sexta-feira, 30 de setembro de 2005
Atumn in black and white
No Moderna Museet em Estocolmo, a obra de três fotógrafas contemporâneas: Diane Arbus (1923-1971) e Lisette Model (1901-1973), mostram a sua abordagem da realidade americana do pós-guerra, enquanto que Christer Strömholm (1918-2002) aborda a realidade sueca. Longe do espectacular e do especulativo, o que são aqui mostradas são fotografias de íntima sensibilidade. Estas são três das mais importantes fotógrafas do século XX.
Inaugura amanhã.
Inaugura amanhã.
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Ouvindo:
Antonio Faraò, Far out, CamJazz, 2002.
Ouvindo:
Antonio Faraò, Far out, CamJazz, 2002.
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Talho
Foto de Sabine Leve
Mais vil do que um bordel,
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.
J. L. Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
Talho
Foto de Sabine Leve
Mais vil do que um bordel,
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.
J. L. Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
quinta-feira, 29 de setembro de 2005
Deus à conquista do Brasil ou... pobre mundo o nosso
O vice-presidente da República do Brasil e ministro da Defesa, José Alencar, anunciou esta tarde a sua filiação ao PMR (Partido Municipalista Renovador) — partido recém-criado sob orientação da Igreja Universal do Reino de Deus. Conhecido como o "partido do bispo", por nascer sob inspiração do bispo Edir Macedo, líder da Universal, o PMR apresentou o seu estatuto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), aliás, uma cópia do estatuto dos liberais. A Igreja Universal do Reino de Deus obteve a 25 de Agosto o registro definitivo para a seu próprio partido. Deverá mudar de nome até o fim do ano, quando provavelmente se chamará PR (Partido Republicano).
O vice-presidente da República do Brasil e ministro da Defesa, José Alencar, anunciou esta tarde a sua filiação ao PMR (Partido Municipalista Renovador) — partido recém-criado sob orientação da Igreja Universal do Reino de Deus. Conhecido como o "partido do bispo", por nascer sob inspiração do bispo Edir Macedo, líder da Universal, o PMR apresentou o seu estatuto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), aliás, uma cópia do estatuto dos liberais. A Igreja Universal do Reino de Deus obteve a 25 de Agosto o registro definitivo para a seu próprio partido. Deverá mudar de nome até o fim do ano, quando provavelmente se chamará PR (Partido Republicano).
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Terra nova
Últimas imagens que chegaram da Spirit: montes e vales, terra, muita terra, até perder de vista.
Terra nova
Últimas imagens que chegaram da Spirit: montes e vales, terra, muita terra, até perder de vista.
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Débris
Que Antonio Tabucchi faça este discurso retrógrado hoje no DN ainda vá que não vá. Que Joana Amaral Dias o ponha em destaque no Bicho Carpinteiro, é verdadeiramente surpreendente. Não há fidelidade partidária que se sobreponha ao sentido crítico e ao entendimento que aquele raciocínio é, nos dias que correm, um verdadeiro resto de comida no prato.
Que Antonio Tabucchi faça este discurso retrógrado hoje no DN ainda vá que não vá. Que Joana Amaral Dias o ponha em destaque no Bicho Carpinteiro, é verdadeiramente surpreendente. Não há fidelidade partidária que se sobreponha ao sentido crítico e ao entendimento que aquele raciocínio é, nos dias que correm, um verdadeiro resto de comida no prato.
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Correio da Cassini
Correio da Cassini
Epimeteus era irmão de Prometeus. Enquanto Prometeus era o Previdente — ou o que pensa antes (não lhe tendo, no entanto, valido de muito) —, Epimeteus era o Imprevidente — ou o que pensa depois. Neste caso específico, quem pagou as favas da imprevidência foram os homens pois Epimeteus casou-se com Pandora. Hoje, sózinho e lá longe, Epimeteus olha o verdadeiro Senhor dos anéis sem, contudo, ser tocado por eles.
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Para uma rua do Oeste
Foto de Lilya Corneli
Dar-me-ás uma alheia imortalidade, rua sozinha.
És sombra já da minha vida.
Atravessas-me as noites com a tua certa rectidão de estocada.
A morte — tempestade escura e imóvel — destroçará as minhas horas.
Alguém recolherá os meus passos e usurpará a minha devoção e esta estrela.
(A distância, como um longo vento, há-de flagelar o seu caminho.)
Iluminado por nobre solidão, porá o mesmo anseio no teu céu.
Pôr-lhe-á esse mesmo anseio que sou eu.
Ressurgirei no seu vindouro assombro de ser.
Em ti outra vez:
Rua que dolorosamente como uma ferida te abres.
J. L. Borges in Lua defronte, 1925.
Para uma rua do Oeste
Foto de Lilya Corneli
Dar-me-ás uma alheia imortalidade, rua sozinha.
És sombra já da minha vida.
Atravessas-me as noites com a tua certa rectidão de estocada.
A morte — tempestade escura e imóvel — destroçará as minhas horas.
Alguém recolherá os meus passos e usurpará a minha devoção e esta estrela.
(A distância, como um longo vento, há-de flagelar o seu caminho.)
Iluminado por nobre solidão, porá o mesmo anseio no teu céu.
Pôr-lhe-á esse mesmo anseio que sou eu.
Ressurgirei no seu vindouro assombro de ser.
Em ti outra vez:
Rua que dolorosamente como uma ferida te abres.
J. L. Borges in Lua defronte, 1925.
quarta-feira, 28 de setembro de 2005
Um livro
Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) foi um dos principais filósofos portugueses do século XIX a ocupar-se da essência e existência de Deus e dos atributos divinos numa perspectiva filosófica marcadamente empirista e regida por uma ética de inspiração utilitarista coincidente com a matriz cristã tradicional. Depois de Prelecções Filosóficas (1813), de Essai sur la Psychologie (1826) e de Noções Elementares de Fisofia Geral (1839), a Teodiceia ou Tratado Elementar da Religião Natural e da Religião Revelada, de 1845, constitui a obra fundamental deste filósofo português da primeira metade do Oitocentos. Redigida em francês, como a maior parte da sua obra — o autor viveu longos anos em Paris — esta Teodiceia foi já terminada em Lisboa, a que o filósofo regressara definitivamente em 1842. Nesta obra, Silvestre Pinheiro Ferreira tenta compatibilizar a realidade do mal com a existência de um Deus que é suprema bondade, sabedoria e perfeição. Se, por um lado, a consideração da harmonia e da ordem cósmicas nos possibilitava a contemplação da infinita perfeição divina, por outro, a razão, apoiada exclusivamente na mera experiência sensível não nos permitiria compreender essa mesma perfeição. Deste modo, entendia Silvestre Pinheiro Ferreira que só através da revelação seria possível ao homem conhecer os mistérios de Deus.
Editado na versão original francesa, num volume, e na tradução de Rodrigo S. Cunha, noutro volume, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda que continua com excelentes mas praticamente desconhecidas (por falta de divulgação) edições.
Editado na versão original francesa, num volume, e na tradução de Rodrigo S. Cunha, noutro volume, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda que continua com excelentes mas praticamente desconhecidas (por falta de divulgação) edições.
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Elegia dos portões
Foto de Lilya Corneli
Esta é uma elegia
dos tão rectos portões que alargavam a sombra
numa praça de terra.
Esta é uma elegia
que se lembra de um longo esplendor inclinado
que alguns entardeceres davam aos baldios.
(Até nos próprios becos havia céu que chegasse
para a felicidade
e os taipais tinham a cor das tardes.)
Esta é uma elegia
de um Palermo traçado em vaivém de memória
e que flui no estertor de cada esquecimento.
Raparigas comentadas por valsas de pianola
ou pelos maiorais de corneta insolente
dos 64,
conheciam nas portas a graça da espera.
Havia ecos de tunas
e o regato hostil do Maldonado
— menos água que barro na estiagem —
e atrevidas veredas onde flamejava o gume
e uma fronteira de apitos de ferro.
Houve coisas felizes,
coisas que só serviram pra alegrar as almas:
o canteiro no pátio
e o andar gingão de algum compadre.
Palermo do início, possuías
umas tantas milongas para seres valente
e um baralho crioulo pra esconder a vida
e umas albas eternas pra saber a morte.
O dia era maior nos teus caminhos
que nas ruas do centro,
porque nos teus buracos se aninhava o céu.
Carruagens de flancos sentenciosos
cruzavam a manhã
e os armazéns eram meigos nas esquinas
como se esperassem por um anjo.
Da minha rua alta (é coisa de uma légua)
vou procurar lembranças nas ruas nocturnas.
Este assobio de pobre penetra nos sonhos
dos homens que dormem.
A figueira que assoma a um pequeno muro
dá-se bem com a minha alma
e é mais doce o rosa das tuas esquinas
que o das nuvens suaves.
J. L. Borges in Caderno San Martín, 1929.
Elegia dos portões
Foto de Lilya Corneli
Esta é uma elegia
dos tão rectos portões que alargavam a sombra
numa praça de terra.
Esta é uma elegia
que se lembra de um longo esplendor inclinado
que alguns entardeceres davam aos baldios.
(Até nos próprios becos havia céu que chegasse
para a felicidade
e os taipais tinham a cor das tardes.)
Esta é uma elegia
de um Palermo traçado em vaivém de memória
e que flui no estertor de cada esquecimento.
Raparigas comentadas por valsas de pianola
ou pelos maiorais de corneta insolente
dos 64,
conheciam nas portas a graça da espera.
Havia ecos de tunas
e o regato hostil do Maldonado
— menos água que barro na estiagem —
e atrevidas veredas onde flamejava o gume
e uma fronteira de apitos de ferro.
Houve coisas felizes,
coisas que só serviram pra alegrar as almas:
o canteiro no pátio
e o andar gingão de algum compadre.
Palermo do início, possuías
umas tantas milongas para seres valente
e um baralho crioulo pra esconder a vida
e umas albas eternas pra saber a morte.
O dia era maior nos teus caminhos
que nas ruas do centro,
porque nos teus buracos se aninhava o céu.
Carruagens de flancos sentenciosos
cruzavam a manhã
e os armazéns eram meigos nas esquinas
como se esperassem por um anjo.
Da minha rua alta (é coisa de uma légua)
vou procurar lembranças nas ruas nocturnas.
Este assobio de pobre penetra nos sonhos
dos homens que dormem.
A figueira que assoma a um pequeno muro
dá-se bem com a minha alma
e é mais doce o rosa das tuas esquinas
que o das nuvens suaves.
J. L. Borges in Caderno San Martín, 1929.
terça-feira, 27 de setembro de 2005
Robert Frank – Storylines
Robert Frank nasceu em Zurich em 1924. É, sem dúvida, um dos mais importantes fotógrafos do século XX. A sua contribuição foi extremamente importante para o entendimento e a criatividade na fotografia, bem como a sua capacidade narrativa. Recebeu inúmeros prémios ao longo dos anos, entre eles o Hasselblad Award, em 1996. Por ocasião do seu octagésimo aniversário, a Tate Modern organizou a primeira grande retrospectiva da sua obra, compreendendo cerca de 60 anos de trabalho. Robert Frank – Storylines compreende cerca de 250 fotografias, bem como vídeos, filmes e livros de arte. Robert Frank emigrou para os Estados Unidos em 1947. Viajou durante a década de 50 pela América do Sul e Europa criando um inimitável estilo da fotografia do pós-guerra. Em 1951 fez uma notável série de fotografias de Londres, num momento de grande tensão social, entre a pobreza e a destruição causadas pela guerra e os primeiros sinais de riqueza proporcionados pela reconstrução.
A exposição estará em Zurich, no Fotomuseum Winterthur, até 30 de Novembro.
A exposição estará em Zurich, no Fotomuseum Winterthur, até 30 de Novembro.
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Aprender com a Espanha
Notável a coragem da Justiça espanhola. Trata-se do primeiro julgamento efectuado no mundo sobre o ataque do 11 de Setembro. Em Espanha.
Senhores juízes portugueses: o acromatismo acinzentado corporativo e mesquinho muito tem que aprender com os nossos vizinhos. Façam o favor de crescer e aparecer.
Notável a coragem da Justiça espanhola. Trata-se do primeiro julgamento efectuado no mundo sobre o ataque do 11 de Setembro. Em Espanha.
Senhores juízes portugueses: o acromatismo acinzentado corporativo e mesquinho muito tem que aprender com os nossos vizinhos. Façam o favor de crescer e aparecer.
segunda-feira, 26 de setembro de 2005
Volúpia
Foto de Jacek Pomykalski
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
— Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
Florbela Espanca in Eros de passagem, 1982.
Foto de Jacek Pomykalski
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
— Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
Florbela Espanca in Eros de passagem, 1982.
domingo, 25 de setembro de 2005
Coisas esquecidas
L'esprit a transformé le monde et le monde le lui rend bien. Il a mené l'homme où il ne savait point aller. Il nous a donné le goût et les moyens de vivre, il nous a conféré un pouvoir d'action qui dépasse énormément les forces d'adaptation, et même la capacité de compréhension des individus; il nous a inspiré des désirs et obtenu des résultats qui excèdent de beaucoup ce qui est utile à la vie. Par là, nous nous sommes de plus en plus éloignés des conditions primitives de toute vie, entraînés que nous sommes, avec une rapidité qui s'accélère jusqu'à devenir inquiétante, dans un état de choses dont la complexité, l'instabilité, le désordre caractéristique nous égarent, nous interdisent la moindre prévision, nous ôtent toute possibilité de raisonner sur l'avenir, de préciser les enseignements qu'on avait jadis coutume de demander au passé, et absorbent dans leur emportement et leur fluctuation tout effort de fixation et de construction, qu'elle soit intellectuelle ou sociale, comme un sable mouvant absorbe les forces de l'animal qui s'aventure sur lui.
Tout ceci réagit nécessairement sur l'esprit même. Un monde transformé par l'esprit n'offre plus à l'esprit les mêmes perspectives et les mêmes directions que jadis; il lui impose des problèmes entièrement nouveaux, des énigmes innombrables.
Le spectacle du monde humain, tel qu'on l'observait autrefois, et tel que l'Histoire le représentait, tenait de la comédie et de la tragédie; on y trouvait assez facilement, de siècle en siècle, des situations analogues, des personnages comparables, des périodes bien tranchées, des politiques longuement suivies; des événements nettement définis, à conséquences bien formées. En ce temps-là, les administrations pouvaient vivre de "précédents".
Mais que ce spectacle classique se transforme étrangement! A la comédie et à la tragédie humaines, l'élément féerique s'est combiné. Sur le théâtre du monde actuel, semblable au Châtelet, tout se passe en changements à vue. Ce ne sont qu'apparitions, transformations et surprises, surprises pas toute agréables, et il arrive que l'auteur lui-même de tout cela, l'homme — du moins, l'homme à qui demeure le loisir et la triste habitude de la réflexion — s'étonne de pouvoir vivre dans cette atmosphère actuelle d'enchantements, transformations, où les contradictions se réalisent, où les renversements et les catastrophes se disputent la scène, se substituent comme par magie; où les inventions naissent, mûrissent et modifient en quelques années les moeurs et les esprits. Et cet homme qui pense (qui pense encore), ressent parfois une sorte de lassitude extraordinaire. Il lui semble que la découverte la plus étonnante ne l'étonnerait plus.
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
L'esprit a transformé le monde et le monde le lui rend bien. Il a mené l'homme où il ne savait point aller. Il nous a donné le goût et les moyens de vivre, il nous a conféré un pouvoir d'action qui dépasse énormément les forces d'adaptation, et même la capacité de compréhension des individus; il nous a inspiré des désirs et obtenu des résultats qui excèdent de beaucoup ce qui est utile à la vie. Par là, nous nous sommes de plus en plus éloignés des conditions primitives de toute vie, entraînés que nous sommes, avec une rapidité qui s'accélère jusqu'à devenir inquiétante, dans un état de choses dont la complexité, l'instabilité, le désordre caractéristique nous égarent, nous interdisent la moindre prévision, nous ôtent toute possibilité de raisonner sur l'avenir, de préciser les enseignements qu'on avait jadis coutume de demander au passé, et absorbent dans leur emportement et leur fluctuation tout effort de fixation et de construction, qu'elle soit intellectuelle ou sociale, comme un sable mouvant absorbe les forces de l'animal qui s'aventure sur lui.
Tout ceci réagit nécessairement sur l'esprit même. Un monde transformé par l'esprit n'offre plus à l'esprit les mêmes perspectives et les mêmes directions que jadis; il lui impose des problèmes entièrement nouveaux, des énigmes innombrables.
Le spectacle du monde humain, tel qu'on l'observait autrefois, et tel que l'Histoire le représentait, tenait de la comédie et de la tragédie; on y trouvait assez facilement, de siècle en siècle, des situations analogues, des personnages comparables, des périodes bien tranchées, des politiques longuement suivies; des événements nettement définis, à conséquences bien formées. En ce temps-là, les administrations pouvaient vivre de "précédents".
Mais que ce spectacle classique se transforme étrangement! A la comédie et à la tragédie humaines, l'élément féerique s'est combiné. Sur le théâtre du monde actuel, semblable au Châtelet, tout se passe en changements à vue. Ce ne sont qu'apparitions, transformations et surprises, surprises pas toute agréables, et il arrive que l'auteur lui-même de tout cela, l'homme — du moins, l'homme à qui demeure le loisir et la triste habitude de la réflexion — s'étonne de pouvoir vivre dans cette atmosphère actuelle d'enchantements, transformations, où les contradictions se réalisent, où les renversements et les catastrophes se disputent la scène, se substituent comme par magie; où les inventions naissent, mûrissent et modifient en quelques années les moeurs et les esprits. Et cet homme qui pense (qui pense encore), ressent parfois une sorte de lassitude extraordinaire. Il lui semble que la découverte la plus étonnante ne l'étonnerait plus.
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
sábado, 24 de setembro de 2005
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Flash
Foto de Arturo Piza
Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trémulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida
— aterrada pela riqueza —
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anónimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som e unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra.
Nome do mundo, diadema.
Herberto Helder in Eros de passagem, 1982.
Flash
Foto de Arturo Piza
Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trémulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida
— aterrada pela riqueza —
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anónimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som e unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra.
Nome do mundo, diadema.
Herberto Helder in Eros de passagem, 1982.
sexta-feira, 23 de setembro de 2005
Water (without you I'm not)
Até 30 de Novembro.
Inaugura amanhã no Centro Del Carmen - Museo De Bellas Artes De Valencia a 3ª Bienal de Valencia, desta vez, tendo como proposta uma reflexão profunda sobre um dos problemas mais prementes da humanidade: a água. A exposição central tem como título Thoughts of a fish in the deep sea e propõe um olhar sobre a organização planetária na relação dialéctica entre a água e a terra, a água e o céu, o líquido e o sólido, o mar e as ilhas, a fluidez e a consistência, a sedimentação e a erosão, a construção e a destruição. A exposição, ao contráro de ser organizada como um conjunto de declarações sobre a água e/ou a importancia da água, foi concebida como um conjunto de núcleos em que os artistas foram agrupados:
Foggy Tropical
Arto Lindsay (1953, EUA), Yayoi Kusama (1929, Japão), Moon Shin (1923-1995, Coreia do Sul), Andreu Alfaro (1929, Espanha), Dennis Santachiara (1950, Itália), Lynda Benglis (1941, EUA).
Cloistered Island
Gimhongsok (1964, Coreia do Sul), Marc Camille CHaimowicz (1946, França), Olivier Mosset (1944, Suíça), Hwang Jungmyung (1975, Coreia do Sul), John Armleder (1948, Suíça), Alessandra Tesi (1969, Itália).
Dream Factory Island
Nicolas Schöffer (1912-1996, França).
Archipelago
Jesús Rafael Soto (1923-2005, França), Juan Bernardo Pineda (1963, Espanha), Miltos Manetas (1964, Grécia), Rafael Rozendaal (1980, Holanda), Angelo Plessas (1974, Grécia), Julie Atlas Muz (1973, EUA), Angela Bulloch (1966, Inglaterra), François Morellet (1926, França), Alain Séchas (1955, França), Otto Muehl (1925, Áustria), Hiraki Sawa (1977, Japão), Xavier Veilhan (1963, França).
Rivers of Babylone
Kohei Nawa (1975, Japão), On Kawara (Japão), Lawrence Weiner (1942, EUA).
Sargasso Sea
José Ramón Amondarain (1964, Espanha), Toño Barrreiro (1965, Espanha), Sergio Belinchón (1971, Espanha), Sylvie Fleury (1961, Suíça), Carlo Gavazzeni (1965, Itália), Anthony Goicolea (1971, EUA), Duane Hanson (1925-1996, EUA), Richard Kern (1954, EUA), Gyula Kosice (1924, Argentina), Robert Longo (1953, EUA), Mireya Masó (1963, Espanha), Gustav Metzger (1926), Terry Rodgers (1947, EUA), Serse (1952, Itália), Jane Simpson (1965, Inglaterra), Massimo Vitali (1944, Itália).
Foggy Tropical
Arto Lindsay (1953, EUA), Yayoi Kusama (1929, Japão), Moon Shin (1923-1995, Coreia do Sul), Andreu Alfaro (1929, Espanha), Dennis Santachiara (1950, Itália), Lynda Benglis (1941, EUA).
Cloistered Island
Gimhongsok (1964, Coreia do Sul), Marc Camille CHaimowicz (1946, França), Olivier Mosset (1944, Suíça), Hwang Jungmyung (1975, Coreia do Sul), John Armleder (1948, Suíça), Alessandra Tesi (1969, Itália).
Dream Factory Island
Nicolas Schöffer (1912-1996, França).
Archipelago
Jesús Rafael Soto (1923-2005, França), Juan Bernardo Pineda (1963, Espanha), Miltos Manetas (1964, Grécia), Rafael Rozendaal (1980, Holanda), Angelo Plessas (1974, Grécia), Julie Atlas Muz (1973, EUA), Angela Bulloch (1966, Inglaterra), François Morellet (1926, França), Alain Séchas (1955, França), Otto Muehl (1925, Áustria), Hiraki Sawa (1977, Japão), Xavier Veilhan (1963, França).
Rivers of Babylone
Kohei Nawa (1975, Japão), On Kawara (Japão), Lawrence Weiner (1942, EUA).
Sargasso Sea
José Ramón Amondarain (1964, Espanha), Toño Barrreiro (1965, Espanha), Sergio Belinchón (1971, Espanha), Sylvie Fleury (1961, Suíça), Carlo Gavazzeni (1965, Itália), Anthony Goicolea (1971, EUA), Duane Hanson (1925-1996, EUA), Richard Kern (1954, EUA), Gyula Kosice (1924, Argentina), Robert Longo (1953, EUA), Mireya Masó (1963, Espanha), Gustav Metzger (1926), Terry Rodgers (1947, EUA), Serse (1952, Itália), Jane Simpson (1965, Inglaterra), Massimo Vitali (1944, Itália).
Até 30 de Novembro.
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Correio da Cassini
Correio da Cassini
Atlas é um dos Titãs que foi condenado por Zeus a sustentar as colunas do céu que poisam sobre a Terra. As suas sete filhas eram as atlantes. Por ironia do destino, Atlas surge-nos aqui pequeno e achatado, longe da altiva robustez mitológica, numa escala completamente desproporcionada em relação ao gigante Saturno. Outros tempos...
quinta-feira, 22 de setembro de 2005
Primeiro septeto
Foto de Jacek Pomykalski
Porquê os olhos se os seios saltam
para as mãos?
Porquê os seios se os olhos faltam
na face?
Dedos, boca, órgãos ou sentidos,
mas só olhos nos olhos quando neles mete os dedos e lembra.
Que instinto arrasta o meu cego às fontes da vida,
se tem ouvido, tacto e tem palavra?
Se ouve um grito
a mão fecha
o que dissimula.
Sente no seu, outro corpo
que tacteia.
E socorre-se dos sons
ou do jeito musical,
na sua boca sabor
a mel ou amarga cor
de grito paralisado
pelo voltar da cabeça.
Na sua mente,
pluralizados pela dor,
seios.
Obsessão de cego,
condição de ver.
Ruy Cinatti in Eros de passagem, 1982.
Foto de Jacek Pomykalski
Porquê os olhos se os seios saltam
para as mãos?
Porquê os seios se os olhos faltam
na face?
Dedos, boca, órgãos ou sentidos,
mas só olhos nos olhos quando neles mete os dedos e lembra.
Que instinto arrasta o meu cego às fontes da vida,
se tem ouvido, tacto e tem palavra?
Se ouve um grito
a mão fecha
o que dissimula.
Sente no seu, outro corpo
que tacteia.
E socorre-se dos sons
ou do jeito musical,
na sua boca sabor
a mel ou amarga cor
de grito paralisado
pelo voltar da cabeça.
Na sua mente,
pluralizados pela dor,
seios.
Obsessão de cego,
condição de ver.
Ruy Cinatti in Eros de passagem, 1982.
quarta-feira, 21 de setembro de 2005
(Im)pressões
Helen Frankenthaler
H. Frankenthaler, Tales of Genji V, xilogravura e stencil sobre papel manual, 1987.
Helen Frankenthaler é uma das mais notáveis pintoras que surge nos Estados Unidos na década de 50. Nas suas primeiras exposições em Nova York, em 1951 e 1952, é evidente a influência de Pollock. Frankenthaler desenvolve uma pintura de carácter lírico e de delicada intervenção gestual. A partir de 1957 a autonomia de linguagem da pintora é já evidente. Criticada por alguns pelo facto da sua pintura não ser suficientemente "heróica" comparada com outros pintores do Expressionismo Abstracto norte-americano, Frankenthaler sempre optou por uma visão marcadamente poética.
H. Frankenthaler, Tiger's Eye, águas-tintas, águas-fortes, litografia e serigrafia, 1987.
O seu contacto com a Gravura dá-se em 1961. É um primeiro contacto difícil, embora repleto de curiosidade. Frankenthaler desenvolve uma pintura baseada em experimentações formais com resultados previsíveis. Nas suas primeiras gravuras, nota um aumento da disciplina experimental e, simultâneamente, um aumento da imprevisibilidade. São necessários vários anos para Helen Frankenthaler dominar totalmente o meio. Ela própria afirma que só em 1987 com a série Tiger's Eye, se sente à vontade na conjugação de técnicas com total expressividade. Nesta série Frankenthaler conjuga a litografia com as águas-fortes e a serigrafia. Extremamente cuidada, também, a selecção dos suportes, regra geral, papéis manuais, especialmente fabricados para determinadas séries.
H. Frankenthaler, Tiger's Eye, águas-tintas, águas-fortes, litografia e serigrafia, 1987.
Helen Frankenthaler
H. Frankenthaler, Tales of Genji V, xilogravura e stencil sobre papel manual, 1987.
Helen Frankenthaler é uma das mais notáveis pintoras que surge nos Estados Unidos na década de 50. Nas suas primeiras exposições em Nova York, em 1951 e 1952, é evidente a influência de Pollock. Frankenthaler desenvolve uma pintura de carácter lírico e de delicada intervenção gestual. A partir de 1957 a autonomia de linguagem da pintora é já evidente. Criticada por alguns pelo facto da sua pintura não ser suficientemente "heróica" comparada com outros pintores do Expressionismo Abstracto norte-americano, Frankenthaler sempre optou por uma visão marcadamente poética.
H. Frankenthaler, Tiger's Eye, águas-tintas, águas-fortes, litografia e serigrafia, 1987.
O seu contacto com a Gravura dá-se em 1961. É um primeiro contacto difícil, embora repleto de curiosidade. Frankenthaler desenvolve uma pintura baseada em experimentações formais com resultados previsíveis. Nas suas primeiras gravuras, nota um aumento da disciplina experimental e, simultâneamente, um aumento da imprevisibilidade. São necessários vários anos para Helen Frankenthaler dominar totalmente o meio. Ela própria afirma que só em 1987 com a série Tiger's Eye, se sente à vontade na conjugação de técnicas com total expressividade. Nesta série Frankenthaler conjuga a litografia com as águas-fortes e a serigrafia. Extremamente cuidada, também, a selecção dos suportes, regra geral, papéis manuais, especialmente fabricados para determinadas séries.
H. Frankenthaler, Tiger's Eye, águas-tintas, águas-fortes, litografia e serigrafia, 1987.
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Correio da Cassini
Anéis e anéis à volta do gigante Cronos. Afinal, o Tempo é assim.
Correio da Cassini
Anéis e anéis à volta do gigante Cronos. Afinal, o Tempo é assim.
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A minha vida inteira
Foto de Lilya Corneli
De novo aqui, com os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti na aproximação da ventura e na intimidade da pena.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca e de uma hispânica serenidade.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Creio profundamente que isso é tudo e que não verei nem executarei coisas novas.
Creio que as minhas jornadas e as minhas noites se igualam em pobreza e riqueza às de Deus e às de todos os homens.
J. L. Borges in Lua defronte, 1925.
A minha vida inteira
Foto de Lilya Corneli
De novo aqui, com os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti na aproximação da ventura e na intimidade da pena.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca e de uma hispânica serenidade.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Creio profundamente que isso é tudo e que não verei nem executarei coisas novas.
Creio que as minhas jornadas e as minhas noites se igualam em pobreza e riqueza às de Deus e às de todos os homens.
J. L. Borges in Lua defronte, 1925.
segunda-feira, 19 de setembro de 2005
Imediações
Foto de Lilya Corneli
Os pátios e a sua antiga certeza,
os pátios cimentados
na terra e no céu.
As janelas com grades
de onde a rua se torna
familiar como um candeeiro.
As alcovas profundas
onde arde o mogno em tranquila chama
e o espelho de ténues resplendores
é como um remanso na sombra.
As encruzilhadas escuras
que projectam quatro infinitas distâncias
em arredores de silêncio.
Nomeei os lugares
onde a ternura alastra
e estou só e comigo.
J. L. Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
Foto de Lilya Corneli
Os pátios e a sua antiga certeza,
os pátios cimentados
na terra e no céu.
As janelas com grades
de onde a rua se torna
familiar como um candeeiro.
As alcovas profundas
onde arde o mogno em tranquila chama
e o espelho de ténues resplendores
é como um remanso na sombra.
As encruzilhadas escuras
que projectam quatro infinitas distâncias
em arredores de silêncio.
Nomeei os lugares
onde a ternura alastra
e estou só e comigo.
J. L. Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
domingo, 18 de setembro de 2005
(Im)pressões
Robert Rauschenberg
R. Rauschenberg, Link, serigrafia sobre colagem de pasta de papel, 1974
R. Rauschenberg, Booster, litografia e serigrafia, 1967.
R. Rauschenberg trabalhou vários anos com Ken Tyler na execução de gravuras de grande formato. Explorou a conjugação de técnicas diversas como a litografia e a serigrafia, bem como a manufactura de suportes, nomeadamente a colagem de pastas de papel de cores diversas. Ken Tyler descreve, em 1999, alguns desses processos:
The results were fantastic. We were having some very good results with increasing the scale, because as you increase scale you also increase the other problems that are accompanying printmaking... the processes have to change, the timing and everything else has to change. And of course what has to happen is that you need more than one person. It was the beginnings of what I reflect back now was the team relationship in the workshop... For Sky Garden I laminated three stones together on some honeycomb backing and then built a press that big to print it. Each and every impression required about two pounds of ink. To wipe that stone needed four people just to keep it moist so they could roll the roller across it and traverse back and forth. That's five people, five people around a press all day, for many many days until it was done.
Todo o processo da Gravura se vem a tornar fundamental na obra pictórica de Rauschenberg, assumindo-se como o início da intervenção pictórica e, quase sempre, como a referencia estrutural da pintura, nomeadamente com as impressões sobre tela.
Robert Rauschenberg
R. Rauschenberg, Link, serigrafia sobre colagem de pasta de papel, 1974
As relações entre a Pintura e a Gravura foram, desde o Renascimento e até meados do século XIX, relações pacíficas pelo facto da Gravura, e nomeadamente a chamada gravura de reprodução, ser considerada uma arte acessória e complementar da Pintura no sentido em que o seu objectivo primeiro seria o da divulgação da obra de arte original, obedecendo a uma das suas características básicas que se prende com o múltiplo. Nesse sentido, teve a Gravura papel relevante, particularmente no movimento social renascentista, proporcionando a uma classe mercantil e burguesa emergente o acesso possível à reprodução da obra de arte, classe que só mais tarde se viria a constituír como normativa relativamente à produção artística, no permanente movimento oscilatório de aceitação e rejeição, próprio de um destinatário assumido. Obviamente que o meio Gravura teve em todo este desenrolar histórico momentos de conquista de autonomia expressiva, nomeadamente com Dürer, ainda no Renascimento, bem como, mais tarde, com Seghers ou Rembrant ou Goya. Mas estes casos são excepções ao estatuto e papel que o meio desempenhou na produção artística ocidental até ao século XIX. Começamos, com efeito, a verificar uma acentuada conquista de autonomia expressiva da Gravura a partir da segunda metade do século XIX, autonomia que se tornou plena durante o século XX.
Neste, e nos próximos post, far-se-à um pouco a reflexão sobre a importancia da Gravura na obra de alguns artistas do século XX. Começamos com Robert Rauschenberg.
Neste, e nos próximos post, far-se-à um pouco a reflexão sobre a importancia da Gravura na obra de alguns artistas do século XX. Começamos com Robert Rauschenberg.
R. Rauschenberg, Booster, litografia e serigrafia, 1967.
R. Rauschenberg trabalhou vários anos com Ken Tyler na execução de gravuras de grande formato. Explorou a conjugação de técnicas diversas como a litografia e a serigrafia, bem como a manufactura de suportes, nomeadamente a colagem de pastas de papel de cores diversas. Ken Tyler descreve, em 1999, alguns desses processos:
The results were fantastic. We were having some very good results with increasing the scale, because as you increase scale you also increase the other problems that are accompanying printmaking... the processes have to change, the timing and everything else has to change. And of course what has to happen is that you need more than one person. It was the beginnings of what I reflect back now was the team relationship in the workshop... For Sky Garden I laminated three stones together on some honeycomb backing and then built a press that big to print it. Each and every impression required about two pounds of ink. To wipe that stone needed four people just to keep it moist so they could roll the roller across it and traverse back and forth. That's five people, five people around a press all day, for many many days until it was done.
Todo o processo da Gravura se vem a tornar fundamental na obra pictórica de Rauschenberg, assumindo-se como o início da intervenção pictórica e, quase sempre, como a referencia estrutural da pintura, nomeadamente com as impressões sobre tela.
sábado, 17 de setembro de 2005
Esquecida beleza
Foto de Lilya Corneli
Ao apertar-te nos meus braços aperto
O meu coração contra essa beleza
Que há muito desapareceu do mundo;
As coroas de jóias que reis lançaram
Aos charcos sombrios, quando os exércitos debandaram;
As histórias de amor tecidas com fios de seda
Por sonhadoras damas em telas
Que nutriram a traça assassina;
Rosas de outrora
Que nos seus cabelos as damas entreteceram,
Lírios frescos de orvalho que as damas levavam
Por tanto corredor sagrado
Onde tais nuvens de incenso se elevavam
Que somente Deus não fechava os olhos:
Porque esse pálido peito e a mão indolente
Chegam de uma terra mais sonhadora,
De uma hora mais sonhadora do que esta;
E no teu suspirar entre beijos
Ouço a branca Beleza que também suspira,
Durante horas em que tudo deve consumir-se como o orvalho,
Mas chama sobre chama, abismo sobre abismo,
Trono sobre trono no meio do sono,
Pousadas as suas espadas sobre os joelhos de ferro,
Meditam nos seus altos mistérios solitários.
W.B. Yeats in The Wind among the reeds, 1899.
Foto de Lilya Corneli
Ao apertar-te nos meus braços aperto
O meu coração contra essa beleza
Que há muito desapareceu do mundo;
As coroas de jóias que reis lançaram
Aos charcos sombrios, quando os exércitos debandaram;
As histórias de amor tecidas com fios de seda
Por sonhadoras damas em telas
Que nutriram a traça assassina;
Rosas de outrora
Que nos seus cabelos as damas entreteceram,
Lírios frescos de orvalho que as damas levavam
Por tanto corredor sagrado
Onde tais nuvens de incenso se elevavam
Que somente Deus não fechava os olhos:
Porque esse pálido peito e a mão indolente
Chegam de uma terra mais sonhadora,
De uma hora mais sonhadora do que esta;
E no teu suspirar entre beijos
Ouço a branca Beleza que também suspira,
Durante horas em que tudo deve consumir-se como o orvalho,
Mas chama sobre chama, abismo sobre abismo,
Trono sobre trono no meio do sono,
Pousadas as suas espadas sobre os joelhos de ferro,
Meditam nos seus altos mistérios solitários.
W.B. Yeats in The Wind among the reeds, 1899.
sexta-feira, 16 de setembro de 2005
Antonio Segui
Obras sobre papel 1950-2005
Na sequência da extraordinária exposição de Pierre Alechinski organizada pelo Centro Pompidou no ano passado, onde foram mostrados desenhos dos últimos 50 anos da vida de Alechinski, este ano o C. Pompidou organiza a exposição de obras sobre papel de Antonio Segui — desenhos de 1950 a 2005. Antonio Segui nasceu na Argentina em 1934 e fez os seus estudos em Buenos Aires, Madrid e Paris. Em 1962 instala-se em Paris onde ainda vive e trabalha.
Obras sobre papel 1950-2005
Na sequência da extraordinária exposição de Pierre Alechinski organizada pelo Centro Pompidou no ano passado, onde foram mostrados desenhos dos últimos 50 anos da vida de Alechinski, este ano o C. Pompidou organiza a exposição de obras sobre papel de Antonio Segui — desenhos de 1950 a 2005. Antonio Segui nasceu na Argentina em 1934 e fez os seus estudos em Buenos Aires, Madrid e Paris. Em 1962 instala-se em Paris onde ainda vive e trabalha.
O desenho, entendido como processo criativo construtivo, sempre esteve na base da obra de Segui quer ao nível da pintura, quer ao nível dos trabalhos sobre papel. Esta é a ocasião para se ter uma visão global da obra gráfica deste artista, da diversidade de meios utilizados — que vão da grafite, ao carvão, ao pastel, aos óleos, aos acrílicos —, bem como da constante experimentação de suportes eficazes. O desenho virtuoso de Segui oscila entre situações de extrema delicadeza e um traço por vezes grosseiro, brutal. A figura está sempre presente mas, por vezes, de uma forma subversiva, acentuando esse lado humorístico que é parte integrante de um discurso fluido que se rege por uma extrema liberdade, característica fundamental desse teatro do absurdo de Antonio Segui.
Em Paris, até 10 de Outubro.
Em Paris, até 10 de Outubro.
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Correio da Cassini
Correio da Cassini
O corredor de Pan.
Diz-se que Pan valeu aos Atenienses na Batalha de Maratona espalhando o pânico entre os persas. Por causa disso, mas não só, ergueram-lhe um santuário na Acrópole. Pan é uma das divindades mais divertidas e simpáticas: gostava de perseguir as ninfas, especialmente Sírinx que tão atormentada foi que pediu aos deuses que a transformassem em cana. Mas, mesmo assim, não escapou: Pan cortou uma das canas e inventou uma flauta a que deu o nome da ninfa. Hoje, Pan gira incessantemente à volta de Cronos, do deus Tempo, neste pequeno corredor entre os anéis. Solidões.
Diz-se que Pan valeu aos Atenienses na Batalha de Maratona espalhando o pânico entre os persas. Por causa disso, mas não só, ergueram-lhe um santuário na Acrópole. Pan é uma das divindades mais divertidas e simpáticas: gostava de perseguir as ninfas, especialmente Sírinx que tão atormentada foi que pediu aos deuses que a transformassem em cana. Mas, mesmo assim, não escapou: Pan cortou uma das canas e inventou uma flauta a que deu o nome da ninfa. Hoje, Pan gira incessantemente à volta de Cronos, do deus Tempo, neste pequeno corredor entre os anéis. Solidões.
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Manuel(a) Maria Carrilho
Estúdio da SIC Notícias. Debate agitado, demagógico. Ilusão a minha ter pensado que estava a ver dois homens debaterem políticamente projectos diferentes. À saída, Carmona estende a mão a Manuel(a). Não há retorno de cumprimento. Carrilho é "um homem do mundo", diz um comentador. Não, não é. É apenas uma menina lisboeta mal-educada.
Estúdio da SIC Notícias. Debate agitado, demagógico. Ilusão a minha ter pensado que estava a ver dois homens debaterem políticamente projectos diferentes. À saída, Carmona estende a mão a Manuel(a). Não há retorno de cumprimento. Carrilho é "um homem do mundo", diz um comentador. Não, não é. É apenas uma menina lisboeta mal-educada.
quinta-feira, 15 de setembro de 2005
A ler
A inforopinião: os portugueses poderão ser um dos povos mais opiniosos do mundo — toda a gente tem e dá opinião sobre tudo e nada, perceba ou não do que está a falar. Mas no meio de tudo isto, há uma classe, supostamente paga para informar, que se tornou o principal motor da produção, gestão e distribuição de opinião na sociedade portuguesa. Diz JPP: porque informação é informação e opinião é opinião. Nós cá temos “inforopinião”, nem uma coisa nem outra, ou pior, opinião disfarçada de informação. A “inforopinião” é um dos ramos do “politiquês”, muito praticado pelos jornalistas. Os jornais, com o estilo das notícias assinadas que misturam factos com julgamentos de valor, as televisões com os pivots dos telejornais fazendo comentários e “bocas” pessoais, resultam numa poluição do espaço público, com efectivos resultados no incremento da desinformação.
A inforopinião: os portugueses poderão ser um dos povos mais opiniosos do mundo — toda a gente tem e dá opinião sobre tudo e nada, perceba ou não do que está a falar. Mas no meio de tudo isto, há uma classe, supostamente paga para informar, que se tornou o principal motor da produção, gestão e distribuição de opinião na sociedade portuguesa. Diz JPP: porque informação é informação e opinião é opinião. Nós cá temos “inforopinião”, nem uma coisa nem outra, ou pior, opinião disfarçada de informação. A “inforopinião” é um dos ramos do “politiquês”, muito praticado pelos jornalistas. Os jornais, com o estilo das notícias assinadas que misturam factos com julgamentos de valor, as televisões com os pivots dos telejornais fazendo comentários e “bocas” pessoais, resultam numa poluição do espaço público, com efectivos resultados no incremento da desinformação.
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Working Girl
Working Girl
O museu de Arte Contemporânea de St. Louis inaugura amanhã a exposição de Cindy Sherman, Working Girl. A exposição inclui trabalhos raramente vistos do início dos anos 70. Cindy Sherman tem mantido ao longo de quase 40 anos de trabalho uma notável coerência formal e conceptual e, mais uma vez, estas obras incidem na temática da identidade feminina e são obras que indiciam já o primeiro corpo de trabalho de Sherman, Untitled Film Stills. Cindy Sherman é aqui reconhecida como uma das maiores fotógrafas contemporâneas.
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A uma mulher
Foto de Jacek Pomykalski
Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.
Rio de Janeiro, 1933
Vinicius de Moraes
in O caminho para a distância
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O sentimento do sublime"
A uma mulher
Foto de Jacek Pomykalski
Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.
Rio de Janeiro, 1933
Vinicius de Moraes
in O caminho para a distância
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O sentimento do sublime"
quarta-feira, 14 de setembro de 2005
Sábados
Foto de Stephen Haynes
Lá fora há um ocaso, obscura jóia
engastada no tempo,
e uma recôndita cidade cega
de homens que não te viram.
A tarde cala ou canta.
Alguém descrucifica os anseios
cravados no piano.
Sempre a abundância da tua beleza.
A despeito do teu desamor,
a tua beleza prolonga o seu milagre pelo tempo.
A felicidade mora em ti
tal como a Primavera numa folha nova.
Não sou quase ninguém,
sou apenas o anseio
que se perde na tarde.
Em ti mora o prazer
tal como a crueldade nas espadas.
Carregando as persianas vem a noite.
Na sala tão severa, como cegos,
procuram-se uma à outra as nossas solidões.
Sobreviveu à tarde
a brancura gloriosa da tua carne.
No nosso amor há uma pena
parecida com a alma.
Tu
que ainda ontem eras só toda a beleza
és agora também todo o amor.
J.L.Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
Foto de Stephen Haynes
Lá fora há um ocaso, obscura jóia
engastada no tempo,
e uma recôndita cidade cega
de homens que não te viram.
A tarde cala ou canta.
Alguém descrucifica os anseios
cravados no piano.
Sempre a abundância da tua beleza.
* * *
A despeito do teu desamor,
a tua beleza prolonga o seu milagre pelo tempo.
A felicidade mora em ti
tal como a Primavera numa folha nova.
Não sou quase ninguém,
sou apenas o anseio
que se perde na tarde.
Em ti mora o prazer
tal como a crueldade nas espadas.
* * *
Carregando as persianas vem a noite.
Na sala tão severa, como cegos,
procuram-se uma à outra as nossas solidões.
Sobreviveu à tarde
a brancura gloriosa da tua carne.
No nosso amor há uma pena
parecida com a alma.
* * *
Tu
que ainda ontem eras só toda a beleza
és agora também todo o amor.
J.L.Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
terça-feira, 13 de setembro de 2005
Correio da Cassini
Estranha e curiosa a nomenclatura planetária. Nesta fotografia de Titan, a Cassini mostra-nos as regiões conhecidas como Fensal e Aztlan. Região recheada de ilhas com dimensões entre os 5 e os 40 quilómetros. Mas o mais curioso são os nomes atribuídos. Com efeito, Fensal é a mansão de Frigga na mitologia norueguesa, para onde são convidados os casais que viveram vidas virtuosas na Terra, continuando em Fensal a sua eterna união. Por outro lado, Aztlan é a terra mítica de onde os Astecas acreditavam ser originários. Não deixa de ser fascinante consultar a International Astronomical Union e verificar a nomenclatura planetária. Aqui.
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Coisas esquecidas
La musique parfois donne une idée grossière, un modèle primitif de cette manoeuvre des systèmes nerveux. Elle éveille et rendort les sentiments, se joue des souvenirs et des émotions dont elle irrite, mélange, lie et délie les secrètes commandes. Mais ce qu'elle ne fait que par l'intermédiaire sensible, par des sensations qui nous désignent une cause physique et une origine nettement séparée, il n'est pas imposible qu'on puisse le produire avec une puissance invincible et méconnaissable, en induisant directement les circuits les plus intimes de la vie. C'est en somme un problème de physique. L'action des sons, et particulièrement de leurs timbres, et parmis eux les timbres de la voix — l'action extraordinaire de la voix est un facteur historique d'importance — fait pressentir les effets de vibrations plus subtiles accordées aux résonances des éléments nerveux profonds. Nous savons bien, d'autre part, qu'il est des chemins sans défense pour atteindre aux châteaux de l'âme, y pénétrer et s'en rendre maîtres. Il est des substances qui s'y glissent et s'en emparent. Ce que peut la chimie, la physique des ondes le rejoindra selon ses moyens.
On sait ce qu'ont obtenu des humains les puissants orateurs, les fondateurs de religions, les conducteurs de peuples. L'analyse de leurs moyens, la considération des développements récents des actions à distance suggèrent aisément des rêveries comme celle-ci. Je ne fais qu'aller à peine un peu plus loin que ce qui est. Imagine-t-on ce que serait un monde où le pouvoir de faire vivre plus vite ou plus lentement les hommes, de leur communiquer des tendances, de les faire frémir ou sourire, d'abattre ou de surexciter leurs courages, d'arrêter au besoin les coeurs de tout un peuple, serait connu, défini, exercé!... Que deviendraient alors les prétentions du Moi? Les hommes douteraient à chaque instant s'ils seraient sources d'eux-mêmes ou bien des marionnettes jusque dans le profond du sentiment de leur existence.
Ne peuvent-ils déjà éprouver quelquefois ce malaise? Notre vie en tant qu'elle dépend de ce qui vient à l'esprit, qui semble venir de l'esprit et s'imposer à elle après s'être imposée à lui, n'est-elle pas commandée par une quantité énorme et désordonnée de conventions dont la plupart sont implicites? Nous serions bien en peine de les exprimer et de les expliquer. La société, les langages, les lois, les moeurs, les arts, la politique, tout ce qui est fiduciaire dans le monde, tout effet inégal à sa cause exige des conventions, c'est-à-dire des relais — par le détour desquels une réalité seconde s'installe, se compose avec la réalité sensible et instantanée, la recouvre, la domine —, se déchire parfois pour laisser apparaître l'effrayante simplicité de la vie élémentaire. Dans no désirs, dans nos regrets, dans nos recherches, dans nos émotions et passions, et jusque dans l'effort que nous faisons pour nous connaître, nous sommes le jouet de choses absentes — qui n'ont même pas besoin d'exister pour agir.
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
La musique parfois donne une idée grossière, un modèle primitif de cette manoeuvre des systèmes nerveux. Elle éveille et rendort les sentiments, se joue des souvenirs et des émotions dont elle irrite, mélange, lie et délie les secrètes commandes. Mais ce qu'elle ne fait que par l'intermédiaire sensible, par des sensations qui nous désignent une cause physique et une origine nettement séparée, il n'est pas imposible qu'on puisse le produire avec une puissance invincible et méconnaissable, en induisant directement les circuits les plus intimes de la vie. C'est en somme un problème de physique. L'action des sons, et particulièrement de leurs timbres, et parmis eux les timbres de la voix — l'action extraordinaire de la voix est un facteur historique d'importance — fait pressentir les effets de vibrations plus subtiles accordées aux résonances des éléments nerveux profonds. Nous savons bien, d'autre part, qu'il est des chemins sans défense pour atteindre aux châteaux de l'âme, y pénétrer et s'en rendre maîtres. Il est des substances qui s'y glissent et s'en emparent. Ce que peut la chimie, la physique des ondes le rejoindra selon ses moyens.
On sait ce qu'ont obtenu des humains les puissants orateurs, les fondateurs de religions, les conducteurs de peuples. L'analyse de leurs moyens, la considération des développements récents des actions à distance suggèrent aisément des rêveries comme celle-ci. Je ne fais qu'aller à peine un peu plus loin que ce qui est. Imagine-t-on ce que serait un monde où le pouvoir de faire vivre plus vite ou plus lentement les hommes, de leur communiquer des tendances, de les faire frémir ou sourire, d'abattre ou de surexciter leurs courages, d'arrêter au besoin les coeurs de tout un peuple, serait connu, défini, exercé!... Que deviendraient alors les prétentions du Moi? Les hommes douteraient à chaque instant s'ils seraient sources d'eux-mêmes ou bien des marionnettes jusque dans le profond du sentiment de leur existence.
Ne peuvent-ils déjà éprouver quelquefois ce malaise? Notre vie en tant qu'elle dépend de ce qui vient à l'esprit, qui semble venir de l'esprit et s'imposer à elle après s'être imposée à lui, n'est-elle pas commandée par une quantité énorme et désordonnée de conventions dont la plupart sont implicites? Nous serions bien en peine de les exprimer et de les expliquer. La société, les langages, les lois, les moeurs, les arts, la politique, tout ce qui est fiduciaire dans le monde, tout effet inégal à sa cause exige des conventions, c'est-à-dire des relais — par le détour desquels une réalité seconde s'installe, se compose avec la réalité sensible et instantanée, la recouvre, la domine —, se déchire parfois pour laisser apparaître l'effrayante simplicité de la vie élémentaire. Dans no désirs, dans nos regrets, dans nos recherches, dans nos émotions et passions, et jusque dans l'effort que nous faisons pour nous connaître, nous sommes le jouet de choses absentes — qui n'ont même pas besoin d'exister pour agir.
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
domingo, 11 de setembro de 2005
Orgulho da serenidade
Foto de Lilya Corneli
Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria entendê-los.
O seu dia é ávido como o laço no ar.
A noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes na mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha espada,
a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.
J.L. Borges in Lua defronte, 1925.
Foto de Lilya Corneli
Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria entendê-los.
O seu dia é ávido como o laço no ar.
A noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes na mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha espada,
a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.
J.L. Borges in Lua defronte, 1925.
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A ler
Manoel de Barros no Alicerces. Obrigado Helena Monteiro.
A ler
Manoel de Barros no Alicerces. Obrigado Helena Monteiro.
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Correio... breaking news
Correio... breaking news
Foi detectada a 7, 8 e 9 de Setembro uma das maiores erupções solares alguma vez registadas. A NASA prevê que nas próximas semanas muitos sistemas eléctricos, sistemas de comunicações e sistemas de navegação de baixa frequência experimentem perturbações. Esta erupção deu-se na mesma região solar onde foi registada uma outra grande erupção em meados de Agosto.
sábado, 10 de setembro de 2005
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!
Paris, 1916
Mário de Sá Carneiro
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!
Paris, 1916
Mário de Sá Carneiro
sexta-feira, 9 de setembro de 2005
Olafur Eliasson
Olafur Eliasson, Pleasure under pressure, 2005.
Olafur Eliasson nasceu em 1967 e vive e trabalha em Berlim. Desde 2000 que Eliasson trabalha na área da instalação e da alteração de espaços através da manipulação da luz. As questões fundamentais que levanta prendem-se com a percepção do mundo e com a interrogação sobre o que é real e irreal. A criação de fenómenos luminosos naturais em espaços artificiais, prende-se com esta temática que Eliasson aborda: a relação entre experiência e experimentação, entre arte e realidade. Esta instalação vai ser inaugurada amanhã no Malmö Konsthall. De entre os seus trabalhos mais recentes, Minding the world no Kunstmuseum em Århus, Dinamarca (2004) e The Weather Project na Tate Modern (2003). Outras obras de Olafur Eliasson podem ser vistas aqui.
Olafur Eliasson nasceu em 1967 e vive e trabalha em Berlim. Desde 2000 que Eliasson trabalha na área da instalação e da alteração de espaços através da manipulação da luz. As questões fundamentais que levanta prendem-se com a percepção do mundo e com a interrogação sobre o que é real e irreal. A criação de fenómenos luminosos naturais em espaços artificiais, prende-se com esta temática que Eliasson aborda: a relação entre experiência e experimentação, entre arte e realidade. Esta instalação vai ser inaugurada amanhã no Malmö Konsthall. De entre os seus trabalhos mais recentes, Minding the world no Kunstmuseum em Århus, Dinamarca (2004) e The Weather Project na Tate Modern (2003). Outras obras de Olafur Eliasson podem ser vistas aqui.
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Anto
Foto de Lilya Corneli
Caprichos de lilaz, febres esguias,
Enlevos de Ópio — Iris abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essencias langues, fugidias...
O págem débil das ternuras de setim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe das ilhas transtornadas —
Senhor feudal das Torres de marfim...
Lisboa, 14 de Fevereiro de 1915
Mário de Sá Carneiro
Anto
Foto de Lilya Corneli
Caprichos de lilaz, febres esguias,
Enlevos de Ópio — Iris abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essencias langues, fugidias...
O págem débil das ternuras de setim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe das ilhas transtornadas —
Senhor feudal das Torres de marfim...
Lisboa, 14 de Fevereiro de 1915
Mário de Sá Carneiro
quinta-feira, 8 de setembro de 2005
Correio da Cassini
Prometheus foi o que ofereceu à raça humana os segredos roubados aos deuses propiciando à Humanidade a civilização à custa de terríveis tormentos. Com efeito, Zeus castigou o herói que o ousou contrariar, encadeando-o a um rochedo no alto do Cáucaso onde diariamente um abutre lhe comia o fígado, perpétuamente renovado. Prometheus foi, com efeito, o perturbador da ordem e da lei divina oferecendo aos homens o fogo dos céus. Prometheus continua a ser o perturbador da ordem e, na sua passagem, perturba aqui os anéis de Cronos, do gigante Saturno. Subversões.
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Troféu
Foto de Lilya Corneli
Como quem percorre uma costa
maravilhado com a abundância do mar,
excitado de luz e de pródigo espaço,
eu fui o espectador da tua beleza
durante um longo dia.
Despedimo-nos ao anoitecer
e em gradual solidão
ao voltar pela rua cujos rostos ainda te conhecem,
a minha felicidade ensombrou-se, pensando
que de tão nobre acervo de memórias
iriam perdurar escassamente uma ou duas
pra decoro da alma
na imortalidade do seu rumo.
J.L. Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
Troféu
Foto de Lilya Corneli
Como quem percorre uma costa
maravilhado com a abundância do mar,
excitado de luz e de pródigo espaço,
eu fui o espectador da tua beleza
durante um longo dia.
Despedimo-nos ao anoitecer
e em gradual solidão
ao voltar pela rua cujos rostos ainda te conhecem,
a minha felicidade ensombrou-se, pensando
que de tão nobre acervo de memórias
iriam perdurar escassamente uma ou duas
pra decoro da alma
na imortalidade do seu rumo.
J.L. Borges in Fervor de Buenos Aires, 1923.
quarta-feira, 7 de setembro de 2005
Hilla von Rebay
Em 1939 foi inaugurada em Nova York uma importante exposição que mostrava cerca de 725 peças da colecção Museum of Non-Objective Painting (futuro Museu Guggenheim) e que tinham sido adquiridas por Solomon Guggenheim entre 1929 e 1939. Esta exposição tinha por título Art of Tomorrow. Esta colecção foi construída a partir dos critérios de Hilla von Rebay que trabalhava em estreita colaboração com Solomon Guggenheim. Obras de Vasily Kandinsky, Rudolf Bauer, Albert Gleizes, Juan Gris, Fernand Léger, László Moholy-Nagy, Ben Nicholson, Friedrich Vordemberge-Gildewart e Maria Helena Vieira da Silva estavam presentes na exposição Art of Tomorrow. Obras destes artistas podem agora ser vistas no Museum Villa Stuck, em Munich, numa reedição da exposição original Art of Tomorrow mas, desta vez dedicada a Hilla von Rebay (1890-1967), artista alemã que fundou e dirigiu o Museum of Non-Objective Painting. Hilla von Rebay chegou à América em 1927 e conseguiu despertar a atenção de Solomon Guggenheim para a arte europeia que então se produzia. Nesta reedição de Art of Tomorrow estão também reunidas obras de Hilla von Rebay. Esta artista alemã teve papel fundamental no que mais tarde se tornaria a colecção Guggenheim bem como, depois da Guerra, na divulgação da arte americana na Europa. Foi Hilla von Rebay que organizou, em 1948, a primeira grande exposição de pintores norte-americanos na Europa.
Art of Tomorrow inaugura amanhã.
Art of Tomorrow inaugura amanhã.
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Ouvindo:
Enrico Pieranunzi, The Enrico Pieranunzi Trio, Infant Eyes, Challenge Records, 2000.
Ouvindo:
Enrico Pieranunzi, The Enrico Pieranunzi Trio, Infant Eyes, Challenge Records, 2000.
terça-feira, 6 de setembro de 2005
Correio da Cassini
Janus é o ianitor, aquele que abre e fecha as portas — ianuae — do ciclo anual. Janus tem dois rostos, acentuando o seu carácter verdadeiramente temporal. Com um olha o passado, com o outro olha o futuro. Mas, na realidade, Janus é o senhor do triplo tempo. Entre o passado que já não é e o futuro que ainda não é, o terceiro rosto de Janus olha implacávelmente o presente. Só que esse terceiro rosto, que olha directamente para nós é invisível — neste caso, no Janus real, material que a Cassini fotografa, é negro. Esse rosto que olha o presente é invisível porque o presente é apenas o inapreensível instante, fragmentado, contingente.
Coisas esquecidas
Comment donc se peut-il que l'affaire de la liberté et du libre arbitre ait excité tant de passion et animé tant de disputes sans issue concevable? C'est que l'on y portait sans doute un tout autre intérêt que celui d'acquérir une connaissance que l'on n'eût pas. On regardait aux conséquences. On voulait qu'une chose fût, et non point une autre; les uns et les autres ne cherchaient rien qu'ils n'eussent déjà trouvé. C'est à mes yeux le pire usage que l'on puisse faire de l'esprit qu'on a.
Ce m'est toujours un sujet d'étonnement que l'entrée en guerre de la pensée avec toutes ses forces, à l'appel d'un terme, qui simple, inoffensif, et même clair dans l'ordinaire des occasions, devient un monstre de difficulté dès qu'on le retire de son élément naturel, qui est le cours des échanges, et des transmissions particulières, pour en faire une "résistance". Sans doute le phénomène le plus banal, une pomme qui tombe, une marmite dont le couvercle se soulève, peut introduire, dans un esprit très disposé à approfondir ses observations, une origine de méditations et d'analyses; mais ce travail mental ne cesse de se reprendre au phénomène lui-même et de lui chercher, pour le traiter selon les voies de l'intellect, cette forme dont parlait Abel que j'ai cité, et qui fait que les problèmes sont de véritables problèmes, des problèmes qui n'exigent pas un éternel retour sur leurs données.
Je ne vois donc point de "Problème de la liberté"; mais je vois un problème de l'action humaine, lequel ne me semble pas avoir été scrupuleusement et rigoureusement énoncé et étudié jusqu'ici, même dans les cas les plus simples. Un acte, excité à partir d'une situation psychique et physiologique de l'individu, est certainement une suite de transformations des plus complexes, et dont nous n'avons encore aucune idée, aucun modèle; il est possible que l'étude de cet acte et les connaissances qui pourront s'y joindre fassent apparaître quelque clarté dans cette ténébreuse affaire, dont l'origine est en deux propositions que voici conjointes: "Comment se peut-il que nous puissions faire ce qui nous répugne et ne pas faire ce qui nous séduit?".
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
Comment donc se peut-il que l'affaire de la liberté et du libre arbitre ait excité tant de passion et animé tant de disputes sans issue concevable? C'est que l'on y portait sans doute un tout autre intérêt que celui d'acquérir une connaissance que l'on n'eût pas. On regardait aux conséquences. On voulait qu'une chose fût, et non point une autre; les uns et les autres ne cherchaient rien qu'ils n'eussent déjà trouvé. C'est à mes yeux le pire usage que l'on puisse faire de l'esprit qu'on a.
Ce m'est toujours un sujet d'étonnement que l'entrée en guerre de la pensée avec toutes ses forces, à l'appel d'un terme, qui simple, inoffensif, et même clair dans l'ordinaire des occasions, devient un monstre de difficulté dès qu'on le retire de son élément naturel, qui est le cours des échanges, et des transmissions particulières, pour en faire une "résistance". Sans doute le phénomène le plus banal, une pomme qui tombe, une marmite dont le couvercle se soulève, peut introduire, dans un esprit très disposé à approfondir ses observations, une origine de méditations et d'analyses; mais ce travail mental ne cesse de se reprendre au phénomène lui-même et de lui chercher, pour le traiter selon les voies de l'intellect, cette forme dont parlait Abel que j'ai cité, et qui fait que les problèmes sont de véritables problèmes, des problèmes qui n'exigent pas un éternel retour sur leurs données.
Je ne vois donc point de "Problème de la liberté"; mais je vois un problème de l'action humaine, lequel ne me semble pas avoir été scrupuleusement et rigoureusement énoncé et étudié jusqu'ici, même dans les cas les plus simples. Un acte, excité à partir d'une situation psychique et physiologique de l'individu, est certainement une suite de transformations des plus complexes, et dont nous n'avons encore aucune idée, aucun modèle; il est possible que l'étude de cet acte et les connaissances qui pourront s'y joindre fassent apparaître quelque clarté dans cette ténébreuse affaire, dont l'origine est en deux propositions que voici conjointes: "Comment se peut-il que nous puissions faire ce qui nous répugne et ne pas faire ce qui nous séduit?".
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
segunda-feira, 5 de setembro de 2005
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Ouvindo:
Edouard Bineau, Exodus, Night Bird Music, 2002.
Ouvindo:
Edouard Bineau, Exodus, Night Bird Music, 2002.
Ne nous racontons pas d'histoires. Il n'y a décidément que trois types de jazzmen. Il y a d'abord tous ceux qui jouent au jazz comme on joue à la marelle ou au flipper. Ces instrumentistes appliqués connaissent plus ou moins bien les règles et les contraintes de cette langue vivante, mais en ignorent toutes les urgences et exigences intimes. Avec eux triomphe le jazz sans le jazz. Sans cette nécessité intérieure qui doit l'animer et l'enflammer. Il y a ensuite ceux qui jouent du jazz. Ce sont des musiciens souvent habiles et brillants qui, outre la syntaxe et la grammaire, connaissent (vainement!) sur le bout des doigts tout le répertoire et l'histoire du jazz, mais craignent toujours, au saut de l'improvisation, de se livrer vraiment et de s'approprier en toute liberté cette musique vive pour la transfigurer en une prise de parole la plus individuelle, la plus imprévisible possible. Il y a enfin ceux qui jouent... jazz, transitivement, directement. Sans l'ombre d'un doute. Pour les reconnaître, quelques notes suffisent. Dès qu'ils jouent, on sent, on sait qu'il y a de la musique en eux. Pas besoin de longs discours pour se fier à cette espèce d'évidence immédiate qui nous fait comprendre que le jazz est là. A preuve ce disque arrivé un jour par hasard par la poste pour avis. Le pianiste est inconnu. Faute de temps, on tarde à écouter l'album. L'intéressé téléphone, s'impatiente et insiste. Devant tant d'obstination passionnée, on s'oblige enfin à écouter la musique. Et, tout de suite, l'évidence éclate: "Voici un pianiste qui joue jazz".
Pascal Aquetil
Não se pode aplicar este pequeno texto a todas as áreas da criatividade artística?
Pascal Aquetil
Não se pode aplicar este pequeno texto a todas as áreas da criatividade artística?
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E all'alba morirò
Foto de Lilya Corneli
A arte erótica dos sábados
sentava-se ao café e esperava.
Na cidade humedecida para lá dos vidros
chapinhavam os pneus para os cinemas.
A bica amolecia com açúcar dentro.
Falavam mais alto, o acre dos cigarros
ficava preso ao sobretudo ao lenço
com que limpava os óculos.
Quem olharia primeiro com os olhos
fitos hesitados insistindo
no sinal assente: vamos os dois.
Para onde? O mar ao longe ouvia-se
trazido pela chuva, as luzes amarelas
cercavam as garrafas das vitrinas
com uma aura que parecia celofane.
Sem esperar o troco que
já saíam os dentes desejantes
caminhou para a porta giratória
saltou sobre poças de água
e aceitou abrigar-se ao guarda-chuva.
Trocaram nomes
podiam ser fingidos mas já eram
uma designação da carne,
uma alegria cruzando-se no frio,
o prenúncio de mãos incertas
tirando o corpo do seu escuro.
Joaquim Manuel Magalhães in Eros de passagem, 1982.
E all'alba morirò
Foto de Lilya Corneli
A arte erótica dos sábados
sentava-se ao café e esperava.
Na cidade humedecida para lá dos vidros
chapinhavam os pneus para os cinemas.
A bica amolecia com açúcar dentro.
Falavam mais alto, o acre dos cigarros
ficava preso ao sobretudo ao lenço
com que limpava os óculos.
Quem olharia primeiro com os olhos
fitos hesitados insistindo
no sinal assente: vamos os dois.
Para onde? O mar ao longe ouvia-se
trazido pela chuva, as luzes amarelas
cercavam as garrafas das vitrinas
com uma aura que parecia celofane.
Sem esperar o troco que
já saíam os dentes desejantes
caminhou para a porta giratória
saltou sobre poças de água
e aceitou abrigar-se ao guarda-chuva.
Trocaram nomes
podiam ser fingidos mas já eram
uma designação da carne,
uma alegria cruzando-se no frio,
o prenúncio de mãos incertas
tirando o corpo do seu escuro.
Joaquim Manuel Magalhães in Eros de passagem, 1982.
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Correio da Cassini
Correio da Cassini
Sombras, projecções, ilusão de óptica, geometria. Como dizia Valéry: coisas que fogem, aparentemente, à lei da continuidade.
Cumplicidades entre não complementares.
Intimidades.
Cumplicidades entre não complementares.
Intimidades.
domingo, 4 de setembro de 2005
Braços
Foto de Lilya Corneli
Braços
de amorosa,
onde fui embalado e adormecido...
No vosso berço, cama voluptuosa,
quedo-me ainda
sonâmbulo e acordado,
lembrado e esquecido...
No vosso abraço
inda me enlaço.
Ah, porque todo o seu gosto
se continua em pétalas
que descem
ainda sobre o meu rosto
e à minha boca fria e de saudade, extática,
vêm trazer o calor
da vossa pele aromática.
Braços!
Olhando-vos a brancura,
dela, como dum céu,
oscilando no ar, com balanços de penas,
choviam outras pétalas, serenas.
De encontro a seios quentes como lumes,
já eu sorvia perfumes,
e as pétalas choviam mais,
em chuva cerrada e leve,
embranquecendo tudo,
cobrindo tudo de neve...
A sombra dessa alvura,
colunas de mármore nasciam,
erguendo eirados
sobre um claro parque
com lagos
onde os cisnes namorados,
repuxos múrmuros,
e sátiros deitados,
enlanguesciam de esperanças,
ao som de flautas ocultas
e ao ritmo de véus em danças...
Já a esta hora,
o génio da beleza
surgia a rasgar túnicas,
a descalçar sandálias,
com invisíveis, sagradas mãos silenciosas,
deixando apenas sobre as frontes
os diademas de rosas.
Edmundo de Bettencourt in Eros de passagem, 1982.
Foto de Lilya Corneli
Braços
de amorosa,
onde fui embalado e adormecido...
No vosso berço, cama voluptuosa,
quedo-me ainda
sonâmbulo e acordado,
lembrado e esquecido...
No vosso abraço
inda me enlaço.
Ah, porque todo o seu gosto
se continua em pétalas
que descem
ainda sobre o meu rosto
e à minha boca fria e de saudade, extática,
vêm trazer o calor
da vossa pele aromática.
Braços!
Olhando-vos a brancura,
dela, como dum céu,
oscilando no ar, com balanços de penas,
choviam outras pétalas, serenas.
De encontro a seios quentes como lumes,
já eu sorvia perfumes,
e as pétalas choviam mais,
em chuva cerrada e leve,
embranquecendo tudo,
cobrindo tudo de neve...
A sombra dessa alvura,
colunas de mármore nasciam,
erguendo eirados
sobre um claro parque
com lagos
onde os cisnes namorados,
repuxos múrmuros,
e sátiros deitados,
enlanguesciam de esperanças,
ao som de flautas ocultas
e ao ritmo de véus em danças...
Já a esta hora,
o génio da beleza
surgia a rasgar túnicas,
a descalçar sandálias,
com invisíveis, sagradas mãos silenciosas,
deixando apenas sobre as frontes
os diademas de rosas.
Edmundo de Bettencourt in Eros de passagem, 1982.
sexta-feira, 2 de setembro de 2005
Correio da... Spirit
É uma paisagem de Marrocos, do deserto? Não. Apenas um dia de sol em Marte. A Spirit olha à volta... terra nova.
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Cosmocópula
Foto de Lilya Corneli
O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro
Natália Correia in Eros de passagem, 1982.
Cosmocópula
Foto de Lilya Corneli
O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro
Natália Correia in Eros de passagem, 1982.
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Coisas esquecidas
Liberté: c'est un de ces détestables mots qui ont plus de valeur que de sens; qui demandent plus qu'ils ne répondent; de ces mots qui ont fait tous les métiers, et desquels la mémoire est barbouillée de Théologie, de Métaphysique, de Morale et de Politique; mots très bons pour la controverse, la dialectique, l'éloquence; aussi propres aux analyses illusoires et aux subtilités infinies qu'aux fins de phrases qui déchaînent le tonnerre.
Je ne trouve une signification précise à ce nom de "Liberté" que dans la dynamique et la théorie des mécanismes, où il désigne l'excès du nombre qui définit un système matériel sur le nombre des gênes qui s'opposent aux déformations de ce système, ou qui lui interdisent certains mouvements.
Cette définition qui résulte d'une réflexion sur une observation toute simple, méritait d'être rappelée en regard de l'impuissance remarquable de la pensée morale à circonscrire dans une formule ce qu'elle entend elle-même par la "liberté" d'un être vivant et doué de conscience de soi-même et de ses actions.
Mais rien de plus fécond que ce qui permet aux esprits de se diviser et d'exploiter leurs différences, quand il n'y a point de référence commune qui les oblige à s'accorder.
Les uns, donc, ayant rêvé que l'homme était libre, sans pouvoir dire au juste ce qu'ils entendaient par ces mots, les autres, aussitôt, imaginèrent et soutinrent qu'il ne l'était pas. Ils parlèrent de fatalité, de nécessité, et, beaucoup plus tard, de déterminisme; mais tous ces termes sont exactement du même degré de précision que celui auquel ils s'opposent. Ils n'importent rien dans l'affaire qui la retire de ce vague où tout est vrai.
Le "déterminisme" nous jure que si l'on savait tout, l'on saurait aussi déduire et prédire la conduite de chacun en toute circonstance, ce qui est assez évident. Le malheur veut que "tout savoir" n'ait aucun sens.
Tout devient absurde en cette matière, comme en tant d'autres, dès que l'on presse les termes: ils n'étaient enflés que de vague. On constate facilement que le problème n'a jamais pu être véritablement énoncé, que cette circonstance n'a jamais empêché personne de le résoudre, et qu'elle lui confère une sorte d'éternité: il irrite l'esprit dans un cercle. Le célèbre géomètre Abel, traitant de tout autre chose, disait: "On doit donner au problème une forme telle qu'il soit toujours possible de le résoudre."
C'est cette forme qu'il fallait chercher. Que si elle est introuvable, le problème n'existe pas.
Faute de cette première recherche, la pensée s'excitant sur un mot s'égare dans une quantité d'expressions particulières: elle adopte tantôt un sens plus ou moins composite, sorte de moyenne des usages; tantôt un sens conventionnel, qui se brouille bientôt avec celui de l'usage, et l'infini des méprises et des fluctuations du penseur lui-même s'introduit.
C'est une erreur très facile, et si commune qu'on peut la dire constante, que de faire un problème de statistique et de notations accidentellement constituées, un problème d'existence et de substance. Il n'y a rien de plus, il ne peut rien y avoir de plus dans un sens de mot que ce que chaque esprit a reçu des autres, en mille occasions diverses et désordonnées, à quoi s'ajoutent les emplois qu'il en a faits lui-même, tous les tâtonnements d'une pensée naissante qui cherche son expression. C'est donc à la seule philologie, leur juge naturel, qu'il convient d'adresser toutes les questions dont les termes peuvent toujours être mis en cause. Il lui appartient à elle seule de restituer les origines et les vicissitudes du sens et des emplois des mots, et elle ne leur suppose pas un "sens vrai", une profondeur, une valeur autre que de position et de circonstance, qui résiderait et subsisterait dans le terme isolé.
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.
Liberté: c'est un de ces détestables mots qui ont plus de valeur que de sens; qui demandent plus qu'ils ne répondent; de ces mots qui ont fait tous les métiers, et desquels la mémoire est barbouillée de Théologie, de Métaphysique, de Morale et de Politique; mots très bons pour la controverse, la dialectique, l'éloquence; aussi propres aux analyses illusoires et aux subtilités infinies qu'aux fins de phrases qui déchaînent le tonnerre.
Je ne trouve une signification précise à ce nom de "Liberté" que dans la dynamique et la théorie des mécanismes, où il désigne l'excès du nombre qui définit un système matériel sur le nombre des gênes qui s'opposent aux déformations de ce système, ou qui lui interdisent certains mouvements.
Cette définition qui résulte d'une réflexion sur une observation toute simple, méritait d'être rappelée en regard de l'impuissance remarquable de la pensée morale à circonscrire dans une formule ce qu'elle entend elle-même par la "liberté" d'un être vivant et doué de conscience de soi-même et de ses actions.
Mais rien de plus fécond que ce qui permet aux esprits de se diviser et d'exploiter leurs différences, quand il n'y a point de référence commune qui les oblige à s'accorder.
Les uns, donc, ayant rêvé que l'homme était libre, sans pouvoir dire au juste ce qu'ils entendaient par ces mots, les autres, aussitôt, imaginèrent et soutinrent qu'il ne l'était pas. Ils parlèrent de fatalité, de nécessité, et, beaucoup plus tard, de déterminisme; mais tous ces termes sont exactement du même degré de précision que celui auquel ils s'opposent. Ils n'importent rien dans l'affaire qui la retire de ce vague où tout est vrai.
Le "déterminisme" nous jure que si l'on savait tout, l'on saurait aussi déduire et prédire la conduite de chacun en toute circonstance, ce qui est assez évident. Le malheur veut que "tout savoir" n'ait aucun sens.
Tout devient absurde en cette matière, comme en tant d'autres, dès que l'on presse les termes: ils n'étaient enflés que de vague. On constate facilement que le problème n'a jamais pu être véritablement énoncé, que cette circonstance n'a jamais empêché personne de le résoudre, et qu'elle lui confère une sorte d'éternité: il irrite l'esprit dans un cercle. Le célèbre géomètre Abel, traitant de tout autre chose, disait: "On doit donner au problème une forme telle qu'il soit toujours possible de le résoudre."
C'est cette forme qu'il fallait chercher. Que si elle est introuvable, le problème n'existe pas.
Faute de cette première recherche, la pensée s'excitant sur un mot s'égare dans une quantité d'expressions particulières: elle adopte tantôt un sens plus ou moins composite, sorte de moyenne des usages; tantôt un sens conventionnel, qui se brouille bientôt avec celui de l'usage, et l'infini des méprises et des fluctuations du penseur lui-même s'introduit.
C'est une erreur très facile, et si commune qu'on peut la dire constante, que de faire un problème de statistique et de notations accidentellement constituées, un problème d'existence et de substance. Il n'y a rien de plus, il ne peut rien y avoir de plus dans un sens de mot que ce que chaque esprit a reçu des autres, en mille occasions diverses et désordonnées, à quoi s'ajoutent les emplois qu'il en a faits lui-même, tous les tâtonnements d'une pensée naissante qui cherche son expression. C'est donc à la seule philologie, leur juge naturel, qu'il convient d'adresser toutes les questions dont les termes peuvent toujours être mis en cause. Il lui appartient à elle seule de restituer les origines et les vicissitudes du sens et des emplois des mots, et elle ne leur suppose pas un "sens vrai", une profondeur, une valeur autre que de position et de circonstance, qui résiderait et subsisterait dans le terme isolé.
Paul Valéry in Regards sur le monde actuel, 1927.