensamento, na relação do corpo com o mundo exterior. Digamos que poderíamos estar aqui a falar de uma anatomia do psiquismo. Prazer, sofrimento e a noção de finitude, da morte, são inevitáveis passagens na intersecção entre a vida e o pensamento. Nomeadamente, a morte é, sem dúvida, um centro nevrálgico da ritualização da vida, específicamente no vínculo entre o psíquico e o somático.

Uma terceira aproximação seria a de analisar a relação entre o órgão e a função, na medida em que o uso de determinados órgãos ou substâncias corporais são utilizados na história como metáforas para o funcionamento de outras estruturas, sejam elas de carácter social, político ou de outra natureza, bem como até na organização de conceitos do universo. A utilização dos órgãos ou de modelos orgânicos para naturalizar uma instituição política, uma hierarquia social ou um princípio moral, ou até uma ideologia, foi históricamente sempre usada e poder-se-ía dizer que corresponde, de alguma maneira, a um “resto” de pensamento pré-filosófico sempre presente.
A necessidade de, no Ocidente, o poder real justificar a sua legitimidade afirmando que um estado precisa de uma “cabeça” ou de um “coração”. No mundo islâmico, a atribuição ao casamento de um papel de maturação e desenvolvimento ético da mulher num processo em que o orgasmo passa do clítoris para a vagina (de fora para dentro). Ou, ainda, a explicação da tradição do domínio do homem sobre a mulher através do conceito ancestral de se atribuír ao esperma um carácter formativo e ao leite e ao sangue da mulher qualidades meramente alimentícias.
Poder-se-ía ainda, neste contexto, falar da função pensando no destino de determinados corpos a que se conferiu uma específica função como a da perpetuação da vida ou de uma determinada ordem social. Corpos como os dos escravos do Império egípcio ou romano ou os corpos das prostitutas da época vitoriana. Corpos sacrificados com a finalidade de preservar uma energia social ou até uma energia cósmica como o dos sacrificados nos rituais astecas ou, ainda, para promover um determinado crescimento económico.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

 
Todas estas coisas foram cumpridas; mas ouve agora
aquilo que te direi, e um deus to recordará.
Às Sereias chegarás em primeiro lugar, que todos
os homens enfeitiçam, que delas se aproximam.
Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias,
ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos
estarão para se regozijarem com o seu regresso;
mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto,
sentadas num prado, e à sua volta estão amontoadas
ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes.
Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros
cera doce, para que nenhum deles as oiça.
Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto,
deixa que, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés
enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam
atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz
das duas Sereias. E se a eles ordenares que te libertem,
então que te amarrem com mais cordas ainda.

Odisseia, Canto XII, 40,50

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2004

 
O asceta, para maior glória de Deus, envilece e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito.
E mais à frente.
Judas procurou o inferno, porque lhe bastava a felicidade do Senhor. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpá-la os homens.
J.L.Borges

 
Extraordinária toda esta encenação em torno da existência ou não de armas nucleares ou químicas no Iraque. Porquê esconder que, nos últimos confrontos do século, se joga sempre o jogo da energia. Não é este o verdadeiro problema à escala planetária? Não será sempre e ainda o último movimento respiratório de uma mentalidade galileica que desesperadamente tenta prolongar o conceito da energia finita, num permanente retorno a um ciclo relativamente ao qual já se antevê o fim? E quais as opções disponíveis para dar início a um novo ciclo (que fatalmente será o da energia infinita)? O nuclear rentável e seguro? A manipulação genética com vista ao início de uma nova escravatura?

 
Ainda a propósito da morte do jovem jogador de futebol. Considerou J. Pacheco Pereira, no passado domingo, verdadeiramente terceiro mundista a exploração feita, pelos canais de televisão, do momento trágico da morte. A certa altura, julguei que levasse mais longe o seu comentário, caro JPP. Porque, para além da consideração sociológica, há, obviamente, uma profanação do carácter simbólico da morte efectuada como que cirúrgicamente pela linguagem fragmentada do imaginário. Aquele jovem não morreu uma vez. Morreu dezenas de vezes, fragmentadamente, com a morte dissecada fotograma a fotograma. Será que esta profanização do simbólico é intrínseca dos media contemporâneos?

 
Nesta profunda noite universal
que alguns faróis mal contradizem,
uma rajada perdida
ofendeu as ruas taciturnas
como trémulo pressentimento
do amanhecer horrível que vigia
os destruídos arredores do mundo.
Instigado pla sombra
e receoso da ameaça da alba,
revivi a tremenda conjectura
de Schopenhauer e Berkeley
que declara que o mundo
é uma actividade da mente,
um sonho das almas,
sem base nem volume nem propósito.
E já que as ideias
não são eternas como o mármore
mas imortais como um bosque ou um rio,
a doutrina anterior
assumiu outra forma na alba
e na superstição dessa hora
quando a luz, como uma trepadeira,
envolve as paredes da sombra, a minha razão inflectiu
e traçou o seguinte capricho:
Se as coisas são alheias de substância
e se esta numerosa Buenos Aires
não é mais do que um sonho
que erguem as almas em partilhada magia,
há um instante
em que o seu ser entra desordenadamente em perigo
e é o instante estremecido da alba,
quando são poucos os que sonham o mundo
e só alguns noctívagos conservam,
cinzenta e mal esboçada,
a imagem da rua
que depois com os outros se define.
Hora em que o sonho pertinaz da vida
corre perigo de se quebrar,
hora em que seria fácil a Deus
matar por completo a Sua obra!
Mas o mundo salvou-se outra vez.
A luz discorre inventando cores sujas
e com algum remorso
da minha cumplicidade no ressurgir do dia,
procuro a minha casa,
atónita e glacial na luz tão branca,
enquanto uma ave rompe o silêncio
e a noite já gasta
ficou guardada nos olhos dos cegos.


Borges guarda sempre este momento nos seus olhos cegos.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

 
Afinal, não se trata de saber se é verdadeiro ou falso; trata-se apenas de ter a certeza ou de ter dúvidas. Referi isto hoje a um aluno que parecia não as ter. Será que é ele que sabe o que é verdadeiramente verdadeiro? Ou apenas as minhas dúvidas são excessivas?

 
Quando começarmos a reparar que os gestos, cores e formas que os espelhos repetem incessantemente não correspondem exactamente, então as coisas estarão a mudar definitivamente.

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