quarta-feira, 30 de novembro de 2005
MES Reloaded
Esta rapaziada do Bloco de Esquerda mais parece a segunda geração do enterrado Movimento de Esquerda Socialista de há trinta anos atrás. O mesmo matrix mental, os mesmos traumas, as mesmas aversões. O que é diferente é o moralismo e esse permanente zigue-zague pelas malhas de um ateísmo ideológico, impondo sempre uma moral católica articulada no contexto da matriz judaico-cristã, entretanto negada, num exercício complicado e cansativo de constantemente simular uma honestidade intelectual que nunca poderia estar subjacente a este discurso.
Joana Amaral Dias grita a plenos pulmões no DN que a "República é laica", expulsando os crucifixos das escolas como Cristo os vendilhões do templo porque, segundo ela, os crucifixos são formas da Igreja Católica fazer propaganda religiosa. Descobri, assim, com Joana Amaral Dias, esta ideia extraordinária de considerar um símbolo religioso como o crucifixo, um signo publicitário, ideia tão preversa e burguesa como a de algumas senhoras e senhores da nossa praça que consideram certas marcas publicitárias quase como símbolos religiosos. Ela que tanto tem defendido os povos islâmicos da opressão do mundo ocidental, teria talvez alguma vantagem em ler alguns textos verdadeiramente doutrinários e verdadeiramente genuínos que lhe possibilitariam confrontar-se com o duro e penoso princípio da realidade.
Louçã, por sua vez, cansa-se nesse labor ideólogico, menos puro e duro que o do ido MES, é verdade, mais vestido de contemporâneidade mas menos utópico e mais hipócrita, tomando sempre carácter publicista, pretendendo sempre desencadear no seu público o mais estrondoso Oohh! de genuína indignação esquerdista pós-moderna.
Ao ouvir esta gente quase tenho saudades dos idos tempos do MES com a sua frescura, veracidade, utopia e radicalismo assumido, sem necessidade de estar permanentemente a piscar o olho aos padrões morais e capacidade de indignação do próximo.
Esta rapaziada do Bloco de Esquerda mais parece a segunda geração do enterrado Movimento de Esquerda Socialista de há trinta anos atrás. O mesmo matrix mental, os mesmos traumas, as mesmas aversões. O que é diferente é o moralismo e esse permanente zigue-zague pelas malhas de um ateísmo ideológico, impondo sempre uma moral católica articulada no contexto da matriz judaico-cristã, entretanto negada, num exercício complicado e cansativo de constantemente simular uma honestidade intelectual que nunca poderia estar subjacente a este discurso.
Joana Amaral Dias grita a plenos pulmões no DN que a "República é laica", expulsando os crucifixos das escolas como Cristo os vendilhões do templo porque, segundo ela, os crucifixos são formas da Igreja Católica fazer propaganda religiosa. Descobri, assim, com Joana Amaral Dias, esta ideia extraordinária de considerar um símbolo religioso como o crucifixo, um signo publicitário, ideia tão preversa e burguesa como a de algumas senhoras e senhores da nossa praça que consideram certas marcas publicitárias quase como símbolos religiosos. Ela que tanto tem defendido os povos islâmicos da opressão do mundo ocidental, teria talvez alguma vantagem em ler alguns textos verdadeiramente doutrinários e verdadeiramente genuínos que lhe possibilitariam confrontar-se com o duro e penoso princípio da realidade.
Louçã, por sua vez, cansa-se nesse labor ideólogico, menos puro e duro que o do ido MES, é verdade, mais vestido de contemporâneidade mas menos utópico e mais hipócrita, tomando sempre carácter publicista, pretendendo sempre desencadear no seu público o mais estrondoso Oohh! de genuína indignação esquerdista pós-moderna.
Ao ouvir esta gente quase tenho saudades dos idos tempos do MES com a sua frescura, veracidade, utopia e radicalismo assumido, sem necessidade de estar permanentemente a piscar o olho aos padrões morais e capacidade de indignação do próximo.
terça-feira, 29 de novembro de 2005
Pintar a cara de preto
Desvelados pelo National Security Archive os documentos comprometedores da atitude portuguesa relativamente a Timor Leste. A hipocrisia não tem limites. A ler aqui.
Desvelados pelo National Security Archive os documentos comprometedores da atitude portuguesa relativamente a Timor Leste. A hipocrisia não tem limites. A ler aqui.
À perte de vue
Dans le sens de mon corps
Tout les arbres toutes leurs branches toutes leurs feuilles
L'herbe à la base les rochers et les maisons en masse
Au loin la mer que ton oeil baigne
Ces images d'un jour après l'autre
Les vices les vertus tellement imparfaits
La transparence des passants dans les rues de hasard
Et des passantes exhalées par tes recherches obstinées
Tes idées fixes au coeur de plomb aux lèvres vierges
Les vices les vertus tellement imparfaits
La ressemblance des regards de permission avec les yeux que tu conquis
Le confusion des corps des lassitudes des ardeurs
L'imitation des mots des attitudes des idées
Les vices les vertus tellement imparfaits
L'amour c'est l'homme inachevé.
Paul Éluard in La vie immédiate, 1932.
Dans le sens de mon corps
Tout les arbres toutes leurs branches toutes leurs feuilles
L'herbe à la base les rochers et les maisons en masse
Au loin la mer que ton oeil baigne
Ces images d'un jour après l'autre
Les vices les vertus tellement imparfaits
La transparence des passants dans les rues de hasard
Et des passantes exhalées par tes recherches obstinées
Tes idées fixes au coeur de plomb aux lèvres vierges
Les vices les vertus tellement imparfaits
La ressemblance des regards de permission avec les yeux que tu conquis
Le confusion des corps des lassitudes des ardeurs
L'imitation des mots des attitudes des idées
Les vices les vertus tellement imparfaits
L'amour c'est l'homme inachevé.
Paul Éluard in La vie immédiate, 1932.
Nova terra
Passeiam por Marte. Fotografam-se durante o passeio. A Opportunity fotografa a Spirit.
Mas porque será que esta paisagem nos é tão familiar?
Mas porque será que esta paisagem nos é tão familiar?
Aqui ao lado
No MUSAC — Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y León, a partir do próximo dia 17 de Dezembro, cinco novas exposições são bem o testemunho da extraordinária actividade e critério de qualidade na estratégia do MUSAC:
Problemas buenos. 4 obras de Pipilotti Rist y amigas é uma instalação com quatro vídeos em que Rist usa o corpo, o desejo, o sexo, os fluidos, o movimento e a música como o seu leitmotiv.
FUSION, Aspectos da Cultura Asiática na Colecção do MUSAC, reune obras de Candice Breitz, Alicia Framis, Yang Fudong, Zhang Huan, Pierre Huyghe, Kaoru Katayama, Kimsooja, Yasumasa Morimura, Jun Nguyen-Hatsushiba, Motohiko Odani, Hiraki Sawa, Do-Ho Suh, Rirkrit Tiravanija e Tabaimo.
Flaschengeist, The German’s Cottage em que Enrique Marty criou um macro-cenário num projecto específicamente desenhado para o MUSAC.
ZOOVILIZATION de Vasava é um projecto em que o artista explora os conceitos do barroco relacionados simbólicamente com aspectos da sociedade contemporânea.
Mucho ruido y pocas nueces II é um projecto de instalação desenvolvido específicamente para o MUSAC por Wilfredo Prieto, projecto que foi iniciado em 2003.
No MUSAC — Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y León, a partir do próximo dia 17 de Dezembro, cinco novas exposições são bem o testemunho da extraordinária actividade e critério de qualidade na estratégia do MUSAC:
Problemas buenos. 4 obras de Pipilotti Rist y amigas é uma instalação com quatro vídeos em que Rist usa o corpo, o desejo, o sexo, os fluidos, o movimento e a música como o seu leitmotiv.
FUSION, Aspectos da Cultura Asiática na Colecção do MUSAC, reune obras de Candice Breitz, Alicia Framis, Yang Fudong, Zhang Huan, Pierre Huyghe, Kaoru Katayama, Kimsooja, Yasumasa Morimura, Jun Nguyen-Hatsushiba, Motohiko Odani, Hiraki Sawa, Do-Ho Suh, Rirkrit Tiravanija e Tabaimo.
Flaschengeist, The German’s Cottage em que Enrique Marty criou um macro-cenário num projecto específicamente desenhado para o MUSAC.
ZOOVILIZATION de Vasava é um projecto em que o artista explora os conceitos do barroco relacionados simbólicamente com aspectos da sociedade contemporânea.
Mucho ruido y pocas nueces II é um projecto de instalação desenvolvido específicamente para o MUSAC por Wilfredo Prieto, projecto que foi iniciado em 2003.
segunda-feira, 28 de novembro de 2005
Notas
Com a morte o mundo não se altera, cessa.
A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte.
Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita mas como intemporalidade, então vive eternamente quem vive o presente.
A nossa vida é infinita, tal como o nosso campo visual é sem limites.
A imortalidade temporal da alma humana, isto é a sua sobrevivência eterna mesmo depois da morte, não só não está garantida como também a sua suposição não realiza de todo o que com ela se queria alcançar. É algum enigma resolvido pelo facto de eu sobreviver eternamente?
Não é esta vida eterna tão enigmática como a presente? A solução do enigma da vida no tempo e no espaço está fora do tempo e do espaço.
(Os problemas a resolver não pertencem às ciências da natureza.)
Como o mundo é, é para O que está acima, completamente indiferente. Deus não se revela no mundo.
Os factos só pertencem ao problema, não à solução.
Se uma resposta não pode ser posta em palavras, também o não pode a pergunta.
O enigma não existe.
Se se pode de todo fazer uma pergunta, então também se pode respondê-la.
L. Wittgenstein in Tratado Lógico-Filosófico (6.4311, 6.4312, 6.432, 6.4321, 6.5), 1922.
Com a morte o mundo não se altera, cessa.
A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte.
Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita mas como intemporalidade, então vive eternamente quem vive o presente.
A nossa vida é infinita, tal como o nosso campo visual é sem limites.
A imortalidade temporal da alma humana, isto é a sua sobrevivência eterna mesmo depois da morte, não só não está garantida como também a sua suposição não realiza de todo o que com ela se queria alcançar. É algum enigma resolvido pelo facto de eu sobreviver eternamente?
Não é esta vida eterna tão enigmática como a presente? A solução do enigma da vida no tempo e no espaço está fora do tempo e do espaço.
(Os problemas a resolver não pertencem às ciências da natureza.)
Como o mundo é, é para O que está acima, completamente indiferente. Deus não se revela no mundo.
Os factos só pertencem ao problema, não à solução.
Se uma resposta não pode ser posta em palavras, também o não pode a pergunta.
O enigma não existe.
Se se pode de todo fazer uma pergunta, então também se pode respondê-la.
L. Wittgenstein in Tratado Lógico-Filosófico (6.4311, 6.4312, 6.432, 6.4321, 6.5), 1922.
sábado, 26 de novembro de 2005
Soneto de separação
Foto de Udo Krause
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Vinicius de Moraes
Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra, Setembro de 1938.
in Poemas, sonetos e baladas
in Antologia Poética
in Livro de Sonetos
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
Foto de Udo Krause
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Vinicius de Moraes
Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra, Setembro de 1938.
in Poemas, sonetos e baladas
in Antologia Poética
in Livro de Sonetos
in Poesia completa e prosa: "O encontro do cotidiano"
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
sexta-feira, 25 de novembro de 2005
As coisas
Foto de Gunnar
O bastão, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura ou as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, as cartas, tabuleiro,
Um livro e dentro dele a ressequida
Violeta, monumento de uma tarde
Decerto inesquecível, já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Tantas coisas,
Limas, ombreiras, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Duram para lá do nosso esquecimento;
Nunca saberão que já estamos ausentes.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Foto de Gunnar
O bastão, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura ou as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, as cartas, tabuleiro,
Um livro e dentro dele a ressequida
Violeta, monumento de uma tarde
Decerto inesquecível, já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Tantas coisas,
Limas, ombreiras, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Duram para lá do nosso esquecimento;
Nunca saberão que já estamos ausentes.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Correio da Cassini
Dione de gelo acima do plano dos anéis. O pano de fundo é o hemisfério norte de Saturno; um hemisfério riscado pela sombra dos anéis.
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
Em Paris, no Palácio de Tokyo
Réflexion...(s)... é uma instalação de Artur Barrio concebida especialmente para o Palácio de Tokyo. Em Réflexion...(s)..., Barrio cria uma atmosfera de caos e desordem conjugando materiais, sons e aromas numa convocação explícita dos sentidos. Espaço de pura experimentação, esta instalação convida o espectador a reflectir sobre a precaridade, a memória e a natureza polimórfica das coisas.
quarta-feira, 23 de novembro de 2005
Canção para a amiga dormindo
Foto de Evemocrette
Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.
Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.
Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.
Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
De um sono sem fim...
Na minha poesia.
Vinicius de Moraes
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas), 1964
in Poesia completa e prosa: "A lua de Montevidéu"
Foto de Evemocrette
Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.
Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.
Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.
Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
De um sono sem fim...
Na minha poesia.
Vinicius de Moraes
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas), 1964
in Poesia completa e prosa: "A lua de Montevidéu"
small States on un-certain stereotypes
A Europa está cheia de singularidades. Pequenos, minúsculos países, orgulhosos da sua herança cultural específica: Andorra, Chipre, Liechtenstein, Luxemburgo, Malta, Monaco e San Marino. Como é que os artistas destes pequenos estados europeus se integram no movimento contemporâneo da arte ocidental? Como é que se desenvolvem, no âmbito desta realidade, as estratégias culturais destes microestados? É sobre estas realidades que esta exposição reflecte. No antigo mosteiro de Santa Clara, em San Marino, até 3 de Dezembro.
terça-feira, 22 de novembro de 2005
Soneto a Quatro Mãos
Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.
Tão prodígo de amor fiquei coitado
Tão facil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.
Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.
Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
Vinicius de Moraes
Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.
Tão prodígo de amor fiquei coitado
Tão facil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.
Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.
Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
Vinicius de Moraes
Anthony Goicolea
Anthony Goicolea ganhou o prémio BMW-Paris Photo 2005 que terminou domingo em Paris.
Everness
Foto de Flor Garduno
Só uma coisa não há. O esquecimento.
Deus, que salva o metal, salvou a escória
E grava na profética memória
As luas a brilhar cada momento.
Já tudo existe. Os milhares de reflexos
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando entre os convexos
Espelhos e os que deixar nessa alquimia.
E tudo é uma parcela do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores
E suas portas fecham-se ao teu passo;
Verás só do outro lado do ocaso
Belos Arquétipos e os Esplendores.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
Foto de Flor Garduno
Só uma coisa não há. O esquecimento.
Deus, que salva o metal, salvou a escória
E grava na profética memória
As luas a brilhar cada momento.
Já tudo existe. Os milhares de reflexos
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando entre os convexos
Espelhos e os que deixar nessa alquimia.
E tudo é uma parcela do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores
E suas portas fecham-se ao teu passo;
Verás só do outro lado do ocaso
Belos Arquétipos e os Esplendores.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
sexta-feira, 18 de novembro de 2005
Hipocrisia profissional
Morte em Cabul: cansaço de ouvir os políticos profissionais chorarem o soldado morto. De facto, a hipocrisia não tem limites para esta gente: quando não estão a beijar as criancinhas estão a roubar-lhes os chupa-chupas.
H.O.
Foto de Richardh
Em certa rua há uma porta certa
Com o seu sinal e número preciso
E um sabor a perdido paraíso,
Que nos entardeceres não está aberta
Aos meus passos. Cumprida uma jornada,
Uma aguardada voz me esperaria
Na desagregação de cada dia
E na paz de uma noite apaixonada.
Tais coisas não as há. Outra é a sorte:
As vagas horas, a memória impura,
O abuso, talvez, da literatura
E no final a indesejada morte.
Só essa pedra quero. Só pretendo
As duas datas e o esquecimento.
J. L. Borges in O Ouro dos Tigres, 1974.
Foto de Richardh
Em certa rua há uma porta certa
Com o seu sinal e número preciso
E um sabor a perdido paraíso,
Que nos entardeceres não está aberta
Aos meus passos. Cumprida uma jornada,
Uma aguardada voz me esperaria
Na desagregação de cada dia
E na paz de uma noite apaixonada.
Tais coisas não as há. Outra é a sorte:
As vagas horas, a memória impura,
O abuso, talvez, da literatura
E no final a indesejada morte.
Só essa pedra quero. Só pretendo
As duas datas e o esquecimento.
J. L. Borges in O Ouro dos Tigres, 1974.
quinta-feira, 17 de novembro de 2005
O olhar para trás
Foto de Angelica-Theoffering
Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.
Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.
Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez… mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.
Alguém gritaria longe: – "Quantas rosas nos deu a primavera!..."
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o vôo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.
Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! – a sua voz é fresca como o orvalho...
Beijam-me a face – irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?
Voltaria o silêncio – seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa – Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?
E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...
No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.
E que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.
Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria – Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que chegaste a mim cheio de chagas?
Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria – Por que vieste te dar ao já vendido?
Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!
Fora, um riso de criança – longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.
Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.
Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...
E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...
Rio de Janeiro, 1935
Vinicius de Morais in Forma e exegese
in Antologia Poética, 1954
in Poesia completa e prosa: "O sentimento do sublime"
Foto de Angelica-Theoffering
Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.
Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.
Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez… mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.
Alguém gritaria longe: – "Quantas rosas nos deu a primavera!..."
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o vôo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.
Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! – a sua voz é fresca como o orvalho...
Beijam-me a face – irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?
Voltaria o silêncio – seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa – Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?
E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...
No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.
E que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.
Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria – Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que chegaste a mim cheio de chagas?
Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria – Por que vieste te dar ao já vendido?
Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!
Fora, um riso de criança – longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.
Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.
Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...
E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...
Rio de Janeiro, 1935
Vinicius de Morais in Forma e exegese
in Antologia Poética, 1954
in Poesia completa e prosa: "O sentimento do sublime"
Correio da Cassini
É difícil acreditar que isto seja a bela mulher de Epimeteus, a bela Pandora. A caixa que indevidamente abriu e de onde saíram todos os desastres humanos teve consequências. Hoje Pandora é assim. A cores.
É difícil acreditar que isto seja a bela mulher de Epimeteus, a bela Pandora. A caixa que indevidamente abriu e de onde saíram todos os desastres humanos teve consequências. Hoje Pandora é assim. A cores.
quarta-feira, 16 de novembro de 2005
Édipo e o enigma
Foto de Elen Retfalvi
Quadrúpede na aurora, alto no dia
E com três pés errando pelo vão
Universo da tarde, a esfinge via
Assim o seu tão inconstante irmão,
O homem, e com a tarde um homem veio
Decifrando no espelho, com receio,
A monstruosa imagem, esse símbolo
Da sua decadência e seu destino.
Somos Édipo e de um eterno modo
A longa e tripla besta somos, tudo
O que seremos e o que fomos sendo.
Aniquilar-nos-ia ver a ingente
Forma do nosso ser; piedosamente
Deus dá-nos sucessão e esquecimento.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964
Foto de Elen Retfalvi
Quadrúpede na aurora, alto no dia
E com três pés errando pelo vão
Universo da tarde, a esfinge via
Assim o seu tão inconstante irmão,
O homem, e com a tarde um homem veio
Decifrando no espelho, com receio,
A monstruosa imagem, esse símbolo
Da sua decadência e seu destino.
Somos Édipo e de um eterno modo
A longa e tripla besta somos, tudo
O que seremos e o que fomos sendo.
Aniquilar-nos-ia ver a ingente
Forma do nosso ser; piedosamente
Deus dá-nos sucessão e esquecimento.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964
Home Works
A partir de amanhã e até 24, Beirute, que nos acostumámos a ver como palco de guerra, renasce das cinzas com a este grande evento cultural, um dos primeiros a ser realizado no Médio Oriente. Escritores, artistas, realizadores de cinema e filósofos estarão reunidos num imenso debate sobre a história e a força dos criadores islâmicos no âmbito da Diáspora.
Correio da Cassini
Dione e Thetys à conversa. O que dirão na intimidade da imensidão?
Riscar o céu. A Cassini regista o momento.
Dione e Thetys à conversa. O que dirão na intimidade da imensidão?
Riscar o céu. A Cassini regista o momento.
segunda-feira, 14 de novembro de 2005
Vídeo-vigilância
Uma das mais interessantes questões que se têm posto ultimamente refere-se às relações complicadas entre video art e vídeo-vigilância, num mundo em que as expressões fílmicas se debatem com o problema da segurança, por um lado, e o fascínio pelo vídeo e pelas webcam's, por outro. A Universidade de Illinois traz à tona este debate através da exposição Balance and Power: Performance and Surveillance in Video Art. As complexas relações entre video art com uma intencionalidade de performance e o natural movimento das pessoas filmado pelas câmaras de vídeo-vigilância, em que tantas vezes são reveladas intenções, emoções e atitudes, está aqui posto em causa. Até que ponto a performance não se constrói a partir da vídeo-vigilância e, também, até que ponto a vídeo-vigilância não gera performance. É este o interessante debate que passa por leituras intimistas e fragmentadas da vida quotidiana das pessoas, movimentos fílmicos que se constituem como excelente material metafórico mas em que, numa consequência terminal, se coloca o problema da intencionalidade: a intencionalidade de quem filma, por um lado, mas também, por outro, o nível de consciência e de postura de quem é filmado.
Um muito obrigado aos leitores deste blog da Universidade de Illinois que me fizeram chegar documentação sobre este fascinante debate.
Um muito obrigado aos leitores deste blog da Universidade de Illinois que me fizeram chegar documentação sobre este fascinante debate.
Ele
Nos olhos da tua carne é que reluz
O insuportável sol, e ela contacta
Com pó disperso ou com rocha compacta;
É o amarelo, o negro, ele é a luz.
Ele vê-os. Com os seus olhos inquietos
Contempla-te e são olhos que num reflexo
Indagam, como os olhos de um espelho,
As hidras negras e os tigres vermelhos.
Não lhe basta criar. É cada uma
Das criaturas do Seu estranho mundo:
As porfiadas raízes do profundo
Cedro e também as mutações da Lua.
Chamavam-me Caim. Por mim o Eterno
Sabe o sabor do fogo do inferno.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
Nos olhos da tua carne é que reluz
O insuportável sol, e ela contacta
Com pó disperso ou com rocha compacta;
É o amarelo, o negro, ele é a luz.
Ele vê-os. Com os seus olhos inquietos
Contempla-te e são olhos que num reflexo
Indagam, como os olhos de um espelho,
As hidras negras e os tigres vermelhos.
Não lhe basta criar. É cada uma
Das criaturas do Seu estranho mundo:
As porfiadas raízes do profundo
Cedro e também as mutações da Lua.
Chamavam-me Caim. Por mim o Eterno
Sabe o sabor do fogo do inferno.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
domingo, 13 de novembro de 2005
Lunação
sábado, 12 de novembro de 2005
Elle est
Foto de Anthony Indianos
Elle est — mais elle n'est qu'à minuit quand tous les oiseaux blancs ont refermé leurs ailes sur l'ignorance des ténèbres, quand la soeur des myriades de perles a caché ses deux mains dans sa chevelure morte, quand le triomphateur se plaît à sangloter, las de ses dévotions à la curiosité, mâle et brillante armure de luxure. Elle est si douce qu'elle a transformé mon coeur. J'avais peur des grandes ombres qui tissent les tapis du jeu et les toilettes, j'avais peur des contorsions du soleil le soir, des incassables branches qui purifient des fenêtres de tous les confessionnaux où des femmes endormies nous attendent.
O buste de mémoire, erreur de forme, lignes absentes, flamme éteinte dans mes yeux clos, je suis devant ta grâce comme un enfant dans l'eau, comme un bouquet dans un grand bois. Nocturne, l'univers se meut dans ta chaleur et les villes d'hiver ont des gestes de rue plus délicats que l'aubépine, plus saisissants que l'heure. La terre au loin se brise en sourires immobiles, le ciel enveloppe la vie: un nouvel astre de l'amour se lève de partout — fini, il n'y a plus de preuves de la nuit.
Paul Éluard in Capitale de la douleur, 1926.
Foto de Anthony Indianos
Elle est — mais elle n'est qu'à minuit quand tous les oiseaux blancs ont refermé leurs ailes sur l'ignorance des ténèbres, quand la soeur des myriades de perles a caché ses deux mains dans sa chevelure morte, quand le triomphateur se plaît à sangloter, las de ses dévotions à la curiosité, mâle et brillante armure de luxure. Elle est si douce qu'elle a transformé mon coeur. J'avais peur des grandes ombres qui tissent les tapis du jeu et les toilettes, j'avais peur des contorsions du soleil le soir, des incassables branches qui purifient des fenêtres de tous les confessionnaux où des femmes endormies nous attendent.
O buste de mémoire, erreur de forme, lignes absentes, flamme éteinte dans mes yeux clos, je suis devant ta grâce comme un enfant dans l'eau, comme un bouquet dans un grand bois. Nocturne, l'univers se meut dans ta chaleur et les villes d'hiver ont des gestes de rue plus délicats que l'aubépine, plus saisissants que l'heure. La terre au loin se brise en sourires immobiles, le ciel enveloppe la vie: un nouvel astre de l'amour se lève de partout — fini, il n'y a plus de preuves de la nuit.
Paul Éluard in Capitale de la douleur, 1926.
Correio da Cassini
Se o Tempo e a velocidade estão profundamente ligados, como dizia Einstein, a Cassini tira aqui o retrato dessa realidade. A velocidade de rotação do gigante Cronos deforma visualmente a sua esferecidade. A Cassini está no plano dos anéis, cuja sombra se projecta no hemisfério norte do planeta; o Sol está à direita.
sexta-feira, 11 de novembro de 2005
A quem estiver a ler-me
Foto de Sean-Ellis
Tu és invulnerável. Não te deram
Os númenes que te regem o destino,
Certeza da poeira? Não será
Teu tempo irreversível o do rio
Em cujo espelho Heraclito viu símbolo
Do que é fugaz? Aguarda-te esse mármore
Que não lerás. Sobre ele já estão escritos
Uma data, a cidade e o epitáfio.
Sonhos do tempo são também os outros,
Nem firme bronze nem oiro fulgente;
O universo é como tu, Proteu.
Sombra, irás para a sombra que te espera,
Fatal, na conclusão dessa jornada;
Pensa que de algum modo já estás morto.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
Foto de Sean-Ellis
Tu és invulnerável. Não te deram
Os númenes que te regem o destino,
Certeza da poeira? Não será
Teu tempo irreversível o do rio
Em cujo espelho Heraclito viu símbolo
Do que é fugaz? Aguarda-te esse mármore
Que não lerás. Sobre ele já estão escritos
Uma data, a cidade e o epitáfio.
Sonhos do tempo são também os outros,
Nem firme bronze nem oiro fulgente;
O universo é como tu, Proteu.
Sombra, irás para a sombra que te espera,
Fatal, na conclusão dessa jornada;
Pensa que de algum modo já estás morto.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
quinta-feira, 10 de novembro de 2005
O fim do comunismo na Europa
Faz hoje 16 anos. Quebraram-se os muros em Berlim.
Hoje, há muros cá dentro. Muitos.
Faz hoje 16 anos. Quebraram-se os muros em Berlim.
Hoje, há muros cá dentro. Muitos.
Premièrement — IV
Foto de Sabine Leve
Je te l'ai dit pour les nuages
Je te l'ai dit pour l'arbre de la mer
Pour chaque vague pour les oiseaux dans les feuilles
Pour les cailloux du bruit
Pour les mains familières
Pour l'oeil qui devient visage ou paysage
Et le sommeil lui rend le ciel de sa couleur
Pour toute la nuit bue
Pour la grille des routes
Pour la fenêtre ouverte pour un front découvert
Je te l'ai dit pour tes pensées pour tes paroles
Toute caresse toute confiance se survivent.
Paul Éluard in L'amour la poésie, 1929.
Foto de Sabine Leve
Je te l'ai dit pour les nuages
Je te l'ai dit pour l'arbre de la mer
Pour chaque vague pour les oiseaux dans les feuilles
Pour les cailloux du bruit
Pour les mains familières
Pour l'oeil qui devient visage ou paysage
Et le sommeil lui rend le ciel de sa couleur
Pour toute la nuit bue
Pour la grille des routes
Pour la fenêtre ouverte pour un front découvert
Je te l'ai dit pour tes pensées pour tes paroles
Toute caresse toute confiance se survivent.
Paul Éluard in L'amour la poésie, 1929.
quarta-feira, 9 de novembro de 2005
A guerra do futuro, agora
Há muitos anos, Agostinho da Silva falava-me das guerras do futuro. Dizia-me, com aquela certeza quase profética que marcava o seu discurso, que as guerras do futuro seriam as guerras que os excluídos, os deserdados, empreenderiam contra o império. O império somos nós: o império da energia, do bem-estar, da segurança, do vislumbre do futuro. O império da imaginação, da criatividade, do sonho, instituído como realidade. O império da riqueza, por vezes do luxo mais irracional. Um império que, progressivamente, e tantas vezes de forma hipócrita, trocou os valores do humanismo por um humanitarismo piegas e ineficaz. Um império que não entendeu, a tempo e horas, a abrangência disciplinada mas benevolente e, sobretudo, os valores da dádiva sem lucro imediato. Um império que olha demais o seu próprio umbigo. Mas, principalmente, um império que esqueceu que, mais do que a finitude que nos caracteriza, a grande bitola humana chama-se sofrimento. É esta a charneira. É aqui que as coisas podem passar e passam para a ordem do insuportável. Obviamente que em tudo isto está a hipocrisia insustentável do modelo social europeu. Obviamente que em tudo isto há o aproveitamento do radicalismo islâmico. Mas não foi sempre assim que os radicais recrutaram os seus soldados? Não foi sempre explorando a insuportabilidade do sofrimento?
Agostinho da Silva tinha razão. O ataque contra o império está aí. Da parte dos excluídos, dos deserdados, da parte daqueles a quem está vedado outro sonho que não se chame vingança.
Há muitos anos, Agostinho da Silva falava-me das guerras do futuro. Dizia-me, com aquela certeza quase profética que marcava o seu discurso, que as guerras do futuro seriam as guerras que os excluídos, os deserdados, empreenderiam contra o império. O império somos nós: o império da energia, do bem-estar, da segurança, do vislumbre do futuro. O império da imaginação, da criatividade, do sonho, instituído como realidade. O império da riqueza, por vezes do luxo mais irracional. Um império que, progressivamente, e tantas vezes de forma hipócrita, trocou os valores do humanismo por um humanitarismo piegas e ineficaz. Um império que não entendeu, a tempo e horas, a abrangência disciplinada mas benevolente e, sobretudo, os valores da dádiva sem lucro imediato. Um império que olha demais o seu próprio umbigo. Mas, principalmente, um império que esqueceu que, mais do que a finitude que nos caracteriza, a grande bitola humana chama-se sofrimento. É esta a charneira. É aqui que as coisas podem passar e passam para a ordem do insuportável. Obviamente que em tudo isto está a hipocrisia insustentável do modelo social europeu. Obviamente que em tudo isto há o aproveitamento do radicalismo islâmico. Mas não foi sempre assim que os radicais recrutaram os seus soldados? Não foi sempre explorando a insuportabilidade do sofrimento?
Agostinho da Silva tinha razão. O ataque contra o império está aí. Da parte dos excluídos, dos deserdados, da parte daqueles a quem está vedado outro sonho que não se chame vingança.
Fragmentos de um evangelho apócrifo
Foto de Eric Delamarre
3 . Infeliz o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que é agora na terra.
4 . Infeliz o que chora, porque já tem o hábito desgraçado do pranto.
5 . Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6 . Não basta ser o último para alguma vez ser o primeiro.
7 . Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8 . Feliz o que perdoa aos outros e o que perdoa a si mesmo.
9 . Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10 . Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou afortunada, é obra do acaso, que é imperscrutável.
11 . Bem-aventurados os misericordiosos, porque a sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio.
12 . Bem-aventurados os de coração limpo, porque vêem Deus.
13 . Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que o seu destino humano.
14 . Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento da sua vida, não o é.
15 . Que a luz de um candeeiro se acenda, mesmo que nenhum homem a veja. Deus vê-la-á.
16 . Não há mandamento que não possa ser infringido, incluindo os que digo e os que os profetas disseram.
17 . O que matar por causa da justiça, ou por causa que ele crê justa, não tem culpa.
18 . Os actos dos homens não merecem o fogo nem os céus.
19 . Não odeies o teu inimigo, porque, se o fizeres, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20 . Se te ofender a tua mão direita, perdoa-a; és o teu corpo e és a tua alma e é árduo ou impossível fixar a fronteira que os separa...
24 . Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25 . Não jures, porque qualquer juramento é uma ênfase.
26 . Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita podes voltar-lhe a outra, desde que não te mova o temor.
27 . Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28 . Fazer o bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é difícil; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29 . Fazer o bem ao teu inimigo é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
30 . Não acumules ouro na terra, porque o ouro é o pai do ócio e este último da tristeza e do tédio.
31 . Pensa que os outros são ou serão justos, e se não for assim, o erro não é teu.
32 . Deus é mais generoso que os homens e medi-los-á com outra bitola.
33 . Dá o santo aos cães, deita as tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34 . Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar...
39 . A porta é que escolhe, não o homem.
40 . Não julgues a árvore peos seus frutos nem o homem pelas suas obras; podem ser piores ou melhores.
41 . Nada se constrói sobre pedra e tudo sobre a areia, mas o nosso dever é construir como se a areia fosse pedra...
47 . Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48 . Felizes os valentes, os que aceitam com o mesmo ânimo a derrota ou as palmas.
49 . Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque elas irão dar luz aos seus dias.
50 . Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51 . Felizes os felizes.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Foto de Eric Delamarre
3 . Infeliz o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que é agora na terra.
4 . Infeliz o que chora, porque já tem o hábito desgraçado do pranto.
5 . Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6 . Não basta ser o último para alguma vez ser o primeiro.
7 . Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
8 . Feliz o que perdoa aos outros e o que perdoa a si mesmo.
9 . Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
10 . Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou afortunada, é obra do acaso, que é imperscrutável.
11 . Bem-aventurados os misericordiosos, porque a sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio.
12 . Bem-aventurados os de coração limpo, porque vêem Deus.
13 . Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que o seu destino humano.
14 . Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento da sua vida, não o é.
15 . Que a luz de um candeeiro se acenda, mesmo que nenhum homem a veja. Deus vê-la-á.
16 . Não há mandamento que não possa ser infringido, incluindo os que digo e os que os profetas disseram.
17 . O que matar por causa da justiça, ou por causa que ele crê justa, não tem culpa.
18 . Os actos dos homens não merecem o fogo nem os céus.
19 . Não odeies o teu inimigo, porque, se o fizeres, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20 . Se te ofender a tua mão direita, perdoa-a; és o teu corpo e és a tua alma e é árduo ou impossível fixar a fronteira que os separa...
24 . Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25 . Não jures, porque qualquer juramento é uma ênfase.
26 . Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita podes voltar-lhe a outra, desde que não te mova o temor.
27 . Eu não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28 . Fazer o bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é difícil; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29 . Fazer o bem ao teu inimigo é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
30 . Não acumules ouro na terra, porque o ouro é o pai do ócio e este último da tristeza e do tédio.
31 . Pensa que os outros são ou serão justos, e se não for assim, o erro não é teu.
32 . Deus é mais generoso que os homens e medi-los-á com outra bitola.
33 . Dá o santo aos cães, deita as tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
34 . Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar...
39 . A porta é que escolhe, não o homem.
40 . Não julgues a árvore peos seus frutos nem o homem pelas suas obras; podem ser piores ou melhores.
41 . Nada se constrói sobre pedra e tudo sobre a areia, mas o nosso dever é construir como se a areia fosse pedra...
47 . Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48 . Felizes os valentes, os que aceitam com o mesmo ânimo a derrota ou as palmas.
49 . Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque elas irão dar luz aos seus dias.
50 . Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
51 . Felizes os felizes.
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
terça-feira, 8 de novembro de 2005
Identités
à Dora Maar
Foto de Mona Kuhn
Je vois les champs la mer couverts d'un jour égal
Il n'y a pas de différences
Entre le sable qui sommeille
La hache au bord de la blessure
Le corps en gerbe déployée
Et le volcan de la santé
Je vois mortelle et bonne
L'orgueil qui retire sa hache
Et le corps qui respire à pleins dédains sa gloire
Je vois mortelle et désolée
Le sable qui revient à son lit de départ
Et la santé qui a sommeil
Le volcan palpitant comme un coeur dévoilé
Et les barques glanées par les oiseaux avides
Les fêtes sans reflet les douleurs san écho
Des fronts des yeux en proie aux ombres
Des rires comme des carrefours
Les champs la mer l'ennui tours silencieuses tours sans fin
Je vois je lis j'oublie
Le livre ouvert de mes volets fermés.
Paul Éluard in Cours naturel, 1938.
à Dora Maar
Foto de Mona Kuhn
Je vois les champs la mer couverts d'un jour égal
Il n'y a pas de différences
Entre le sable qui sommeille
La hache au bord de la blessure
Le corps en gerbe déployée
Et le volcan de la santé
Je vois mortelle et bonne
L'orgueil qui retire sa hache
Et le corps qui respire à pleins dédains sa gloire
Je vois mortelle et désolée
Le sable qui revient à son lit de départ
Et la santé qui a sommeil
Le volcan palpitant comme un coeur dévoilé
Et les barques glanées par les oiseaux avides
Les fêtes sans reflet les douleurs san écho
Des fronts des yeux en proie aux ombres
Des rires comme des carrefours
Les champs la mer l'ennui tours silencieuses tours sans fin
Je vois je lis j'oublie
Le livre ouvert de mes volets fermés.
Paul Éluard in Cours naturel, 1938.
Marina Abramovic
Finalmente o museu Guggenheim de Nova York presta a sua homenagem à obra de Marina Abramovic que desde os anos 70, na área da performance, é, sem dúvida, das artistas mais interessantes. Os trabalhos de Abramovic sempre tiveram como temática central a exploração do corpo, enquanto sujeito e medium, abordando os limites físicos e mentais, a dor, a exaustão, a transformação. Poucos documentos existem das suas primeiras performances, de final dos anos 60, princípio dos anos 70. Apenas alguns registos fotográficos que, naturalmente, mostram apenas uma realidade fragmentada. Neste projecto, Seven Easy Pieces, Marina Abramovic reflete sobre a possibilidade de documentar uma forma de expressão que é, por natureza, efémera.
Correio da Cassini
Desta vez, a conspiração é entre Dione e Pandora. Dione subjuga Pandora, dita-lhe a trama do enredo. Pandora, muito mais pequena, esconde-se no meio dos anéis. Intrigas...
segunda-feira, 7 de novembro de 2005
Paris Photo
Com uma tradição que remonta aos finais do século XIX, Paris Photo é, sem dúvida, a maior feira de fotografia contemporânea do mundo. Este ano com a representação de 90 galerias e 16 editores de 14 países, terá, em 3 dias, um público estimado em cerca de 40.000 pessoas. De 17 a 20 de Novembro no Carrousel du Louvre, ali na rue Rivoli, em Paris.
Ao filho
Foto de Jan Bengtsson
Não sou eu a gerar-te. Os mortos, sim.
São minha mãe, seu pai e os seus maiores,
São os que um longo dédalo de amores
Traçaram desde Adão, Abel, Caim
A partir dos desertos, numa aurora
Tão antiga, que é já mitologia,
E chegam, sangue e ossos, a este dia
Do futuro, no qual te engendro agora.
Sinto essa multidão. Somos nós todos
E entre nós és tu e os vindouros
Filhos que hás-de gerar. Os derradeiros
E os do vermelho Adão. Sou os herdeiros
Também. A eternidade está nas coisas
Do tempo, que são formas pressurosas.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
Foto de Jan Bengtsson
Não sou eu a gerar-te. Os mortos, sim.
São minha mãe, seu pai e os seus maiores,
São os que um longo dédalo de amores
Traçaram desde Adão, Abel, Caim
A partir dos desertos, numa aurora
Tão antiga, que é já mitologia,
E chegam, sangue e ossos, a este dia
Do futuro, no qual te engendro agora.
Sinto essa multidão. Somos nós todos
E entre nós és tu e os vindouros
Filhos que hás-de gerar. Os derradeiros
E os do vermelho Adão. Sou os herdeiros
Também. A eternidade está nas coisas
Do tempo, que são formas pressurosas.
J. L. Borges in O Outro, o Mesmo, 1964.
sábado, 5 de novembro de 2005
Do rigor em ciência
... Naquele Império, a Arte da Cartografia conseguiu tal perfeição que o mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o mapa do Império toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Dadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes consideraram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; não há em todo o País outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda in Viajes de varones prudentes, IV, cap. XLV, Lérida, 1658.
... Naquele Império, a Arte da Cartografia conseguiu tal perfeição que o mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o mapa do Império toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Dadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes consideraram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; não há em todo o País outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda in Viajes de varones prudentes, IV, cap. XLV, Lérida, 1658.
sexta-feira, 4 de novembro de 2005
BILL VIOLA
A partir de amanhã poderá ver-se na James Cohan Gallery, em Nova York, três novas obras de Bill Viola. Nascido em 1951, Viola é um dos mais importantes artistas na área do vídeo. Nesta exposição, o seu trabalho continua a explorar os temas da purificação, união e dissolução, no âmbito de um percurso em que a tecnologia está ao serviço de um profundo entendimento da condição humana. Três vídeos compõem a exposição: The Darker Side of Dawn, Night Journey e Becoming Light. Estes trabalhos foram concebidos para a ópera Tristão e Isolda e apresentados em estreia mundial na Ópera de Paris este ano. A exposição poderá ser vista até 22 de Dezembro.
The Unending Gift
Foto de Viktor Ivanovski
Um pintor prometeu-nos um quadro.
Agora, na Nova Inglaterra, sei que morreu. Senti, tal como outras
vezes, a tristeza de compreender que somos como um sonho.
Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar marcado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse ali, seria com o tempo mais uma coisa,
uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da casa; agora é
ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e de qualquer
cor e não ligada a nenhuma.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará
comigo até ao fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há
qualquer coisa de imortal.)
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
Foto de Viktor Ivanovski
Um pintor prometeu-nos um quadro.
Agora, na Nova Inglaterra, sei que morreu. Senti, tal como outras
vezes, a tristeza de compreender que somos como um sonho.
Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar marcado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse ali, seria com o tempo mais uma coisa,
uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da casa; agora é
ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e de qualquer
cor e não ligada a nenhuma.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará
comigo até ao fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há
qualquer coisa de imortal.)
J. L. Borges in Elogio da Sombra, 1969.
quinta-feira, 3 de novembro de 2005
Correio da Cassini
Tethys e Dione olham-se. Que dirão entre si? Que conspirações planeiam? A sombra de Cronos interrompe os sussurros...
La courbe de tes yeux
Foto de Lylia Corneli
La courbe de tes yeux fait le tour de mon coeur,
Un rond de danse et de douceur,
Auréole du temps, berceau nocturne et sûr,
Et si je ne sais plus tout ce que jái vécu
C'est que tes yeux ne m'ont pas toujours vu.
Feuilles de jour et mousse de rosée,
Roseaux du vent, sourires parfumés,
Ailes couvrant le monde de lumière,
Bateaux chargés du ciel et de la mer,
Chasseurs des bruits et sources des couleurs,
Parfums éclos d'une couvée d'aurores
Qui gît toujours sur la paille des astres,
Comme le jour dépend de l'innocence
Le monde entier dépend de tes yeux purs
Et tout mon sang coule dans leurs regards.
Paul Éluard in Capitale de la douleur, 1926.
Foto de Lylia Corneli
La courbe de tes yeux fait le tour de mon coeur,
Un rond de danse et de douceur,
Auréole du temps, berceau nocturne et sûr,
Et si je ne sais plus tout ce que jái vécu
C'est que tes yeux ne m'ont pas toujours vu.
Feuilles de jour et mousse de rosée,
Roseaux du vent, sourires parfumés,
Ailes couvrant le monde de lumière,
Bateaux chargés du ciel et de la mer,
Chasseurs des bruits et sources des couleurs,
Parfums éclos d'une couvée d'aurores
Qui gît toujours sur la paille des astres,
Comme le jour dépend de l'innocence
Le monde entier dépend de tes yeux purs
Et tout mon sang coule dans leurs regards.
Paul Éluard in Capitale de la douleur, 1926.
terça-feira, 1 de novembro de 2005
Portugal, trespassa-se...
Hoje, no jornal das 9 na SIC Notícias, João Soares versus Manuel Monteiro. Não gosto de escrever sobre política. Este blog é essencialmente cultural. Mas a cultura, às vezes tem que reflectir sobre estas coisas: nunca gostei de Manuel Monteiro. Sempre me pareceu um Francisco Louçã às avessas mas, substâncialmente, igual: calvinista, moralista, messiânico. Do outro lado da mesa, um João Soares defensor do pai. Como, religiosamente, não poderia deixar de ser. O pai defende o filho, apelando ilegalmente ao voto em pleno dia de eleições (por acaso, alguém soube o que se passou ou passa com a advertência feita pela Comissão Nacional de Eleições?), o filho defende o pai, publicamente declarando que é o único presidente possível para Portugal. Pai, Filho, ausência de Espírito Santo. Ou talvez não. O Espírito Santo estará, porventura, no Largo do Rato.
Senhores de Corlleone, porquê fazer estagiar os vossos rapazes em Mahattan ou Singapura? Aqui no Largo do Rato aprenderão rapidamente, e com custos muito mais em conta, os mecânismos dos "tentáculos", a coberto de uma imagem burguesa de boa educação e postura credível, esquecendo os pequenos icebergs provincianos que vêm dos lados de Felgueiras mas que o Espírito Santo do Largo do Rato se encarregará de descartar, abafar ou converter ao bom bom senso burguês e cosmopolita.
Hoje, no jornal das 9 na SIC Notícias, João Soares versus Manuel Monteiro. Não gosto de escrever sobre política. Este blog é essencialmente cultural. Mas a cultura, às vezes tem que reflectir sobre estas coisas: nunca gostei de Manuel Monteiro. Sempre me pareceu um Francisco Louçã às avessas mas, substâncialmente, igual: calvinista, moralista, messiânico. Do outro lado da mesa, um João Soares defensor do pai. Como, religiosamente, não poderia deixar de ser. O pai defende o filho, apelando ilegalmente ao voto em pleno dia de eleições (por acaso, alguém soube o que se passou ou passa com a advertência feita pela Comissão Nacional de Eleições?), o filho defende o pai, publicamente declarando que é o único presidente possível para Portugal. Pai, Filho, ausência de Espírito Santo. Ou talvez não. O Espírito Santo estará, porventura, no Largo do Rato.
Senhores de Corlleone, porquê fazer estagiar os vossos rapazes em Mahattan ou Singapura? Aqui no Largo do Rato aprenderão rapidamente, e com custos muito mais em conta, os mecânismos dos "tentáculos", a coberto de uma imagem burguesa de boa educação e postura credível, esquecendo os pequenos icebergs provincianos que vêm dos lados de Felgueiras mas que o Espírito Santo do Largo do Rato se encarregará de descartar, abafar ou converter ao bom bom senso burguês e cosmopolita.